Cleonice Berardinelli – Candidata à ABL foi mestra dos acadêmicos

Cleonice BerardinelliSeu português é tão perfeito que enquanto Cleonice Berardinelli narra histórias de seus 65 anos de magistério a impressão é que se está lendo um livro de Eça de Queirós. Nenhum pronome fora do lugar. Nada de gírias ou coloquialismos. A sintaxe é completamente aportuguesada.

“Fala-se muito mal o português hoje em dia”, lamenta. Culpa das novelas, dos professores mal preparados nas escolas. “Até mesmo meus alunos cometem alguns erros que não me agradam nada. Eu sou uma espécie de terror. Mas sou amiga deles, concito a que falem”, brinca.

A severidade na correção dos textos não afasta os alunos da pós-graduação da PUC e da UFRJ onde ela ainda dá aulas. Pelo contrário.

Pelos seus cálculos já ensinou a mais de mil alunos. Aos 93 anos, Cleonice é a maior especialista brasileira em literatura portuguesa.

Seu conhecimento sobre Luís de Camões, Eça, Fernando Pessoa e José Saramago, entre outros, é credencial mais do que suficiente para se candidatar à cadeira número 8 da Academia Brasileira de Letras, vaga desde setembro com a morte de Antonio Olinto. Seu prestígio entre os acadêmicos é tanto que, no chá das quintas-feiras na casa fundada por Machado de Assis, o comentário é que a eleição, em dezembro, será uma aclamação. Por enquanto, seu único adversário é Ronaldo Costa Couto, ex- ministro de José Sarney.

Campanha, ela não faz. “Entrar para a Academia Brasileira de Letras nunca foi uma ideia que me viesse. Não é nem por modéstia. É por falta de tempo”, diz. Mas achou uma honra fazer parte dos imortais e cedeu aos apelos de ex-alunos que já têm assento garantido na ABL. O primeiro a procurá-la foi Afonso Arinos de Mello Franco, seu aluno em 1948.

Cleonice concordou com a sugestão e ganhou a adesão de cabos eleitorais poderosos, como Antonio Carlos Secchin, Domício Proença, Ana Maria Machado e Nélida Piñon.

O prestígio de Cleonice não se restringe ao Brasil. Formada pela USP, já deu aulas durante dois anos no mestrado de literatura da Universidade de Lisboa. Todos anos faz palestras em Paris e em Lisboa.

Em 2010, vai discorrer sobre a poesia de Machado de Assis para os portugueses e sobre o poeta lusitano Cesario Verde para os franceses.

José Saramago, o único escritor de língua portuguesa a ganhar o Nobel de Literatura, a considera uma amiga.

Quando esteve no Rio no ano passado para lançar seu romance, A Viagem do Elefante, na ABL, citou Cleonice no discurso aos acadêmicos. No seu blog, O Caderno de Saramago, escreveu que Cleonice faz parte “da aristocracia do espírito, essa que sim é necessária para a evolução da sociedade”. A paixão é recíproca. “Ah, Saramago. Eu conheço tudo o que ele escreveu. Eu não resisto. Ele tem certo conservadorismo na maneira que narra. Não quebra as narrativas. Não faz mirabolantes fantasias de alguns mais modernos. Ele faz aquela inovação de escrever quase sem pontuação.” Não bastasse tudo isso, acha que o autor português privilegia as mulheres em seus romances. E disse isso a ele. “As mulheres têm que ser muito gratas. Saramago nos trata muito bem. Veja por exemplo Blimunda, de Memorial do Convento. É uma mulher extraordinária. Ela é a luminosidade do livro.” Paixão assim tão especial Cleonice reserva também a seus poetas mais queridos: Luís de Camões, autor de Os Lusíadas, e Fernando Pessoa.

Não consegue escolher um favorito. “Ponho-os lado a lado. A poesia de Pessoa é muito séria, muito triste, muito forte. É justamente por aí que ele nos pega.” A comparação entre os dois poetas foi inevitável até para Pessoa. “Ele tinha uma dor de cotovelo de Camões terrível”, acredita. Cleonice cita um texto de Pessoa que, aos 24 anos, anunciava que estava se preparando o momento de surgir o poeta máximo, o que expressaria a poesia de Portugal. E que esse seria o supra-Camões.

“Percebemos que ele está falando dele. Entretanto, Pessoa sentia que devia a Camões. Ele sabia o que era Camões”, diz Cleonice, com os olhos marejados de lágrimas.

Cleonice ama a poesia. “Tenho o ritmo dentro de mim”, acredita. No momento está longe dos versos. Não sabe por que, mas o Livro do Desassossego está na moda no meio acadêmico. Tem três alunos que ela orienta no doutorado estudando este romance de Fernando Pessoa. “Isto está me dando muito trabalho”, suspira. Cleonice, é claro, já tinha lido a primeira edição do livro. Mas, recentemente, saiu uma mais completa, de 500 páginas. “Estou tendo que ler e estudar. É um livro que completa o quadro pessoano. Mas é um livro pesado. O personagem é um guarda-livros que vive entre o trabalho e a casa. Da janela ele olha a rua. O que ele escreve são retalhos de vida, de paisagem. São reflexões. Não há um fio condutor.” A trabalheira para orientar as teses deixa Cleonice encantada. Passa horas no seu apartamento em Copacabana lendo, recebendo alunos.

Recentemente, ouviu uma bronca de uma amiga quando lhe disse que não poderia ir ao cinema num domingo porque precisava preparar uma aula sobre o teatro de Pessoa. Logo ela que é considerada a especialista no poeta. “Cleonice, você é de um ridículo.” Achou graça, mas ficou em casa. Acha que é essa vontade de trabalhar e aprender que a mantém viva. “O convívio com gente jovem me remoça. Se eu tivesse só amigas de 90 anos, eu estaria no máximo fazendo tricô para os meus bisnetos.”

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