Tarso Genro
O primeiro pressuposto para um avanço significativo na qualidade da educação básica no Brasil já está constituído. A educação passou a ser um importante tema político e é uma agenda nacional. Foi assimilada, de forma universal, como elemento de construção de um projeto de nação. Democracia, República, modernização democrática, inclusão, distribuição de renda e coesão social não ocorrerão sem uma revolução qualitativa na educação básica do país.
Isso não faz “tábula rasa” do que foi conquistado até agora. Pelo contrário, a capilaridade da educação fundamental no Brasil e os seus limites de qualidade é que geraram a consciência da necessidade de uma outra revolução. Ela pode ser sintetizada na busca da qualidade da educação básica como um todo e na desobstrução do “gargalo do ensino médio” (e técnico) como próximo passo, cuja sustentação política poderá vir de uma ampla coalizão de forças, de caráter pluripartidário, enraizada em todas as regiões do país.
Muitas sugestões importantes têm vertido por artigos, entrevistas e “papers” que revelam o grande acúmulo da sociedade brasileira e dos seus especialistas nesse assunto decisivo para o nosso futuro. São particularmente interessantes as posições, apresentadas como verdadeiras novidades, de que a questão não é de financiamento nem de processos pedagógicos. O verdadeiro problema são os “métodos de repasse”, já que os atuais métodos (do Fundef, por exemplo) não levam em consideração a necessidade de um empresarial concurso de qualidade e estímulo “gerencial” para uso dos recursos destinados aos Estados e municípios.
Trata-se, na verdade, da sobreposição de uma visão puramente técnica e aparentemente neutra a um acúmulo feito -ao longo de décadas- pelos melhores especialistas em educação no Brasil e no mundo. Tal acúmulo vincula a solução da questão educacional, principalmente “de base”, ao nível dos investimentos públicos destinados à educação. Investimentos para serem aplicados em projetos de formação e financiamento da infra-estrutura escolar ou para pagar salários dignos ao magistério, o que é pressuposto de qualquer democracia avançada e civilizada.
Aquela receita omite um dado talvez não muito simpático aos autores do novo diagnóstico: para ter um bom gerenciamento é necessário ter o que gerenciar. E, para que se tenha o que gerenciar, é preciso enfrentar o problema educacional mais agudo do Brasil, a fim de que o país se realize como Federação: a situação da educação básica nas nossas regiões mais pobres (inclusive dentro do Sul moderno); situação essa que exclui vastas partes reais da nação da Federação fictícia. Nessas regiões a infra-estrutura escolar é ruim, muitos alunos têm fome, os professores não são mal remunerados, são pessimamente remunerados, e não têm nenhum estímulo à sua formação, muito menos para realizar um bom “gerenciamento”. O próprio ingresso na licenciatura não é cogitado, porque a carreira não tem o mínimo de atratividade nem futuro.
Faço essas considerações não para desqualificar a proposta de melhoria no sistema de repasses, mas para dizer que não foi o sistema de repasses do Fundef que gerou a “crise de qualidade” na educação fundamental. Mesmo porque a qualidade no gerenciamento é diferente de Estado para Estado.
O que gerou a crise de qualidade foi a rápida (e positiva) expansão do ensino básico nos últimos 40 anos, não acompanhada de recursos financeiros e humanos para que ela fosse feita com qualidade. Tal fato foi determinado, a par dessa situação de fundo, também pela ausência de estratégias de longo curso, por parte da União, para estimular a formação de professores e a própria expansão da licenciatura.
A expansão da licenciatura, por seu turno, só seria real (porque ela não é mera “oferta de vagas”) se fosse combinada com um programa realista de profissionalização digna dos professores. E esta começaria com uma ação regulatória, de alcance federativo, para melhorar significativamente os padrões remuneratórios do magistério nos Estados e municípios, com a colaboração expressiva de recursos da União. Esse é o ponto de partida do Fundeb, que não é uma mágica gerencial, mas uma base sólida para todo o resto. Inclusive para a consolidação, ampliação e qualificação da Escola de Gestores, que o MEC já começou a implantar com os Estados.
A seletividade e a qualidade dos gastos e investimentos públicos são, obviamente, uma questão sempre importante, mas o seu processo de aperfeiçoamento não precede nem sucede a quantificação dos recursos necessários para um determinado programa público. A própria quantificação deve conter, na sua definição, seleção e qualidade, e o próprio gestor do gasto deve ser preparado no processo político de escolha de prioridades e indicação de fontes dos recursos.
A educação é uma questão política de Estado de caráter estratégico, não um “nicho” do mercado para experimentação dos princípios da administração e da contabilidade privadas. Esses princípios podem servir como instrumentos acessórios, não como fundamentos de uma política educacional republicana.
Tarso Genro, 57, advogado, é o ministro da Educação. Foi ministro da Secretaria Especial do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (2003).