Como nasce a relação do povo cearense com o riso?

 

Pesquisador cultural e humoristas de diferentes safras contextualizam nossa arte de fazer graça

Antes mesmo da estreia da nova edição do Big Brother Brasil, o nome de Marcus Vinicius Fernandes de Sousa – Vyni, como é conhecido pelo público – já era querido por muitos seguidores. O bom humor do cratense logo despontou como a principal característica, algo que se confirma nesses primeiros dias de confinamento na casa.

Não à toa, conterrâneos povoam as redes sociais de comentários atestando a genuína cearensidade do participante. Mas, afinal, como nasce a relação do povo cearense com o riso? É possível explicar nossa inclinação para fazer graça naturalmente?

O dramaturgo, poeta, jornalista, folclorista e teatrólogo, Oswald Barroso, considera que a molecagem se constitui uma das maiores marcas do Ceará desde a mestiçagem de nosso povo com africanos, indígenas, ibéricos e outras nações que por aqui passaram, a partir do século XVIII. Foram elas que constituíram a base de nossa sociedade.

“Nessa mistura, predominaram elementos de culturas mais antigas, fortíssimas”, diz o pesquisador. Falando-se do componente africano, por exemplo, a presença de negros era observada com maior ressonância nos vales úmidos, cobrindo litoral e serra, onde existiam plantações de açúcar. Por sinal, o termo “fuleragem” – largamente utilizado para definir o jeito de ser cearense – surge dessa raiz afro.

A palavra está associada aos fulos, indivíduos pertencentes ao grupo étnico Fulas, compreendendo várias populações espalhadas pela África Ocidental, África Central e no norte da África sudanesa. Por outro lado, quando se processou a mestiçagem com indígenas – geralmente mais sérios que os africanos, segundo o estudioso –  foi levado em consideração um elemento presente nas aldeias. Assim como o cacique e o pajé, havia a figura do palhaço.

“O palhaço também é encontrado nas culturas de origem árabe e africana, sobretudo na África do Norte – que é meio africana e meio árabe. É preciso levar em consideração que o cearense é nômade, principalmente a partir do fenômeno da seca, que fez com que muitas pessoas viajassem durante a estiagem e depois voltassem quando chovia. Somos um povo que se tornou perambulante, aumentando a riqueza de nossa cultura”, situa Oswald.

A mídia e o nosso humor

Mas foi mesmo com o avanço da mídia que a genialidade cearense na comédia se popularizou, ganhando o mundo. Foi quando mestres como Chico Anysio (1931-2012), Renato Aragão, Tom Cavalcante, Rossicléa, Tiririca e Falcão passaram a ser referência, protagonizando momentos hilários e arrancando boas risadas do público.

Oswald Barroso, contudo, observa que, muito antes dessa grande fama do Estado, por aqui sempre houve humoristas extraordinários, muitos deles bebendo da fonte do teatro e das manifestações populares. “Na genealogia do povo cearense, existem pessoas que até hoje – os bonequeiros, por exemplo – são famosos, antecedendo a esses todos. Porém, a ressonância do rádio, da TV, do cinema e, mais recentemente, das redes sociais, tratou de ampliar e favorecer a divulgação do cearense como o povo que faz graça”.

Ao ser questionado se o modo de fazer humor no Ceará mudou muito ao longo dos anos, o estudioso explica que o riso popular nunca foi preconceituoso – levando em consideração o debate cada vez mais frequente na contemporaneidade sobre os limites do fazer rir. Isso porque ele nasceu exatamente das camadas humildes e oprimidas, utilizado como meio de desfazer a autoridade, o pretensioso, o estabelecido.

