Caso Mengele: a vida e a morte (secretas) de um nazista no Brasil

 

Baviera Tropical, livro-reportagem da jornalista Betina Anton, é o melhor trabalho já feito sobre a estada de 18 anos do alemão Joseph Mengele em São Paulo

A lista dos grandes lançamentos de 2023 passará a contar, a partir de sábado (11), com a presença de Baviera Tropical, livro-reportagem da jornalista Betina Anton. A sessão de autógrafos que a autora e a Editora Todavia promovem na Livraria da Travessa do Shopping Villa-Lobos, em São Paulo, marca a chegada ao mercado editorial do melhor trabalho já feito sobre a estada do alemão Joseph Mengele no Brasil.

Além de oficial da SS (Schutzstaffel, a força paramilitar do Partido Nazista), Mengele era médico com experiência em pesquisas genéticas. Suas credenciais, aliadas à fidelidade a Adolf Hitler, alçaram-no a um posto estratégico em Auschwitz durante a 2ª Guerra Mundial. Sua função: triar os prisioneiros judeus que chegavam ao campo de concentração no sul da Polônia. Era ele que decidia quem deveria morrer nas câmaras de gás e quem seria cobaia em experimentos com humanos – daí seu cognome de “anjo da morte”. Ao menos 400 mil judeus pereceram sob suas ordens.

A exemplo de centenas de outros nazistas, Mengele fugiu para a América do Sul após o fim da 2ª Guerra, com a ajuda da Igreja Católica, que criou rotas de fuga conhecidas como “caminhos dos ratos”. Ele permaneceu por dez anos na Argentina, onde o presidente Juan Domingo Perón criara a “rede Odessa”, facilitando a entrada de milhares de alemães, sendo ao menos 300 criminosos de guerra (conforme o Centro Simon Wiesenthal).

Avisado de que “caçadores de nazistas” haviam descoberto seu paradeiro, Mengele se deslocou para o Paraguai e, pouco tempo depois, chegou ao Brasil. O ano era 1961. Baviera Tropical se dedica a investigar o que aconteceu desde então na vida do nazista, que fixou residência em municípios paulistas.

Mengele foi bem recebido em todas as cidades por onde passou – Nova Europa, Serra Negra, Eldorado Paulista, Caieiras, Diadema e Embu, além da própria capital, São Paulo. Evitava expor sua identidade – até que sentisse confiança da família que o acolhia. Quase sempre às voltas com europeus expatriados, viveu praticamente sem risco, longe dos holofotes.

Conforme a pesquisa de Betina Anton, nos 30 anos de seu autoexílio na América do Sul, houve apenas duas ocasiões em que serviços de espionagem estiveram realmente próximos de Mengele – uma na Argentina, outra no Brasil. Embora se tratasse do criminoso de guerra mais procurado no mundo, jamais foi encontrado em vida.

Em 7 de fevereiro de 1979, sofreu um AVC (acidente vascular cerebral) na Praia da Enseada, em Bertioga, levando-o a morrer afogado. Foi enterrado igualmente às escondidas no Cemitério de Nossa Senhora do Rosário, em Embu, com o nome falso de Wolfgang Gerhard, inspirado num amigo nazista que o ajudou a entrar no Brasil. Para uma vida secreta, uma morte igual.

A verdadeira identidade de Mengele só veio a público em 1985, quando a polícia alemã interceptou uma carta do Brasil à família do nazista. Uma força-tarefa entre os dois países avançou na exumação o corpo e na confirmação de que Wolfgang Gerhard era, na realidade, um dos mais procurados criminosos da 2ª Guerra. A ossada de Mengele – que ficou guardada por 30 anos no cofre do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo – agora está no acervo da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Todos esses fatos, uns mais, outros menos, já eram de domínio público. O livro de Betina Anton se destaca por revelar detalhes das estratégias de Mengele para sobreviver em anonimato do outro lado do Atlântico. Só no Brasil, foram 18 anos de escondimento. Seja em cartas, seja em seu diário, demonstrava irritação com a ideia de um mea-culpa sobre as atrocidades em Auschwitz. “Não me sinto minimamente compelido a me justificar ou me desculpar”, chegou a escrever ao filho, Rolf Mengele.

Outros célebres criminosos nazistas se instalaram em São Paulo, mas foram descobertos em vida. Franz Stangl, comandante do campo de concentração de Treblinka e responsável pela morte de quase 900 mil judeus, viveu por 16 anos na região metropolitana de São Paulo, ao lado da família alemã. Sem sequer esconder a identidade, serviu como operário da Volkswagen e só foi achado em 1967. Morreu quatro anos depois, numa prisão da Alemanha, para onde fora extraditado.

Já Gustav Franz Wagner, a “besta de Sobibór”, com 250 mil judeus mortos no histórico, trabalhou por 28 anos como caseiro no Sítio Pedra Grande, em Atibaia (SP). Tal qual Mengele e Stangl, viera ao País por uma das “rotas dos ratos”. Casado com uma brasileira, teve sua presença no Brasil exposta na grande mídia em 1978 e chegou a ser preso por alguns meses. Solto, foi encontrado morto a facada, num provável suicídio.

