Substituir o termo música por arte sonora? A idéia de rever o termo não é nova. John Cage, num texto de 1940, chamado O Futuro da Música: Credo, propôs que o termo música fosse substituído por outro mais adequado às novas abordagens que vinham surgindo no século XX: organização sonora. Chamar essa arte do sonoro de outra coisa que não música não é, portanto, novidade. Cage estava interessado na ampliação da paleta sonora proporcionada pela utilização do ruído em música. Para uma música do total sonoro, não restrita a material escalar (acordes, escalas, modos, séries de notas), ou seja, de natureza mais concreta do que abstrata, fazer música significaria organizar materiais sonoros dentro de lapsos de tempo definidos. No final, continuou usando o termo música, talvez por crer que dentro dele havia espaço para essa nova concepção. Essa atitude representou um ganho filosófico para os músicos, pois foram obrigados a refletir sobre os limites da arte e a reformular alguns conceitos.
Falar em música implica em remeter-se a idéias e conceitos tradicionalistas. Não há como se envolver com o contexto musical, profissional ou amador sem ser forçado a discutir a necessidade do estabelecimento de sistemas estruturais abstratos para a criação musical (escalas, acordes, séries de notas), a busca por uma escrita da complexidade como meio de manter evoluindo a técnica instrumental, a atualização tecnológica como pré-requisito para se fazer música eletroacústica nova, a simplicidade sob suspeita quando esta não possui uma justificativa pedagógica ou engajada, o caráter autêntico da música de raiz, a necessidade de se manter a dicotomia erudito x popular, o estudo da genealogia da criação musical para não perder de vista a linha evolutiva da linguagem, o que é boa música e o que é má música, quanto vale a música, e todas as formas de balizamento do fazer e do fruir.
Antes de preocupar-me com organização sonora, técnicas de estruturação, manutenção de material escalar, gosto de escutar as coisas e elegi o som, e não o discurso (o que dizer por meio dos sons), como ponto de partida. Penso que todo mundo (músico ou não) possui suas próprias estratégias de produção, organização, interpretação e escuta sonoras e que seria muito interessante que as pessoas trocassem entre si livremente suas impressões sonoras a respeito da realidade.
O fazer musical institucionalizado é apresentado como a única via para se entender e usufruir o sonoro e isto representa um obstáculo para a livre apreensão do universo de sons que nos rodeia. O sonoro é a matéria-prima da música, mas a música só é considerada como tal quando o compositor consegue estabelecer uma conexão coerente entre sons e sentido. Essa coerência depende de questões culturais, históricas e ideológicas.
O fazer musical institucionalizado funciona como uma teocracia: é regido, no nível transcendente, por um deus (música) que, por sua vez, é representado por uma casta sacerdotal (críticos, regentes, compositores, intérpretes e outros). Havendo ainda o não-músico, que equivale ao leigo não-instruído ou ao plebeu, servo de gleba, indivíduo sem titulo e que, para citar o sociólogo argentino Néstor Canclini, não faz a história, apenas a sofre.
Estou quase convencido de que o nome Música não se refere mesmo a uma arte do sonoro. Vai ver a única tradução possível seja a literal: arte das musas. Digo isso, porque parece que é elemento inseparável do fazer musical, não só a abordagem artística do sonoro, mas uma obrigação para com uma remota tradição espiritual. Em muitos casos, o fazer musical não conseguiu superar o status cortesão e os músicos, mesmo sem o saber, ainda se comportam como vassalos de algum nobre. O fato é que todas as estruturas que funcionam em torno do fazer musical institucionalizado possuem como marca característica a organização estamentária, típica de uma sociedade de castas, dividida em camadas diferenciadas quanto ao status social, e sacramentada por uma tradição acima de qualquer suspeita.