“Usavam o riso para contrapor a alegria à dor, à tristeza, e poder viver melhor. É uma forma de driblar a opressão. Esse riso nunca foi homofóbico ou racista. Já o riso dito oficial, não. O riso que rebaixa o já rebaixado, que goza com a miséria alheia, sempre foi muito questionado pelo povo. Por isso que agora essa tendência da piada discriminatória diminuiu. Mas todas as grandes questões – a exemplo de agora, com a pandemia – o povo tem que levar mesmo na esculhambação, fazer fuleragem com o tema, pra poder resistir e não morrer tanta gente, não haver tanta depressão”, defende Oswald.

A grande aderência do público a Vinicius, no BBB, deve-se sobretudo a isso. Para o pesquisador, ele é cria da nossa fuleragem. “O povo cearense é um profeta e um palhaço. Somos singulares porque nascemos de uma mistura também assim. Por isso somos tão fortes e necessários hoje no Brasil. O maior antídoto para a pandemia é o riso. O riso é uma coisa sagrada, dos deuses. Os deuses também riem. Isso explica por que o Ceará está sendo tão contagiante e vai ser ainda mais. Vamos rir! Vamos levantar a saia e botar a bunda pra cima!”.

Linguagem universal

Descrevendo-se como integrante da primeira “leva” do humor cearense, Ciro Santos acredita ser a nossa gaiatice um fenômeno diferenciado porque acontece de maneira muito espontânea. “O cearense ri da própria desgraça, faz piada com tudo. Ou seja, é um povo que sempre consegue tirar algo engraçado de qualquer situação, além da originalidade das coisas – a linguagem, por exemplo, é muito peculiar”, sublinha.

Tendo feito shows em cruzeiros e resorts pelo Brasil e pelo exterior durante anos, o comediante sempre procurou uma linguagem universal para contar piadas, agradando a gregos e troianos. Um desafio com camadas cada vez mais profundas.

“Fazer números de plateia é muito difícil e requer realmente um cuidado especial com a linguagem e com o que se fala. Por isso mesmo, de uma forma geral, não é possível fazer o mesmo tipo de humor realizado há muitos anos. Hoje as pessoas estão mais intolerantes  a piadas preconceituosas, por exemplo. Ainda bem”.

Ciro Santos acredita ser a nossa gaiatice um fenômeno diferenciado porque acontece de maneira muito espontâneaFoto: Divulgação

Tendo nascido no Rio de Janeiro, Ciro se sente mais cearense do que carioca. Há mais de três décadas ele atua no segmento humorístico, tendo como personagem principal a vedete Virginia Del Fuego. O comediante afirma com todas as letras: nosso povo já nasce humorista. “O Ceará é o grande celeiro do humor brasileiro. O humor cearense é diferenciado e especial. E sim, minha torcida no BBB é do Vyni desde quando foi anunciada a participação dele no reality. Ele é bem humorado sem ser forçado, e é cearense. O riso cura!”, diz Ciro Santos.

Mesma opinião tem Tirullipa, outro grande nome da molecagem no Estado e no Brasil. Foi ele, inclusive, quem primeiro apresentou Vinicius ao mundo, há dois anos. Na ocasião, o filho de Tiririca publicou vídeos nos stories e no feed do instagram ressaltando as qualidades do atual participante do Big Brother Brasil.

“O Vyni é o cearense moleque, da periferia, de baixa renda, pobre. Você olha pra ele e vê a liseira. Ele é a cara do humor cearense – escrachado, esse humor que a gente brinca com a gente mesmo, tirando onda da própria desgraça”, detalha o comediante.

Na visão dele, com 26 anos de profissão, para fazer graça como se faz por aqui é preciso conviver com as pessoas do Ceará – realidade experimentada pelo humorista desde cedo. Além de ser filho de uma das maiores referências na área, Tirullipa diz sempre estar envolto por muita marmota e fuleragem, o que vai reforçando a especialidade em promover o riso.

“Chico Anysio, Renato Aragão, Tom Cavalcante, Tiririca, Falcão… O legado que deixaram é que esse é que é o verdadeiro humor: o de tirar graça da desgraça, de brincar com nós mesmos, com a nossa cultura, com o cearense réi lascado, com o rico réi metido a besta. Se essa galera nova pegasse um vídeo sobre o que esses caras fizeram, terão acesso à maior faculdade do mundo”.

