Em 11 de outubro de 1908 nascia um dos maiores compositores da música brasileira: Cartola venceu preconceitos e se eternizou. Leia o artigo de Urariano Mota.
Em boa hora, e como um bom-dia, o Google saúda hoje o compositor Cartola, no dia do seu nascimento. Então a hora é boa para este artigo que publiquei em 2004, no site bilíngüe La Insignia.
Não estranhem por favor a língua, a linguagem e os termos das rosas que serão ouvidos a seguir. As rosas, por serem rosas, não são por isto somente formosura, perfume e delicadeza. Elas também se revoltam, porque a gente burra, carregadinha de preconceitos, não poderia esperar que daquele negro, daquele trabalhador braçal, menos que pedreiro, pois não passava de um servente de obras, que daquele nariz couve-flor pudesse sair qualquer tipo de música. A gente burra, cheia de educação formal, jamais poderia esperar que daquele tipinho magro, sem diploma, pudessem sair, sequer em sonho, tais versos e tais músicas:
“Bate outra vez,
com esperanças o meu coração
pois já vai terminando o verão, enfim
Volto ao jardim
com a certeza que devo chorar
pois bem sei que não queres voltar
para mim
Queixo-me às rosas, que bobagem
as rosas não falam
simplesmente as rosas exalam
o perfume que roubam de ti
Devias vir
para ver os meus olhos tristonhos
E, quem sabe, sonhavas meus sonhos
por fim”
(Ouvir isso, na voz do compositor, em Cartola, discos Marcus Pereira – ouvir isso e ver o dia com os mesmos olhos é o mesmo que ser de ferro e pedra, não ter conhecido As rosas pela primeira vez em 1976, ao lado do cine São Luiz, recebendo a brisa da tarde do Capibaribe, sem nenhuma certeza de que estaria vivo no outro dia, quem sabe, se continuaria a viver naquela mesma tarde. Ouvir isso e não sentir vontade de sair a correr pelas ruas, anunciando: “ouço Cartola, eu sou humano!”, ah, ouvir isso e não receber o cheiro do mar, o sal nos olhos, ah, é simplesmente não ter memória nem caráter nem identidade nenhuma.)
A gente que odiosamente se diz e se chama de “bem-nascida”, a gente que se nutriu de privilégios neste mundo tão desigual, e que de semelhante nutrição jamais possuiu, longinquo sequer, uma iluminação de que o mundo se faz também de doentes, moribundos e rejeitados, e, pior, que acha o mundo assim realizado como uma terra muito justa e normal, pois o mundo, desde que é mundo, sempre foi assim, e não há razão portanto nenhuma em mudar, ah, essa “gente” deveria romper a carcaça animal para ver se nela penetrava
“Ainda é cedo, amor
mal começaste a conhecer a vida
já anuncias a hora de partida
sem saber mesmo o rumo que irás tomar
Presta atenção, querida,
embora eu saiba que estás resolvida
em cada esquina cai um pouco a tua vida
em pouco tempo não serás mais o que és
Ouça-me bem, amor,
presta atenção, o mundo é um moinho
vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
vai reduzir as ilusões a pó
Presta atenção, querida,
de cada amor tu herdarás só o cinismo
quando notares estás à beira do abismo
abismo que cavaste com os teus pés”
(Em 1978, como em outros anos, houve um casal que se separava para quem essa canção foi como uma profecia. Ainda que, como indivíduos, tenham tido uma trajetória de sucesso, material, político, digno de notas nos jornais, ainda assim souberam afinal que todo o conseguido era um amontoado de troféus mortos. Para quê tanto empenho, se afinal a felicidade dos amantes não se completou? Vale mesmo a pena ganhar o mundo, lutar, vencer, se ganhar, ganhar é perder, perder? Se até mesmo o que não se perde é inútil ao fim, vale mesmo a pena vencer o mundo? Então os amantes não possuíam essa perspectiva. Então havia um ser a um canto, a ouvir interminavelmente o vaticínio de Cartola. Que o mundo era um moinho, que o mundo reduziria tudo a pó, que mal começavam terminavam, que na alvorada de um sentimento havia o ocaso, que no amanhecer havia uma noite só e imensa. De repente, quando se pensava que o amor venceria tudo, uma solidão que era um exílio da identidade, uma solidão em que se continua a viver por inércia. Então compreendiam menos, então pensavam que a poesia era só a expressão de um sofrimento. Esta era a sua experiência. Como pedir aos cegos as tonalidades do azul? É preciso ter visto a luz para melhor sentir a sua ausência. Então não compreendiam que um músico, com a sua arte, tomava conta da alma da gente, e de tal maneira, que pensavam: “isto sou eu”. Este conselho, esta advertência à mulher que parte e deixa em cada esquina a própria vida, esse lamento do amante desprezado deixou de ser de Cartola, é de todo amante, no Recife, em Olinda, em São Paulo, em Roma, em Madri, em Hong Kong, em Marte, em qualquer galáxia onde houver humanidade:
“Presta atenção, querida,
embora eu saiba que estás resolvida
em cada esquina cai um pouco a tua vida
em pouco tempo não serás mais o que és
Ouça-me bem, amor,
presta atenção, o mundo é um moinho
vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
vai reduzir as ilusões a pó
Presta atenção, querida,
de cada amor tu herdarás só o cinismo
quando notares estás à beira do abismo
abismo que cavaste com os teus pés” )
Em 1977, um senhor de cabelos que se tingiam de cinza entrou sozinho no Teatro do Parque, no Recife. Dir-se-ia um eletricista, parecia um eletricista, porque era negro e possuía um ar de tranquila e majestosa distinção, mas sem alarde. Um operário, na humildade e discrição. Camisa dupla face. Ele iria, deveria ir cuidar de algum fio solto, ou rever a iluminação do teatro, pensaram todos. Então os que esperavam na fila, notaram os seus grandes óculos escuros, o seu nariz, o seu rosto oval, de um Modigliani na África. Então perceberam que o eletricista era o operário de almas Angenor de Oliveira, o compositor amado e amigo de Noel Rosa, o homem a quem Nelson Sargento não ousava pedir parceria, por vergonha, diante do “compositor finíssimo”. Como, Cartola! Sem tapete vermelho, sem carro reluzente, sem guarda-costas, sem roupas de grife que marcam a diferença de mercado nas almas. Sem trombetas, ele que teria todos os direitos de se anunciar. Então veio a lição, mais uma, insinuada pelo cidadão discreto, de cabeça baixa, a entrar no teatro: que a melhor arte esconde a sua arte, que o artista é a sua arte, que tudo mais é dispensável. Na ocasião, lembro, apenas duvidamos que aquele homem tivesse mesmo a poesia de um Cartola. A gente burra, carregadinha de preconceitos, não poderia esperar que naquele negro, naquele trabalhador braçal, batesse um coração que fosse o nosso, maior que o nosso.
“Devias vir
Para ver os meus olhos tristonhos
E, quem sabe, sonhavas meus sonhos
Por fim”
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