Sandra Koutsoukos fala sobre o universo dos zoológicos de pessoas e shows de horror dos séculos XIX e XX e conta também sobre o processo de escrita do livro Zoológicos humanos
O livro Zoológicos humanos: gente em exibição na era do imperialismo faz parte da coleção Históri@ Illustrada, uma iniciativa da Editora da Unicamp de publicar pesquisas em História Social e da Cultura. Ele está disponível em formato impresso e em e-book, ambos com material audiovisual, que, no caso da versão impressa, pode ser acessado por meio de QR Codes.
Escrita por Sandra Koutsoukos, pós-doutorada em História da Fotografia, a obra traz diversas fotografias e outras mídias que mostram pessoas em zoológicos e freakshows. Ao longo das páginas, a autora desvenda as histórias por trás desses registros e apresenta ao leitor as teorias racistas que vigoravam na época.
A imagem da capa e o título são impactantes. Você gostaria de comentá-los? O que explicaria a exibição de pessoas em zoológicos e em shows de aberrações?
O termo “zoológicos humanos”, até onde sei, foi cunhado por historiadores e antropólogos franceses e apareceu pela primeira vez em uma publicação de 2002. É um termo forte, sim, e é usado fartamente hoje em dia pelo meio acadêmico como uma crítica à desumanidade e ao racismo daqueles eventos, que exibiram numerosos povos de culturas consideradas “exóticas” e “selvagens” e que atraíram um público curioso, interessado em olhar os “outros”, em se “instruir” sobre eles, e que saía dali sentindo-se melhor com a própria mediocridade, com os sentimentos de superioridade racial, cultural e civilizatória renovados e realçados. A imagem da capa foi escolhida porque ilustra bem o que acontecia naqueles eventos. É uma fotografia de 1930 e foi tirada no Jardim da Aclimatação, em Paris, um local onde milhares de seres humanos foram exibidos por quase seis décadas, a partir de 1877, e onde milhões de pessoas compareceram para vê-los ao vivo. São raras as fotos em que aparecem visitantes junto ao grupo em exibição e, nessa imagem, nós vemos as mulheres com botoques da África Central, uma parte do público e um professor dando uma palestra sobre as africanas; e repare que elas não estavam nem um pouco interessadas no professor ou no público, mas, sim, estavam muito curiosas com o fotógrafo e a sua máquina. Provavelmente, aquela foi a primeira vez em que foram fotografadas.
Alguns motivos explicariam a exibição de pessoas. Para começar, é claro, a curiosidade humana. Exibições de pessoas que eram vistas como “diferentes” aconteceram por séculos, mas se popularizaram em meados do século XIX pelo instinto comercial do americano Phineas Taylor Barnum, que viu na curiosidade a brecha para um mercado e abriu o American Museum na cidade de Nova York, onde passou a apresentar indivíduos que eram considerados “aberrações”, por terem nascido com peculiaridades físicas ou por terem alguma doença deformante. Há uma diferença entre esse tipo de exibição e o que acontecia nos “zoológicos humanos” do Jardim da Aclimatação e das vilas nativas das grandes exposições universais, que eram pensados e organizados por cientistas interessados em provar teorias racistas então em voga; que queriam dizer que havia raças diferentes e que existia uma hierarquia entre elas.
Como foi a seleção das pessoas que teriam suas histórias contadas no livro?
Minhas pesquisas são sempre direcionadas por uma imagem ou um grupo de imagens. A princípio, não escolhi as histórias que ia contar, mas elas foram procuradas após algumas fotos chamarem minha atenção. Porém, é claro, infelizmente, não pude incluir no livro muitas histórias e imagens que também são importantes, mas considerei interessante fazer ali uma seleção que desse para o leitor uma ideia geral do que acontecia nas exibições de pessoas em circos, museus, feiras, zoológicos e instituições científicas.
No decorrer da leitura, vemos imagens, relatos e até mesmo notícias de jornais sobre pessoas negras, indígenas ou com deformidades. Você comentou no livro que fez a pesquisa inicial para uma disciplina na Unicamp. O que a instigou a ir mais além e escrever o livro sobre este tema? E como selecionou as fotos que tratam de um tema tão sensível?