Sem esconder a preferência por Vinicius no BBB, Tirullipa enxerga nele uma personalidade capaz de apresentar o mais bonito do Ceará. “Ele só mostrou quem ele é nessa oportunidade que a Globo deu. A entrada dele no programa para mim foi a melhor entrada de todos os BBBs. Com a vaia cearense, ele tirou onda, brincou, tirou o moleque cearense que tem dentro da gente. Então, de fato, ele é um orgulho. Certeza que Vyni vai dar o que falar e eu tô torcendo por ele”.

Coragem e vontade de chegar

Mais um que se soma a esse coro é o ator e youtuber Max Petterson, famoso pelas hilárias situações vivenciadas em Paris. Conforme observa, o jeito engraçado de Vinicius apenas comprova o quanto nós, cearenses e nordestinos, temos essa veia do bom humor aflorada.

“Acho que, assim como eu, Vyni não é um humorista contador de piadas, mas uma pessoa de sacadas rápidas e que encara a vida da melhor forma possível, pensando sempre positivo, e isso é incrível”, observa. “Não o conheço pessoalmente, mas de cara gostei do jeito dele e me identifiquei bastante. O fato dele ser da mesma cidade que eu só reforça ainda mais a minha torcida”.

Apesar de não achar nosso humor único, Max percebe sermos particulares na forma como abordamos certos momentos do cotidiano. “O cearense em si, na maioria dos casos, leva a vida de forma leve e bem humorada. Acho que todos temos essa veia humorística em nós. Alguns desenvolvem e levam para algo mais profissional, e outros não”.

Apesar de não achar nosso humor único, Max Petterson percebe sermos particulares na forma como abordamos certas situações do cotidiano l FotoArquivo pessoal

Sempre propenso a arrancar risadas das pessoas, Max faz teatro desde os 12 anos, e por muito tempo desenvolveu trabalhos mais voltados para o drama. O humor, contudo, despontou como modo de lidar com o meio, algo que o fez investir no segmento anos mais tarde.

Hoje, ele diz que realiza uma triagem das situações diárias para contá-las de um jeito mais bem humorado. “É sempre muito desafiador fazer as pessoas rirem, você nunca sabe o que aquilo vai causar nelas. Fazer humor é um eterno ‘pisar em ovos’. Eu me sinto bem com o que venho fazendo até agora. O que mais me motiva a continuar é o feedback que recebo de quem encontro. Muitos, por exemplo, se dizem curados de tratamentos e de depressão, e relatam que, quando estavam em momentos muito difíceis, meus vídeos os ajudaram”. Antes de escutar esse tipo de relato, o cratense não tinha noção do quanto a arte é importante e do tamanho do impacto que podemos exercer na vida do outro. Para ele, não existe humor que agrada a todos. Logo, na própria fórmula de criação de conteúdo, tenta sempre evitar temas sensíveis e enxergar o impacto das palavras antes de soltá-las nas redes sociais.

“Não sou perfeito e nem politicamente correto nas coisas que faço, porém é necessário entender que algumas coisas estão mudando para melhor e nós, como artistas, também temos que nos adaptar”. Quanto aos nomes consagrados no segmento, Petterson diz que cada um tem na carreira um diferencial, e que se inspira muito no que fizeram para seguir adiante com o próprio trabalho, sobretudo próximo às novas gerações.

“Acho que o maior legado que esses artistas nos deixaram até agora é esse: a coragem e a vontade de chegar onde queriam. Eu já tive a oportunidade de trabalhar algumas vezes com o Falcão e sou apaixonado por ele, pela forma como encara a vida. Isso para mim é algo muito inspirador, a leveza que ele tem e continua tendo ao longo desses anos todos, deixando o humor natural e orgânico”. Feito a graça cearense: leve, moleca, eterna.

Fonte: DN

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