Cassandra Rios (1932-2002) era um fenômeno literário. Com sua literatura prolífica e pioneira – uma obra de ficção fortemente marcada pelo conteúdo lésbico –, ela vendia milhões de livros. Porém, sob a ditadura militar (1964-1985), tornou-se a artista mais perseguida do País. Teve nada menos que 36 obras censuradas. Um único livro de sua autoria, Eudemônia, foi alvo de 16 processos judiciais. Nem sequer a classe artística – mais unida, à época, contra a barbárie – saiu em defesa da escritora.
A escritora Cassandra Rios, em dois momentos: ao comparecer para interrogatório em 1962, sob acusação de escrever livros “imorais” <i>(à esq.)</i>; e logo após ser absolvida, em 1964 <i>(à dir.)</i> A escritora Cassandra Rios, em dois momentos: ao comparecer para interrogatório em 1962, sob acusação de escrever livros “imorais” (à esq.); e logo após ser absolvida, em 1964 (à dir.)
Conhecida como “papisa da homossexualidade”, “grande pornógrafa” e “safo de Perdizes”, Cassandra foi a primeira mulher a alcançar a marca de 1 milhão de exemplares vendidos, ainda em 1970, no auge da repressão. Naquela década, passou a vender 300 mil livros por ano. Tudo isso num período em que, por conta do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), a censura à sua obra se intensificava.
Cassandra morreu com a reputação de “escritora maldita”, em 2002, num 8 de março, Dia Internacional da Mulher. “Nenhuma de suas obras está nas livrarias, mas são comuns em sebos e em saldões”, registrou o Estadão. Conforme o jornal, a artista “misturava em suas obras homossexualismo feminino, cultos umbandistas, negócios e política, combinação que não respeitava o ‘bom gosto’ que o regime militar desejava preservar”.
“Cassandra falava às claras sobre o prazer feminino. Talvez por isso tenha sido uma das personalidades mais censuradas”, escreveu o escritor Marcelo Rubens Paiva num obituário digno da escritora. “Tratava-se de uma mulher escrevendo sobre tesão de mulher, numa sociedade cuja predominância religiosa afirmava que a mulher apenas se deitava com um homem para gerar filhos de Deus.”
Rubens Paiva vai além: “Seus livros surpreendiam. Cassandra rivalizava com uma outra autora erótica e sua contemporânea, Adelaide Carraro, assim como Hemingway rivalizou com Scott Fitzgerald. Enquanto Cassandra tinha um estilo mais ousado, extrovertido, Adelaide era linear, contida. Em Cassandra, há empresários corruptos, que fazem despachos em terreiros de umbanda.
Sua trajetória foi levada ao cinema em 2013, depois de sua morte, no documentário Cassandra Rios – A Safo de Perdizes. Com a Comissão Nacional da Verdade (CNV), a história da escritora paulistana voltou ainda mais à tona. Conforme o relatório final da CNV, a produção literária da autora “nada agradou os cães de guarda da moral e dos bons costumes”.
Homofobia
A despeito do clima de “guerra fria”, a perseguição, nesse caso, pouco tinha a ver com ofensiva anticomunista do regime. Os preconceitos homofóbicos embutidos na ideologia moralista adotada pela ditadura infiltravam todos os espaços em que o estado de exceção operava. Embora já houvesse a censura da imprensa e de outros meios de comunicação e expressão antes do Golpe de 1964, a preocupação em “moralizar o país” reforçou a intervenção do Estado no controle da cultura sob diversos aspectos.
Um dos casos mais graves e dramáticos de censura durante esse período que merece registro foi justamente a campanha contra as obras de Cassandra. As acusações iam sempre no sentido de que seus textos continham conteúdo imoral e aliciavam o leitor à homossexualidade. Os danos financeiros para ela e suas editoras eram enormes – as forças da repressão e censura retiravam suas obras das livrarias e apreendiam livros nas gráficas.
Infelizmente, artistas e intelectuais que geralmente se mobilizavam contra atos arbitrários da ditadura não chegaram a se solidarizar com Cassandra Rios em sua luta interminável contra a censura, provavelmente por causa do conteúdo das suas obras. Daí a conclusão da CNV: “Pode-se afirmar que Cassandra Rios foi a artista mais censurada deste país durante a ditadura militar”.