Na verdade, comecei essa pesquisa em 2007, bem antes de montar a referida disciplina, quando estava em Chicago e pude ver as fotos dos grupos que estiveram em exibição na feira de Chicago de 1893. Quando iniciei o pós-doutorado no Departamento de Multimeios do Instituto de Artes da Unicamp, em 2010, com bolsa Fapesp, aproveitei o espaço da disciplina que tinha de oferecer para apresentar a pesquisa, começada três anos antes, e também para aprofundar-me em outros temas relacionados sobre os quais queria aprender mais. Na época não pensava em escrever um livro sobre o assunto, mas, sim, alguns artigos. A ideia do livro surgiu após o convite feito pelas professoras Silvia Hunold Lara e Maria Clementina Pereira Cunha, que me chamaram para participar da coleção Históri@ Illustrada.
Sobre as imagens selecionadas: o tema é sensível, sim, e pode ser muito duro de ler sobre e, principalmente, de olhar o material visual, mas não tinha como tratar dessas histórias sem incluir várias de suas imagens. Não tinha como tratar do assunto a que o livro se refere, que é racismo, sem incluí-las. E, ressalto novamente, são as imagens que direcionam meus temas de pesquisa, não o contrário.
O livro traz um vasto acervo de fotos e, além disso, interage com celulares por meio de QR Codes que direcionam o leitor a vídeos e áudios. Como o uso dessa tecnologia afeta a leitura e a compreensão das histórias apresentadas na obra?
Os dezoito vídeos (que são trechos de filmes e de documentários) e as duas músicas que incluí foram inseridos em locais estratégicos do livro. Eles dialogam com aquelas partes do texto, ou o completam ou mesmo o exemplificam. Por exemplo, no capítulo 1, exponho sobre o filme Vénus noire, de 2010, dirigido por Abdellatif Kechiche, que é baseado na história da sul-africana Sarah Baartman – uma mulher que foi exibida na Inglaterra, na Irlanda e na França por causa da cor de sua pele e de outras características físicas que foram então vistas como “anormais” (aliás, na França ela foi estudada ainda em vida por cientistas e também após a sua morte precoce). Em um segundo momento dessa parte do capítulo 1, onde trato da história de Sarah, apresento e comento o filme, por isso achei relevante incluir ali pedaços das partes que ressalto no texto.
Você poderia comentar sobre as razões que levaram essas pessoas consideradas diferentes pela sociedade branca a aceitarem serem exibidas nos freakshows?
As pessoas que trabalharam nos chamados freakshows, nos museus e circos, como os que foram pensados por empresários como P. T. Barnum, foram, de início, as que eram vistas como “aberrações”, que eram anões, gigantes, mulheres barbadas, pessoas com membros a menos, ou membros a mais, portadores de microcefalia, de hipertricose, de albinismo, de vitiligo etc. Para muitas delas, viver num mundo que não era adaptado para elas e onde não havia muita oportunidade de conseguir emprego, de sobreviver, trabalhar em um circo ou em um museu era a opção. A exibição e a exploração da sua própria diferença podiam significar a única forma de sobreviver num mundo no qual não ser “diferente” às vezes já requeria grande capacidade de adaptação, de competição e de sorte. Para muitas outras pessoas desse mesmo grupo, no entanto, aquela escolha podia ser feita por algum familiar ou guardião, sobretudo, no caso das que não eram mentalmente independentes, como aconteceu com vários portadores de microcefalia. Numerosas histórias de vida dos que trabalharam como “aberrações” são tocantes e bonitas, enquanto outras são extremamente tristes e envolvem uma longa série de abusos.
Uma das histórias presentes no livro é a de Ota Benga, rapaz negro exposto no Zoológico do Bronx. Em qual medida as teorias racistas da época contribuíram para a normalização desse tipo de exposição?
