Dentre os tantos que se dedicaram a estudar o povo brasileiro, gosto de destacar três nomes, que deram gigantescas contribuições para entendermos a história e a formação do nosso povo, e que colocaram esse povo como centro das suas preocupações.
Por Joan Edesson*
Ilustração: Jô de Oliveira
O primeiro desses estudiosos é o cearense João Capistrano de Abreu, responsável por introduzir o povo na nossa historiografia, que até ele se resumia aos grandes feitos das elites, das classes dominantes. O segundo é o mineiro Darcy Ribeiro, que compreendeu a unidade do povo brasileiro estudando a sua diversidade. Povo uno e único, com uma complexa e rica diversidade, na formulação dialética do mestre Darcy. O terceiro é o potiguar Luís da Câmara Cascudo, o que talvez mais fundo mergulhou no Brasil para conhecer os brasileiros.
Três mestres sertanejos, já que o mineiro Darcy nasceu em Montes Claros, no norte de Minas, sertão do polígono das secas. Se devemos a Capistrano o pioneirismo no trato do povo como protagonista da história brasileira, devemos a Darcy a compreensão da nossa unidade. Mas foi Cascudo aquele que, léguas adiante de todos, melhor compreendeu o nosso povo, o brasileiro que ele dizia ser o melhor produto do Brasil.
O provinciano incurável que se recusava a deixar o Rio Grande do Norte, pois “alguém deveria ficar estudando o material economicamente inútil para poder informar dos fatos distantes na hora sugestiva da necessidade”, escreveu 150 livros, 300 artigos e 1.500 cartas. Era um escritor compulsivo, voluptuoso, um homem que paria a palavra. Só é possível entender tal voluptuosidade literária buscando as motivações de Cascudo para escrever tanto e sobre tantas coisas:
“Queria saber a história de todas as cousas do campo e da cidade. Convivências dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço. Percepção medular da contemporaneidade.”
Cascudo buscou incansavelmente a história de todas as coisas do campo e da cidade, como dizia. Alcançou muita coisa, mas tanta, que o poeta Patativa do Assaré, sabiamente, afirmou que “não há em nosso universo/ quem possa dizer em verso/ o que ele em prosa escreveu”.
Cascudo vaquejou a memória dos “brasis” escondidos dentro do grande Brasil, e de lá voltou com o mais completo panorama que um único homem traçou sobre o nosso povo. Seu Dicionário do Folclore Brasileiro, sozinho, já valeria por uma existência. Sua História da alimentação no Brasil, se fosse sua única obra, já bastaria para imortalizá-lo. Quando foi a África, para pesquisar sobre as origens da nossa alimentação, um jornalista indagou-lhe sobre o motivo de sua presença ali. A resposta do mestre veio carregada de poesia: “Vim ver o sol se pondo no mar”.
Creio que o grande mérito de Cascudo foi exatamente o de conseguir uma abrangência tal nos seus estudos sobre o povo brasileiro, que pouquíssimos aspectos foram deixados de fora. Da rede de dormir aos jangadeiros, vaqueiros, cantadores, passando pelos mitos, superstições, costumes, até as tradições da pecuária e os contos populares trazidos de Portugal, quase nada escapou ao olhar arguto do mestre.
Seu interesse não esbarrou apenas no “folclore”, como por vezes se cai na tentação de reduzir a sua obra. Aliás, aos que o tratavam como “folclorista”, com certo reducionismo, com certo menoscabo, Cascudo deu uma resposta deliciosa: “Faço questão de ser tratado por esse vocábulo que tanto amei: professor. Os jornais, na melhor ou na pior das intenções, me chamam folclorista. Folclorista é a puta que os pariu”.
Cascudo estudou os mais variados aspectos da nossa história, as contribuições portuguesa, holandesa, francesa, africana, indígena. Estudou sobre a presença de mouros e judeus na nossa cultura, escreveu sobre Dante Alighieri e a tradição da nossa cultura popular, pesquisou e escreveu sobre a cachaça, o açúcar, foi poeta e crítico literário.
Estudou sobre a religião, preocupado em descobrir como o povo ressignificava os ensinamentos religiosos, tanto nas práticas oficiais quanto nas manifestações religiosas populares, nos oratórios das camarinhas e nas procissões, nos cultos públicos e nos terreiros escondidos.
Cascudo estudou os nossos gestos, nossa forma de olhar, o comportamento do nosso corpo, como elementos da nossa identidade cultural e do nosso dizer, da nossa afirmação cultural. Para os apreciadores da famosa “água que passarinho não bebe” Cascudo escreveu um Prelúdio da cachaça, pesquisa minuciosa, saborosa como tudo o que o mestre fazia.
Cascudo foi, sem dúvida, o descobridor do Brasil. Poucos conseguiram, como ele, se aproximar daquilo que poderíamos chamar de “alma” brasileira. Alma não em um sentido subjetivo e metafísico, mas como a soma dos elementos constitutivos da nossa cultura mestiça e das nossas tradições forjadas num cadinho de múltiplas influências. Essas múltiplas influências, forjadas nesse caldeirão de alquimia chamado Brasil, deram origem ao povo uno de que nos falava Darcy Ribeiro.
Pois foi esse povo uno o único objeto de estudo de Câmara Cascudo. Sem sair do Rio Grande do Norte, sem jamais se afastar da sua terra Natal (com trocadilho e tudo), Cascudo estudou e descobriu os inúmeros brasis que formam o nosso país. Com tanto amor pelo povo, não soa estranha a sua afirmação de que o melhor produto do Brasil é o brasileiro. Plenamente convencido disso, Cascudo dedicou sua vida ao estudo e ao entendimento desse povo.
*Joan Edesson de Oliveira é educador, Mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará.
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