Livros, jornais, peças de teatro, letras de músicas e filmes sofreram censura durante o regime autoritário. Representantes do governo exigiam a eliminação de personagens gays e lésbicas ou cenas, diálogos ou frases “imorais”. Mas a televisão talvez tenha sido o alvo prioritário dos guardiões da “moral e dos bons costumes”. A expansão dramática das redes de TV em escala nacional e seu alcance entre todas as camadas sociais criaram um meio de comunicação que dominava o consumo de cultura no país.
A ditadura instituiu o Código Brasileiro de Telecomunicações e a Lei de Imprensa, ambos de 1967, bem como a Lei de Segurança Nacional, de 1969. Tais medidas ofereceram instrumentos formais e legais para controlar o acesso à informação e as possibilidades de moldar o conteúdo de programação dentro dos estreitos parâmetros ideológicos do regime.
A música Homossexual, de Luiz Ayrão, foi censurada por uma funcionária de nome Eugênia com os seguintes dizeres: “Não aprovo, pois a propaganda do homossexualismo é proibida pela Lei Censória”. A observação contou com respaldo de dois funcionários que vistaram o despacho, proferido em 11 de abril de 1972. Os dois censores concordaram com a opinião de Eugênia, apondo um “de acôrdo (sic)”.
A visão moralista das censuras tinha apoio de parte significativa da sociedade civil – e não vinha somente das senhoras religiosas que se mobilizaram em marchas a favor do golpe em 1964. Os “defensores da civilização cristã” apelavam para a Divisão de Censura de Diversões Públicas para proibir material por eles considerado imoral, como mostra o historiador Carlos Fico em seu trabalho sobre o tema.
Houve uma dinâmica na qual o ministro da Justiça Armando Falcão exigia “ação mais enérgica” contra tudo e todos que, a seus olhos, “ameaçam destruir os valores morais da sociedade”, “contra os que desejam promover a subversão social, por meio de impactos negativos lançados na mente da juventude”. Ao mesmo tempo, funcionários da Censura de Diversões Públicas se encarregavam espontânea e diligentemente de zelar para que nada sequer parecesse desrespeitar símbolos da religião e dos valores hegemônicos.
Bornay, Denner e Clodovil
A dinâmica de controle ideológico era internalizada, consagrando a lógica repressiva em uma cultura política disseminada nesses espaços. Talvez o exemplo mais emblemático das campanhas contra a homossexualidade na TV tenham sido as medidas tomadas em 1972 para retirar várias figuras famosas e efeminadas dos programas de auditório, onde elas participavam sobretudo como membros de júris.
Os trejeitos femininos e exagerados de Clóvis Bornay, um candidato conhecido nos concursos de fantasias de Carnaval no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e de Denner Pamplona Abreu e Clodovil Hernandez, costureiros de mulheres da elite, serviam para provocar humor e gozações entre o público, sendo parte importante da popularidade desses programas. Os críticos à sua presença na televisão insistiam que “Denner é a negação da masculinidade, sem firmeza de caráter, cuja presença na televisão prejudica a formação da juventude”.
Para um jornalista da revista Veja, que escreveu sobre as expulsões dos programas de TV pela pressão da censura, “os exageros e o deslumbramento típicos da classe começaram a dar a uma parte do público a impressão de que um lépido e perigoso exército estava tomando conta da TV”. Mesmo não sendo opositores públicos do regime militar, eles eram vítimas das campanhas contra a homossexualidade e, especialmente, contra representações de comportamentos que fugiam das noções tradicionais de gênero.
A forte pressão da censura sobre os meios de comunicação foi uma constante durante o governo Médici. Mas, mesmo na distensão e na abertura dos governos de Geisel e Figueiredo, a censura seguia perseguindo pessoas que ofereciam uma visão mais tolerante da homossexualidade – ou que, ao menos, não a ligavam com opiniões depreciativas. Foi o caso de Celso Curi, jornalista do jornal Última Hora, de São Paulo, que publicou “A coluna do meio” entre fevereiro 1976 e novembro de 1977, dirigida a leitores gays.
Curi foi processado por “promover a licença de costumes e o homossexualismo especificamente”. Na denúncia que a Promotoria Pública ofereceu ao juiz de Direito da 14ª Vara Criminal da Comarca de São Paulo, o Estado alegou que “o homossexualismo é claramente exaltado, defendendo-se abertamente as uniões anormais entre seres do mesmo sexo, chegando inclusive a promovê-las através da seção Correio Elegante”, que funcionava para ajudar jovens a se conhecerem.