O caso de Mengele sobressai não apenas por sua estatura na hierarquia nazista – mas também por sua capacidade de transitar incólume (e impune) por 34 anos. No início da década de 1960, quando ele fugiu do Paraguai e veio se esconder no Brasil, a maioria dos líderes nazistas já havia morrido. Alguns se suicidaram ainda em 1945, tão logo a humilhante derrota da Alemanha na 2ª Guerra Mundial se revelou inevitável. Foi o caso do próprio führer, Adolf Hitler, e do ministro de Propaganda, Joseph Goebbels.

Em 1946, dez dos 12 condenados à morte no Tribunal de Nuremberg foram enforcados. Hermann Göring, um dos sentenciados, se matou antes da execução. Martin Bormann, que era dado como desparecido e recebeu a condenação in absentia, já estava morto e enterrado – os restos mortais só foram encontrados em 1972.

Para todos os efeitos, Nuremberg, o mais conhecido tribunal de exceção da história, cumpriu a missão simbólica de vingar o nazismo. Ao julgamento sobreveio, em 1948, a criação do Estado de Israel, amplamente apoiada pela comunidade internacional, ainda em choque com as revelações do Holocausto.

Os anos se passaram, e líderes israelenses começaram a se preocupar com o esquecimento dos crimes de guerra contra os judeus. A Guerra Fria tomara conta do noticiário geopolítico. Uma geração inteira poderia crescer sem a memória da Shoá.

Esta foi uma das razões pelas quais, em 1960, Israel resolveu sequestrar o mais célebre dos nazistas que vivia em tranquilidade na Argentina. À parte a criminosa violação da soberania do país sul-americano, a bem-sucedida operação para capturar Adolf Eichmann e levá-lo de Buenos Aires a Jerusalém foi uma demonstração de força da Mossad, o serviço secreto de Israel.

O longo julgamento de Eichmann, recheado de vídeos e depoimentos de famílias que foram levadas aos campos de concentração, resultou não apenas em sua condenação à forca. As imagens do genocídio ajudaram a desencadear uma nova onda de caça aos nazistas. Países como Estados Unidos, Alemanha Ocidental e, claro, Israel chegaram a oferecer recompensas em troca de informações sobre o paradeiro de alemães que participaram, direta ou indiretamente, dos crimes de guerra.

Um boato de que a Mossad estaria atrás de Mengele no Paraguai, para submetê-lo a uma via-crúcis similar à de Eichmann, levou o médico nazista a cruzar a fronteira e se estabelecer no Brasil. Foi recebido pelo amigo nazista Wolfgang Gerhard, de quem se apossou posteriormente do nome – ele também adotou os pseudônimos Fritz Ullmann, Helmut Gregor, Fausto Rindón e Peter Hochbichler.

Havia comunidades alemãs – e nazistas – nas principais metrópoles sul-americanas. Quando estava na Argentina, Mengele se encontrava com Eichmann e outros ex-oficiais. No Brasil, temendo a prisão, a deportação e a morte, deixou o bigode crescer e optou por uma vida mais modesta, embora a família tenha lhe mandado dinheiro regularmente. Caseiro, era telespectador assíduo de novelas, lia romances e ouvia música clássica – notadamente Strauss. Em nada lembrava o assassino sádico de Auschwitz, o nazista sem culpa, a encarnação do Mal.

Ao mergulhar em dezenas de correspondências do “anjo da morte”, Betina Anton confirma que a família Mengele sempre esteve a par de cada endereço de seu representante mais célebre, mas praticamente não o visitou no Brasil. Muita gente o apoiou no Brasil, como o casal húngaro Geza e Gitta Stammer, que o contratou para administrar uma fazenda de café.

A morte do médico nazista numa praia de Bertioga dividiu a opinião de conhecidos. O último casal a abrigá-lo no País – os austríacos Wolfram e Liselotte Bossert – sugeriu uma cremação, de modo que a caça a esse nazista em particular jamais prosperasse. Parentes de Mengele negaram peremptoriamente e sugeriram um enterro em vala comum – opinião que prevaleceu.

Mesmo assim, os Bossert lhe construíram um pequeno santuário caseiro, em sua residência, no bairro paulistano do Brooklin. Foi nesse espaço macabro que, seis anos depois, a Polícia Federal, em operação de busca e apreensão, recolheu fotos, cartas e outros pertences de Mengele.

Até hoje, há quem acredite que Mengele não morreu. Em 1985, quando seu corpo foi exumado, ainda não havia testes de DNA para reconhecimento cadavérico. Mas todos os exames aplicados à época confirmaram sua real identidade. Somente em 1992, com a colaboração do filho de Mengele, foi feita a comparação genética por DNA na Inglaterra. Sim, a ossada era, definitivamente, do oficial nazista.

Afora o Brasil, Baviera Tropical já tem lançamento previsto em sete países – Estados Unidos, Finlândia, Holanda, Hungria, Polônia, Portugal e Sérvia. A história de Josef Mengele não interessa apenas ao leitor brasileiro, alemão ou judeu. É mais uma peça do quebra-cabeça do nazismo e de outros fenômenos que tanto impactaram o século 20.

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