Biografia revela complexidade do ‘rapaz latino-americano’ Belchior

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Escolher Belchior (1946-2017) como tema de uma biografia não é tarefa fácil, pois o artista de voz fanhosa e obra literária tem trajetória de significado singular na canção brasileira. E Jotabê Medeiros, que estreara como escritor no livro O Bisbilhoteiro das Galáxias (Lazuli, 2015), no qual mostra os bastidores de entrevistas com ídolos da música, aceitou o desafio.

Quatro meses depois da morte do cantor, chega às livrarias Belchior – Apenas um Rapaz Latino-Americano, a biografia, de título inevitável, assinada pelo jornalista, crítico musical e colaborador de CartaCapital.

Se a história da vida e da música de Belchior estava até hoje circunscrita a uma quantidade escassa de comentários encontrados em uma série pequena de livros sobre o panorama da música brasileira, que em sua grande maioria o restringem a um compositor regional, oriundo do agrupamento de artistas que ficou conhecido no eixo Rio-São Paulo, a partir da década de 1970, como Pessoal do Ceará, sempre associado ao nome de Elis Regina (que o consagrou nacionalmente ao gravar Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida, em 1976), o lançamento do livro ocupa de modo inédito essa importante lacuna na produção bibliográfica do País.

Nesse sentido, a biografia de Medeiros já teria mérito apenas por abrir caminho para a compreensão de Belchior como cancionista merecedor de ser melhor e mais bem discutido, de ser ouvido. Até então, o universo particular e o denso cancioneiro do artista vinham sendo abordados no campo acadêmico, em teses que analisam características da produção de Belchior.

Não bastasse essa primazia, Medeiros mescla uma narração primorosa e agradável de ler entre o tom culto e o coloquial (estrutura talvez exigida pelo tipo de trabalho do protagonista) e vai contando numa temporalidade quase integralmente cronológica, após um flashback inicial, os feitos da pessoa e do artista Belchior (da infância até a morte, com capítulos especiais dedicados ao autoexílio), os de homem comum e outros que adquirem inflexões épicas.

Os fatos específicos das várias fases da vida e da obra do compositor cearense são apresentados num assemblage que parte do perfil biográfico (iniciado com Belchior ainda vivo) e chega ao ensaio biográfico, com ares por vezes de biografia romanceada.

Em muitos momentos do texto, a trajetória de Belchior, entrelaçada à de pessoas que conviveram com ele (familiares, professores, colegas de convento, ex-esposa, ex-namoradas, filhos, parceiros, amigos e até mesmo o “analista amigo meu”), é descrita com uma intervenção interpretativa e crítica do autor, bem como com algumas liberdades de invenção próprias do romance, o que me faz pensar na máxima “todo grande artista merece um grande biógrafo”. É certo que o autor faz esse trabalho em convergência com o quilate de Belchior.

Um dos primeiros pontos de destaque é a capa do livro, assinada por Elohim Barros e Renata Mein, com foto de Silvio Corrêa, com um projeto gráfico que dialoga tanto com a emblemática capa do disco homônimo de estreia de Elvis Presley, de 1956, em que aparece cantando e tocando energicamente seu violão, quanto com o álbum London Calling da banda The Clash, que em 1979 homenageou o rei do rock.

Diferentemente de Elvis, Paul Simonon está prestes a destruir seu contrabaixo. Já na imagem do livro, Belchior aparece sem instrumento algum, fotografado em 1983, com seu famoso bigode, numa posição em que olha delicadamente para a direita, não voltado para o espectador.

A intertextualidade visual incitada na capa do livro aponta para duas características marcantes na identidade musical de Belchior e retratadas no livro: a sensualidade, tal qual Elvis; e a rebeldia, à maneira de Simonon.

Paradoxalmente à imagem instituída na canção-identidade que singularizou o artista na história da música brasileira, Belchior foi muitos, muito além de apenas um rapaz.