Como no caso de Cassandra Rios, os setores mais amplos de oposição à ditadura não se mobilizaram na defesa de Curi – que só foi absolvido em março de 1979. Enquanto Curi respondia a um processo em São Paulo, inquérito criminal foi instaurado, também em São Paulo, no ano de 1978, contra os 11 jornalistas da revista IstoÉ responsáveis pela matéria “O poder homossexual”, sob a acusação de “fazer apologia malsã do homossexualismo”. No mesmo ano e na mesma cidade, outro inquérito criminal foi instaurado contra os jornalistas da revista Interview por matéria de conteúdo homossexual.
O jornal Lampião da Esquina
As ameaças recorrentes do Estado contra conteúdos jornalísticos que retratavam a homossexualidade “positivamente” ou de forma não pejorativa não tiveram o condão de impedir a fundação do jornal Lampião da Esquina. Seu número zero foi lançado em abril de 1978, precisamente com o caso de Celso Curi na capa. Em outubro, o jornal entrevistava ninguém menos que Cassandra Rios, já reconhecida como a primeira mulher a alcançar a marca de 1 milhão de exemplares vendidos.
Entre outros casos, Cassandra recordou a perseguição sofrida por conta do romance A Volúpia do Pecado – que era anterior à própria ditadura. “Me acusaram de atentado à moral e aos bons costumes. Isso em 1954. No livro, a homossexual é simplesmente aquilo que ela quer: ela enfrenta seus problemas, que todo o mundo os tem, mas no final é feliz”, declarou a escritora paulistana.
Primeiro jornal que defendia abertamente os direitos dos homossexuais, o Lampião imediatamente incentivou a formação do primeiro grupo de ativistas no país, que adotou o nome Somos: Grupo de Afirmação Homossexual. Os agentes da repressão acompanharam de perto tanto o impacto do jornal Lampião quanto o emergente movimento.
Um agente do CIE escreveu: “pode-se estimar alto interesse comunista no proselitismo em favor do tema [da homossexualidade]”. Dada a repressão contra jornalistas da grande imprensa, não houve grandes surpresas quando os editores do jornal Lampião – jornalistas, escritores, professores e artistas – começaram a sofrer pressões e assédios.
Em agosto de 1978, o jornal foi alvo de inquérito policial que durou 12 meses, com a ameaça de serem enquadrados na Lei de Imprensa, segundo a qual eles poderiam receber até um ano de prisão por atentar contra a “moral e os bons costumes”. No dia 2 de abril de 1979, cinco editores compareceram à sede da Polícia Federal do Rio de Janeiro para serem indiciados criminalmente.
Editores de São Paulo também foram indiciados criminalmente. Na mesma época, várias bancas de jornal em diferentes cidades do país foram vítimas de bombas de grupos direitistas que deixaram panfletos anônimos exigindo que os jornais alternativos ou revistas pornográficas, entre os quais o jornal Lampião, parassem de ser vendidos.
O processo foi posteriormente arquivado por sentença do juiz da Vara Federal da Seção Judiciária Federal do Rio de Janeiro. Mas a tentativa de silenciar uma voz nacional importante do incipiente movimento homossexual afetou o funcionamento do jornal – e foi um dos fatores que levaram os editores a fecharem o periódico em 1981.
Quantos jovens se mataram?
Hoje em dia, com a ausência de censura do Estado sobre a imprensa e a internet, que oferece uma variedade de fontes de informação ao público, é difícil entender o significado e os efeitos da censura nas vidas de jovens gays e lésbicas, que viviam a experiência política de uma ditadura e que, pessoalmente, estavam descobrindo sua sexualidade. No entanto, a falta de modelos positivos na mídia para contrapor os preconceitos e os estereótipos tradicionais foi um legado da ditadura para a homolesbotransfobia ainda atual em nosso país.
A perseguição ocorria justamente num momento em que, na Europa e nos Estados Unidos, novos discursos e imagens da homossexualidade circulavam – e também quando movimentos surgiram para contestar conceitos conservadores (para não dizer reacionários) sobre gênero e sexualidade. A censura bloqueava o acesso do público brasileiro a essas novas ideias.
Os precursores desse movimento, que tinham a coragem de enfrentar a ideologia homofóbica da ditadura, precisavam encarar o aparelho do Estado consolidado por meio da censura e do sistema de justiça, criminalizando desejos, perspectivas e opiniões sobre a homossexualidade. Quantos jovens se mataram por não ter entendido sua sexualidade e por não terem tido acesso a informações sobre essa questão?
É uma pergunta de difícil resposta, mas resta claro que a censura serviu como instrumento para a prática de violações de direitos humanos durante a ditadura militar.
Da Vermelho – Redação, informações de agências e da Comissão Nacional da Verdade
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