Com monopólio ou sem ele

 

 

 

 

 

 

 

 

O fim da ditadura militar, da censura e a conseqüente redemocratização do Brasil conduziram à inevitável abordagem, no cinema, teatro, rádio, televisão e literatura, de temas de conteúdo político e social, antes dificultados ou sumariamente interditados pelo regime de força. Este triste fato teve, além disso, um lado extremamente nocivo para a indústria cinematográfica brasileira: a asfixia de uma atividade cultural, libertada da censura forte e indigesta, pelo monopólio da indústria do cinema produzido, distribuído e agora exibido pelos Estados Unidos, de forma avassaladora, em nosso país, e, geralmente, por outros países latino-americanos, deixando aos nossos filmes um ínfimo percentual na cadeia exibidora.

 

O fato havia sido denunciado pelo mestre e grande pioneiro Humberto Mauro, no prefácio que fez para meu livro Plano geral do cinema brasileiro, no qual descreve o fracasso da empresa produtora Febo Brasil Filme Sociedade Anônima, que ele, Homero Cortes, Agenor de Barros e Pedro Camelo haviam fundado em Cataguazes, em 1925. Explicando as causas do colapso da produtora, Humberto Mauro, escreveu: “O obstáculo que fez fracassar a Febo foi uma resistência compacta e invencível entre os distribuidores e exibidores, presos que estavam ao monopólio estrangeiro que avassalava com seus produtos o mercado brasileiro de ponta a ponta”.

 

A denúncia de Humberto Mauro possui impressionante atualidade, pois, na verdade, presidente Lula, ministro Gilberto Gil e Gustavo Dahl, existe hoje no Brasil um monopólio que necessita urgentemente ser examinado e, sobretudo, eliminado, como fizeram os países da União Européia que, por poderosa pressão dos mais famosos cineastas franceses, exigiram, para o cinema dos países que a integram, a exibição obrigatória de 51% para seus filmes. Isso fez o cinema da França, Itália, Espanha, Portugal, Alemanha, Suécia e Holanda ressurgir com ímpeto e reconquistar seu vasto público.

 

Na Ásia houve também fato semelhante, afetando a notável produção de filmes japoneses, cujo mercado também sofreu os efeitos arrasadores do monopólio norte-americano. Contudo, dois países – a Índia e a China – mobilizaram-se e reconquistaram sua produção cinematográfica doméstica. A Índia é, como se sabe, a maior produtora de filmes do mundo, com mais de 800 películas anuais. A China teve, em décadas passadas, uma extraordinária e bela produção cinematográfica. Certa época, remeteu para os Estados Unidos 20 filmes de excepcional qualidade. Somente cinco deles foram exibidos naquele formidável mercado. O governo chinês decretou, imediatamente, que, no ano seguinte, cinco filmes dos Estados Unidos seriam exibidos em seu mercado. No outro ano, mais de 20 filmes chineses ganharam a América e, em contrapartida, também 20 filmes americanos foram admitidos no mercado chinês. Isto é xenofobia? Parece-nos mais sinal de irrefutável soberania.

 

Voltemos ao nosso mundo brasileiro, retomando a temática de nosso “sofrido e teimoso cineminha nacional”, como o definia carinhosamente Alex Viany. Nos dias atuais, apesar de tudo, vem ele, nosso cineminha ou, para outros, nosso cinemão, crescendo pouco a pouco como se houvesse uma reação nacionalista ao predomínio tentacular de Hollywood em nosso mercado. O circuito de Luiz Severiano Ribeiro, assustado com a crescente invasão exibidora norte-americana, está reagindo e abrindo novas salas, principalmente no Rio, capital e interior de São Paulo.

 

Este fato é animador, pois o circuito nacional, ou nacionalizado, poderia dar aos nossos filmes uma prioridade que, na Europa e na Ásia, diversos países conquistaram, com todo o direito, sem afastar, naturalmente, os filmes americanos – estes, contudo, devidamente contidos e regulados em sua exibição.

 

Enquanto isso – poderia perguntar algum leitor –, como seriam colocados em exibição os filmes brasileiros, nessa promissora fase de “retomada do cinema brasileiro”, como se divulga em nossos jornais? Recente reportagem informa que, este ano, mais de 60 filmes brasileiros serão produzidos e, naturalmente, buscarão o mercado exibidor, no país e no exterior. Cacá Diegues desejou saber, pela imprensa, se a “consolidação do cinema brasileiro será uma atividade permanente, ou se assistimos apenas a mais um ciclo que, daqui a pouco, se encerrará com a mesma melancolia dos outros”.

 

Nessa atual etapa do cinema brasileiro, ainda asfixiada pela produção externa, a solução sempre se encontra na formulação da chamada “reserva de mercado”, da prefixada “cota de filmes nacionais” tanto nas salas de exibição, como nas emissoras de televisão que exibem quase que exclusivamente filmes americanos, e que também deverão adotar essas “salvadoras cotas” que permitirão ao nosso cinema garantia de exibição. E qual seria essa cota? – perguntaria o leitor.

 

Seria variável, dependendo do número de películas produzidas a cada ano. Pelo Decreto-Lei nº 1.949, de 30 de dezembro de 1939, a competência para fixar-se a proporcionalidade de filmes nacionais e do exterior foi transferida do Ministério da Educação e Saúde para o Departamento de Imprensa e Propaganda, de triste memória. O artigo 34 do citado texto estabelecia: “Os cinemas são obrigados a exibir anualmente, no mínimo, um filme nacional de entrecho e de longa-metragem”.