As teorias racistas defendidas por cientistas na época tiveram tudo a ver com a ideia desse tipo de exibição e com a continuação delas por tanto tempo. Mesmo empresários, como os americanos P. T. Barnum e Guillermo Farini, que trabalharam com aqueles considerados “aberrações”, viram nas teorias racistas um novo nicho comercial de retorno imediato e certo, e logo passaram a apresentar pessoas como se fossem o “elo perdido” – aquele ser que, segundo pregavam os cientistas, ficara no limbo entre o macaco e o homem. Ota Benga foi apresentado como o “elo perdido” pelo antropólogo William McGee e o explorador Samuel Phillips Verner (que o comprou num mercado de escravos no Congo e o levou para os Estados Unidos) na Exposição Universal de St. Louis, em 1904, e depois novamente como o “elo perdido”, exibido junto a macacos, no Zoológico do Bronx, em 1906, pelas mãos do diretor do local, William Hornaday, e de um dos fundadores do zoológico, o eugenista Madison Grant. Grant depois escreveria um livro no qual defendia ideias racistas, pregava controle da natalidade, esterilização em massa e duras leis de segregação e antimiscigenação; uma publicação que, segundo o que consta, ajudou a colocar caraminholas sobre racismo científico e eugenia na cabeça de ninguém menos do que Adolf Hitler.
Seu livro traz muitas referências a filmes e documentários e inclusive menciona o real P. T. Barnum. Não faz muito tempo que Hollywood levou para as telas o filme O Rei do Show, que supostamente conta a história de Barnum. Que contribuição esse tipo de filme hollywoodiano traz ao debate sobre o que aconteceu no passado, em que as pessoas eram excluídas simplesmente por sua aparência ser diferente do homem branco ocidental?
Na minha opinião, filmes como esse servem, a princípio, para distrair e entreter o público. Mas, mesmo tendo havido uma forte romantização do personagem de Barnum e das poucas histórias esboçadas em O Rei do Show, esses filmes podem servir também para chamar atenção para o assunto, pois podem despertar em alguém o desejo de saber mais, de checar alguns fatos, de se aprofundar e, quem sabe, dali pode surgir uma nova pesquisa?
Ao longo da leitura, ficamos escandalizados com o que nos é mostrado, mas vivemos em um mundo onde assassinatos são filmados e postados em redes sociais e onde existem atrações turísticas como o favela tour. A sociedade contemporânea ainda não superou os comportamentos que a levaram a considerar normal expor pessoas em freakshows e zoológicos?
Pois então, o livro trata de imagens e histórias que vão do século XIX até certa altura do século XX e que, analisadas em conjunto, expõem o imperialismo, falam de ciência e da mentalidade dos cientistas da época (que eram todos homens brancos de elite, note bem) e, sobretudo, do surgimento de uma ideologia racial – de um racismo que, como você ressaltou no fim da pergunta, a gente vê tão enraizado ainda hoje na sociedade, mesmo que a ciência e as leis agora o desautorizem. Ao juntar esse material, não tinha como não falar do assunto a que ele se refere. E é isso que espero que fique evidente para o leitor; que ele veja uma parte do caminho percorrido por essa coisa tão asquerosa que é o racismo. E que ele consiga fazer essa relação entre o racismo daquele período e o de hoje. Os chamados “zoológicos humanos” existiram e foram desumanos e horríveis, e muitas das pessoas daquele período conseguiam manter-se impassíveis diante daquilo. Se os cientistas, os empresários, a imprensa e os governantes diziam que aquilo era aceitável, por que muitas pessoas achariam que não era? Mas hoje nós encontramos outras visões desumanas, sim, como você mencionou sobre as filmagens e as postagens insensíveis. As pessoas testemunham impassíveis a numerosos atos de violência contra negros e índios e, ainda hoje, conseguem assistir à dor dos outros sem capacidade de indignar-se.
Serviço
Zoológicos humanos: gente em exibição na era do imperialismo
Autor: Sandra Koutsoukos
Editora da Unicamp
ISBN: 9786586253320
1a edição, 2020
416 páginas
R$ 45,00
Do Jornal da Unicamp
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