Assis Valente passou a vida esperando a felicidade (e não a encontrou)

Carmem Miranda e Assis Valente
Carmem Miranda e Assis Valente

Ele passou 50 anos numa frenética busca pela alegria, sentimento que poucas vezes encontrou. Suas canções se tornaram crônicas cariocas e, principalmente, espaço para a confissão dos dissabores. Teve o prazer do reconhecimento, de se sentir parte de algo. Mas quando perdeu a notoriedade, decidiu encerrar a vida em frente ao mar do Rio de Janeiro. Não pôde ver o sucesso que faria anos depois.

 

Era fim da tarde de 11 de março de 1958. Mergulhado em dramas pessoais e com um enorme sentimento de solidão, o baiano de 49 anos escreveu, com sofreguidão, uma longa e detalhada carta na qual explicava a bobagem que viria a fazer. “Morro por minha vontade. Estou sentindo apenas a cruel saudade de tudo e de todos.” Assinou o papel e, sentado num banco em frente à Praia do Russel, no Rio, bebeu guaraná com formicida. Morreu minutos depois.

 

Levara uma vida de abandono, amargura, vaidade e fugaz reconhecimento. Não se conformava com o ostracismo que o mundo havia lhe imposto. Mas não era apenas isso. Para entender o que lhe fez chegar ao suicídio – a derradeira de três tentativas –, é necessário voltar ao começo de tudo.

 

O menino José de Assis Valente nasceu em 19 de março de 1908 na Bahia. A cidade natal é confusa para os biógrafos. Uns dizem que foi entre Bom Jardim e Patioba. Ele, numa entrevista ao Cine Rádio Jornal, afirmou ser de Campo da Pólvora (“por isso tenho essa pele queimada”).

 

O certo é que teve uma infância atribulada. Ainda pequeno, foi levado de casa e criado por outro casal, que mudou para Salvador e, pouco depois, para o Rio. Com um detalhe: sem ele, que ficou sozinho na capital baiana.

 

Virou-se como podia. Profissionalizou-se ainda jovem: especialista em prótese dentária. Mas o que queria era ser artista, a atração principal, receber aplausos. Os primeiros passos foram como orador de circo, improvisando versos de poemas, e desenhista de uma revista soteropolitana.

 

Entre próteses, desenhos e samba

Em 1928, decidiu mudar para o Rio. Logo empregou-se na oficina de um protético. Mas gostava mesmo era de desenhar, atividade que tomava suas noites e rendia algum dinheiro nas revistas da cidade.

 

Quando conheceu o compositor Heitor dos Prazeres, também ligado às artes plásticas, a sua história começou a mudar. Heitor se impressionou com a facilidade de o baiano compor versos, sempre intuitivos. Com o decisivo incentivo do amigo, Assis teve o primeiro samba gravado: Tem Francesa no Morro, por Araci Côrtes.

 

No mesmo ano faria o que considerava a sua melhor canção, criada na noite de Natal de 1932: Boas Festas. Estava sozinho em casa, triste, quando viu a imagem de uma menina com os sapatinhos sobre a cama, esperando o presente de Papai Noel. Foi o suficiente para nascer o clássico natalino – cantado até hoje, ironicamente, como um símbolo de alegria: Anoiteceu, o sino gemeu / E a gente ficou feliz a rezar / Papai Noel, vê se você tem / A felicidade pra você me dar / Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel…

 

Sucesso em Carmen Miranda

Ainda em 1932, Assis assistiu a uma apresentação de Carmen Miranda, jovem cantora que o encantou instantaneamente. Carmen também ficou entusiasmada por aquele baiano cheio de elegância, educado e com um sorriso cativante. Ele passou a compor canções exclusivamente para a Pequena Notável. Foram 24 gravações, quase todas sucessos. Entre elas, E o Mundo Não se Acabou, Recenseamento e a genial Camisa Listrada: Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí / Em vez de tomar chá com torrada ele bebeu Parati…

 

Estava no auge da fama, sentindo-se importante e amado pelo público, quando Carmen, em 1939, decidiu mudar para os Estados Unidos. Foi um baque. Assis sentiu-se traído, abandonado. E, pior: tinha dificuldade de compor para outras cantoras.

 

Daí em diante a carreira começou a decair. Novos ritmos tocavam nas rádios e sua música passou a ser considerada obsoleta. Não conseguia – e muitas vezes não queria – acompanhar as novidades. Emplacou alguns sucessos, como o clássico Fez Bobagem, de 1942, gravado por Araci de Almeida. Mas sem a mesma repercussão de antes. Também não teve êxito no casamento com Nadyle da Silva Santos, que durou menos de três anos. Com ela teve sua única filha.

 

Para alguns estudiosos da música brasileira, como Tárik de Souza, o verso “beijei na boca de quem não devia” (entre outros) contido na canção E o Mundo Não se Acabou era uma autorreferência à homossexualidade de Assis Valente, que não tocava no assunto devido ao enorme preconceito da época. “Assis, que levava vida dupla para escapar do preconceito, fez a maioria de suas músicas no feminino exteriorizando uma anima alegre, proibida na vida real”, conta Tárik no livro Tem mais samba (editora 34).

 

Vendo a fama de longe e com dívidas quase impagáveis, tentou o suicídio duas vezes. Não parou de compor, mas boa parte das criações servia apenas para lotar as gavetas. Poucos queriam gravar um compositor que só estampava as manchetes por tentar se matar. Cada vez mais se afastava das pessoas. Até que, uma semana antes de completar 50 anos, conseguiu dar cabo à vida.

 

O sucesso que sempre perseguiu viria pouco depois. Não mais na voz de Carmen Miranda, mas pelas sucessivas regravações a partir dos anos 1960 – destaque para os Novos Baianos, que transformaram Brasil Pandeiro num estrondoso sucesso nacional.

 

Uma das mais regravadas é o samba Alegria, um marco na carreira e, sobretudo, uma das mais elaboradas sínteses de sua existência. Uma vida na qual a dor e o prazer coexistiram numa eterna busca por um sentimento que nunca alcançaria: Esperando a felicidade / Para ver se eu vou melhorar / Vou cantando, fingindo alegria / Para a humanidade não me ver chorar…

 

FONTE59

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