 

Um filme por ano, ou sete dias anuais, vêem os leitores a magnanimidade do poder público… E numa época em que a indústria cinematográfica brasileira já dispunha de várias empresas produtoras, algumas movimentando elevados capitais, como a Sonofilmes, a Brasil Vita Filmes, de Carmen Santos, a Cinédia, de Ademar Gonzaga, instalada nos estúdios de São Januário, com programação de vários filmes por ano.

 

Em 1939, Humberto Mauro já havia dirigido Favela dos meus amores, Cidade mulher e Argila, todos para a empresa de Carmen Santos, enquanto filmes como Bonequinha de seda, O ébrio, Pureza, Grito da mocidade e Aves sem ninho, dirigidos por Raul Roulien, recém-chegado de Hollywood, atestavam o grau de maturidade artística e industrial já alcançado pelo cinema brasileiro, digno, portanto, de estímulo menos humilhante do que a reserva compulsória de apenas um filme por ano. Em 1946, a cota de filmes nacionais passou para apenas três filmes nacionais, declarados de “boa qualidade” pelo Serviço de Censura de Diversões Públicas, do Departamento Federal de Segurança Pública. Sete anos de intervalo separavam a elevação minguada de um para três filmes com exibição compulsória, cada ano, em todos os cinemas do país.

 

Nesse panorama contristador de nossa reserva de mercado, destacou-se, em 1951, a modificação do critério da proporcionalidade: o Decreto nº 30.179, de novembro daquele ano, determinava que “todos os cinemas existentes no território nacional ficam obrigados a exibir filmes nacionais de longa-metragem, na proporção mínima de um nacional por oito estrangeiros”. Em 1959, foi baixado o Decreto nº 47.466, de 22 de dezembro, pelo qual “todos os cinemas existentes no país ficam obrigados a exibir filmes nacionais de longa-metragem durante, pelo menos, 42 dias por ano, compreendendo, obrigatoriamente, por quadrimestre, o mínimo de 14 dias e, nesse total, dois sábados e dois domingos.”

 

A modificação seguinte foi feita pelo Instituto Nacional do Cinema, criado pelo Decreto-Lei nº 43, de 18 de novembro de 1966, em cujo artigo 29 do seu regulamento, determinou-se que “todos os cinemas existentes no território nacional ficam obrigados a exibir filmes nacionais de longa-metragem durante determinado número de dias por ano, a ser fixado pelo Conselho Deliberativo, devendo a proposta levar em consideração o desenvolvimento da produção nacional verificada cada ano e as possibilidades de programação do mercado exibidor”.

 

A determinação final das “possibilidades de programação do mercado exibidor” foi o empecilho final para uma reserva de mercado razoavelmente equilibrada com o desenvolvimento da produção nacional de filmes, pois, como se tornou óbvio, a chamada “programação do mercado exibidor” estava sufocada, como se sabe, pelo volume anual de distribuição e exibição dos filmes americanos, como acontece até hoje.

 

Em meio a intensa campanha contra essas “possibilidades de programação”, o Conselho Deliberativo do INC, presidido então por Ricardo Cravo Albin, baixou a Resolução nº 38, de 30 de junho de 1970, formulando um novo critério, melhor planificado, baseando-se no número de dias de funcionamento dos cinemas, em todo o país. Este critério também foi adotado pela Instrução Normativa nº 48, baixada pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) em 11 de janeiro deste ano.

 

A resolução de Ricardo Cravo Albin, com funcionamento a partir de 1º de janeiro de 1971, previa a seguinte tabela para a exibição de nossos filmes: 28 dias por trimestre para cinemas funcionando os sete dias da semana; 24 dias para os cinemas funcionando seis dias por semana; 20 dias para os que funcionavam durante cinco dias; 16 para os de quatro dias; 12 para os de três; oito para os de dois e quatro para os que funcionassem somente um dia por semana.

 

Pela Instrução Normativa da Ancine, ficou determinado, em 2005 e neste ano em curso, que uma sala, funcionando 35 dias por ano, deverá exibir dois títulos; duas salas, funcionando 84 dias por ano, exibirá dois títulos; três salas, com 147 dias, três títulos; quatro salas, com 224 dias, quatro títulos; cinco salas, com 280 dias, cinco títulos; seis salas, com 378 dias, seis títulos; sete salas, com 441 dias, sete títulos; oito salas, com 448 dias, oito títulos; nove salas, com 448 dias, nove títulos; 10 salas, com 455 dias, 10 títulos; 10 salas, funcionando 462 dias, 11 títulos; mais de 11 salas, finalmente, funcionando 462 dias mais sete dias por sala adicional.

 

Este critério nos parece o mais correto e eficiente e nos permite supor, com a autoridade adquirida pela Ancine, hoje em boas mãos, que o cinema brasileiro alcançou, finalmente, uma legislação capaz de fornecer-lhe um mercado compulsório necessário a seu crescente e soberano desenvolvimento. Já era em tempo, pois desde a brilhante “retomada”, 22 filmes nacionais, desde 1995 aos nossos dias, alcançaram a esplêndida cifra de mais de 1 milhão de espectadores, bastando citar, entre muitos outros, Carandiru, de 2003, com 4.693.853 espectadores; Cidade de Deus, de 2002, com 3.307.746; Lisbela e o prisioneiro, de 2003, com 3.174.643; Cazuza – O tempo não pára, de 2004, com 3.006.955; Os normais, de 2003, com 2.996.467; Xuxa e os duendes, de 2001, com 2.657.091; Olga, de 2004, com 2.353.275, etc. etc.

 

Estamos no caminho certo, caro leitor. Com monopólio, ou sem ele, nosso “teimoso e sofrido cineminha nacional” vai para a frente e, cada vez, fará filmes de sucesso tão grande como as “cachoeiras” sempre citadas por nosso querido e inesquecível Humberto Mauro.

 

Geraldo Santos Pereira é cineasta

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