CARRO DE BOI

 

Ilustração de Percy Lau

Rústico, modesto, vagaroso, o carro de boi foi, sem dúvida alguma, um dos fatores que muito concorreram para o progresso rural do Brasil.

Primeiro veículo de transporte que a nossa terra possuiu, o carro de boi, “afundando o chão” virgem do Brasil-Colônia e Império, nele escreveu, com os sulcos paralelos de sua rodas pesadas e maciças, os primeiros capítulos da história do povoamento e agricultura nacionais. Ainda hoje, nas pequenas fazendas de nossa interlândia, onde, pela ausência de boas estradas, a concorrência dos modernos e velozes veículos de carga não chegou, ele continua com sua morosidade característica, mas sempre utilíssimo, a desempenhar obscuramente a missão multissecular de transportar os produtos da terra dadivosa, dos campos de cultura para as sedes dos núcleos agrícolas.

Na geografia da circulação, no Brasil, pode ser estudado como “a inicial, a primeira velocidade”.

Empregado principalmente nos serviços internos das fazendas, o carro de boi é um veículo típico da nossa circulação local. Isso, atualmente, nas regiões do Brasil já servidas pela viação férrea e rodoviária. Outrora o era de circulação geral (embora secundariamente, pois a tropa de muares exercia papel mais importante) trafegando entre vila e cidades, varando sertões e cortando os “gerais” das capitanias, províncias e estados. “A via férrea não extingüiu”- observou Calógeras- “apenas encurtou os percursos do carro de boi”. A muitas estações, terminais e intermediárias, ele ainda vem trazer a carga pesada que o muar não suporta.

Não exige estradas adrede preparadas para se deslocar, ele mesmo as faz, ora rolando no campo limpo ora aproveitando a picada da floresta espessa. Não tem também preferências quanto às naturezas do terrenos e o relevo não constitui obstáculos para a sua circulação, pois roda em qualquer espécie de solo, seja ele arenoso, lamacento ou pedregoso; é questão somente de aumento da força de tração. Daí ser eminentemente prático, perfeitamente ao terreno áspero, transpondo obstáculos naturais por difíceis caminhos, impraticáveis e outras espécies de veículos.

O carro de boi brasileiro é de origem romana. É o plaustrum do Lácio.

Quando da invasão da Península Ibérica pelos romanos houve a introdução do carro de boi nessa parte da Europa. Da região do Minho, tal veículo agrário depois de sofrer prováveis modificações, foi trazido para cá pelo colono luso do século do descobrimento. Desde aquele tempo quase nada mudou em sua linhas gerais. Salvo pequenas alterações de caráter regional, continua a ser o mesmo de há 400 anos. “É um elemento vivo”- diz Câmara Cascudo- “recordando a manhã colonial, com as característica que o governador Tomé de Souza podia ter notado”.

Todo de madeira, compõe-se de duas peças principais: o estrado e o conjunto roda-eixo. O estrado, gradeado ou de pranchas de madeira justapostas, é retangular, apresentando na parte dianteira um varal ou lança – o “cabeçalho”. Em cada borda do estrado são fincadas varas roliças – os “fueiros” – que amparam lateralmente a carga. As rodas, em número de duas, geralmente maciças, por vezes com recortes semilunares, elípticos ou losangulares, são de madeira rija, altas e pesadas, protegidas por um aro de ferro quando rolam em terreno pedregoso. Estão solidamente encaixadas no eixo-móvel, que gira entre quatro peças de madeiras – os “cocões” – embutidas no estrado (duas de cada lado) que se apoia sobre eixo pelos “calços”. Entre o calço e o eixo é colocado um indispensável suplemento – a “cantadeira” – untada com uma pasta de sebo e pó de carvão, para fazer o carro gemer, quando atritada durante a marcha. “carro que não canta não presta. Não é carro!”… O seu gemido característico, ligeiramente modulado, constitui motivo de orgulho para o correiro que não dispensa nunca.

A força de tração é fornecida unicamente por bovinos, dispostos dois a dois – as “juntas” – cujo número varia com o peso de carga, natureza do solo e topografia da região. As juntas são unidas pelas “cangas” que, por sua vez, são ligadas ao cabeçalho por varais articulados – os “cambões”. Tiras de couro – as “tamboeiras” – ligam o cambão entre si. A canga repousa na nuca dos bois, prendendo-os pelo pescoço, que fica entre dois bastões perpendiculares, atados ou embutidos na canga – os “canzis” – cujas pontas inferiores são ligados por uma fita de couro – a “brocha” – passada pela barbela do animal. Atrelada ao cabeçalho fica a “junta-mestra” ou de “pé-de-carro” ou “junta-de-coice”, a mais importante de todas, pois, além de abrir a marcha, sustenta grande parte do peso do carro. A que se lhe segue é chamada “junta-forte” e as outras “juntas-de-frente”.

O boi de carro é forte, musculoso e extremamente dócil. Dois são os seus condutores: o carreiro e o candieiro. O primeiro caminha ao lado do carro, mantendo o ritmo vagaroso da andadura dos bois, ora gritando pelos seus nomes, ora picando-os com o “ferrão” – ponta de ferro presa á extremidade de comprida vara – a “aguilhada” – que ele traz constantemente ao ombro. O segundo, geralmente um menino ou um rapazelho, também munido de aguilhada, vai à frente da junta dianteira ou “da-guia”, dando a direção da marcha.

O carro de boi transporta qualquer espécie de mercadoria. Na ilustração vêmo-lo carregando a lenha. Quando se trata, como neste caso, de carga miúda ou formada de pequenos pedaços, costuma-se ligar as pontas dos fueiros com tiras de couros que servem para prender a carga, amarrando-a solidamente. Para o transporte de grãos, os espaços entre os fueiros são fechados por largas faixas de couro, por tabuado ou por entrançado de bambu.

De utilidade múltipla, seus préstimos são solicitados em todas as ocasiões. Assim, apesar de ser um veículo destinado ao transporte de mercadorias, o carro de boi também conduz pessoas; enquanto nas longas viagens pelo interior – acrescenta Moacir Silva – os homens vencem as distâncias utilizando-se do cavalo ou do burro, ele conduz enfermos, velhos, senhoras e crianças, devidamente guarnecido com uma cobertura de esteira ou de lona, a fim de resguardar os passageiros contra as intempéries.

O carro de boi e o carreiro tem enriquecido grandemente o nosso folclore, fornecendo interessantes e variados temas para pitorescas e expressivas toadas sertanejas.

A carretera platina, carro de boi do pampa que, como o nosso, também foi inestimável fator de povoamento e desenvolvimento econômico, quando da colonização da região do Prata, mereceu belíssimo monumento na formosa capital uruguaia. O utilíssimo carro de boi brasileiro, já celebrizado por Pedro Américo na tela da independência, ainda espera esta consagração.

(SOARES, Lúcio de Castro Soares

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