A própria quarta capa do livro já anuncia aos leitores que ali dentro ele vai encontrar um Belchior múltiplo e complexo: “Um erudito de disciplina monástica, um hippie vivendo num prédio em construção, um poeta fã de João Cabral e Bob Dylan, um músico experimental, um incorrigível Don Juan, um pintor de retratos, um pop star, um pai de família, um desaparecido”.

Todas essas personas são desvendadas nos 15 capítulos. Em sua maioria curtos, com feição de artigo jornalístico, ao mesmo tempo que guardam uma interdependência no formato livro, poderiam ser lidos autonomamente.

Os títulos ora citam trechos de músicas de Belchior (“O que pesa no norte cai no sul”, “Que esse canto torto corte a carne de vocês”), ora revelam a posição crítica do autor com relação à história do biografado (“Aquele amistoso pessoal do Ceará”, “Bangalôs, charqueadas e acampamentos”).

Diferencial e charme da biografia é o desempenho lúcido do escritor na análise de discos fundamentais de Belchior, como Mote e Glosa (1974), Alucinação (1976) e Coração Selvagem (1977), com um capítulo cada um: “A obra-prima que te fez passar fome”, “Amar e mudar as coisas me interessa mais” e “Vida, pisa devagar”.

Em “A verdade está no vinho”, o autor analisa conjuntamente os álbuns Todos os Sentidos (1978), Era uma Vez um Homem e o Seu Tempo (1979), Objeto Direto (1980) e Paraíso (1982). O leitor vai se deliciar com as curiosidades do contexto de produção de canções célebres.

Algumas das mais interessantes são a gênese do mote “eu sou apenas um rapaz latino-americano” e o surgimento da parceria entre Belchior e Fagner na canção lírica praieira Mucuripe (1972), apresentada a Roberto Carlos, que a gravaria em 1975.

Medeiros também relata como uma paixão por uma mulher originou o disco de intérprete do profícuo compositor: o CD praticamente desconhecido Vício Elegante (1996), onde registrou músicas de Caetano, Chico, Roberto e Erasmo Carlos.

Um dos trechos mais significativos dá-se quando o autor desvela o lado “fingidor” de Belchior, mostrando que muito da narrativa reproduzida até hoje sobre o artista faz parte de uma mitologia criada pelo compositor sobralense como, por exemplo, a existência do grandioso nome “Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes”, o fato de vir de uma família de 23 irmãos e as características de seus ascendentes (a mãe ter cantado em coro de Igreja, o pai ter sido bodegueiro e juiz).

Belchior deixou claro de modo inequívoco ao público o investimento em um exercício de figuração, ou seja, o trabalho de construção da imagem de si no campo da música brasileira, que envolve constantemente a preocupação com a filiação, como prova trecho da canção Rock Romance de um Robô Goliardo (1984): Mas não confiem em mim: eu não existo!/ sou apenas o personagem que diz isto/ vou contar para vocês a vida que eu inventei pra mim.

O livro faz um sumário da identidade musical de Belchior, aguçando o olhar com relação à sua posição no mapa da canção nacional, ao mesmo tempo que radiografa a história da moderna música cearense e da chegada ao “Sul Maravilha” dessa geração (de Ednardo, Fagner, Rodger Rogério, Téti, Fausto Nilo, Jorge Mello e tantos outros).

Além disso, como ensinam o filósofo russo Bakhtin e o teórico francês Maingueneau, a leitura evidencia que por trás da produção de Belchior (o “autor-criador”, que emerge da obra propriamente dita) existe sobretudo um homem (o “autor-pessoa”, sujeito empírico, elemento social da vida).

A biografia do artista cearense comprova assim que a música de Belchior só pode ser compreendida na imbricação necessária à sua trajetória de vida, pois, como ele mesmo cantou no clássico Como Nossos Pais, qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa.

Josely Teixeira Carlos, cearense, é professora de linguística, pesquisadora da USP e autora da tese Fosse um Chico, um Gil, um Caetano – Uma análise retórico-discursiva das relações polêmicas na construção da identidade do cancionista Belchior.

Fonte: CartaCapital

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