Quando um intérprete se dispõe a executar uma obra musical, age como um cavaleiro da baixa nobreza que busca proteger o patrimônio de um membro da alta nobreza. Nessa relação desigual não há conflito pelo mesmo motivo que não há conflitos, no que diz respeito a questões de hierarquia, entre o senhor e o vassalo. Cada qual tem consciência de que ocupa um lugar na sociedade que foi determinado por um fator transcendente ou natural. Não há conflito. Cada qual está, e se sente, no seu lugar. O regente nada mais é, dentro desta lógica, que um comandante de um exército de cavaleiros dedicados a uma missão. É hierarquicamente superior a eles, mas continua sob ordens.
Essa imagem psicológica, se eu estiver correto, ajudaria a explicar, para meus colegas compositores, porque a primeira providência de um intérprete ao receber uma obra inédita é a de averiguar se a pessoa que concebeu a peça é digna de ser defendida por ele. Leia-se: se possui nobreza confirmada; ou se, pelo menos, é seu superior hierárquico. No meu caso, quanto mais referências curriculares acumulo, mais gente se interessa por executar minhas peças e, em 90% dos casos, sem querer saber do que se trata.
No fundo, todo jovem compositor é visto como um príncipe herdeiro. Há sempre grande expectativa em torno de suas habilidades. Afinal, dentre os diversos estamentos da música, o compositor é o mais valorizado. A criação musical é vista como um verdadeiro dom divino e, toda vez que alguém arrisca percorrer esse caminho é necessário averiguar se ele é mesmo uma encarnação do Dalai Lama. O simples ouvinte, por sua vez, não possuindo habilidades especiais dentro desse universo de divindades encarnadas, faz as vezes do plebeu que fica à mercê das decisões dos membros do clero e da nobreza. Não manda em nada, não sabe rezar, não sabe se defender, só serve para, obedientemente, plantar, colher e abater carne para manter abastecidos os sujeitos da história. Do mesmo modo aqui não há conflito: o homem comum, numa sociedade teocrática aceita passivamente sua condição inferior como um dado da natureza.
Para falar um pouco do papel da música popular nesse contexto metafórico, lembro de outro estamento importante, que se consolidou durante os séculos XVI-XVII na Europa devido à prosperidade do comércio do Mediterrâneo: a burguesia. Nos séculos que anteciparam a Queda da Bastilha, a ambígua distinção entre uma nobreza decadente e uma burguesia poderosa e culta foi motivo para enormes embates. Houve muitos burgueses que, literalmente, compraram títulos de nobreza, bagunçando a idéia de que esta seria um bem genealógico inalienável e gerando discussões sobre os limites entre os dois mundos. Esse constrangimento cultural nos persegue em música até hoje e se reflete na dicotomia música erudita X música popular.
Com a possibilidade de registro e reprodução de sons no século XX, e com a rápida expansão do comércio mundial, todo tipo de informação passou a circular de uma forma nunca antes vista. A música, de um modo geral, sofreu um processo de democratização e acabou escapando do monopólio da elite cultural européia. É claro que, como constata Adorno, essa democratização é enganosa, pois o que se constituiu na verdade foi uma Indústria Cultural de caráter totalitário, manipuladora das massas, responsável pela regressão da audição e do gosto que pôs em risco a própria sobrevivência da civilização ocidental (etc, etc). Bem, o que ocorreu foi que a chamada música popular, a música que estava sendo veiculada fora dos meios oficiais da elite, ascendeu em importância e ganhou amplo espaço nos meios de comunicação se configurando como protagonista inconteste do processo de produção, distribuição e consumo musicais. Uma música plebéia de imensa relevância econômica e política, mas esteticamente marginalizada. Tal qual a burguesia renascentista.
Isso é motivo de mal estar nos círculos culturais dedicados ao cultivo de música erudita. Penso que, se pudéssemos retornar aos debates da Renascença, muitas das queixas da ameaçada aristocracia, com aquela cultura reles batendo à porta, nos soariam familiares. Uma maneira de amenizar esse conflito é distribuindo títulos de nobreza. Assim, fulano é do povo, mas, por ter alma nobre, ser honrado e valoroso dentro do que a nobreza espera, pode virar cavaleiro (como ocorreu, literalmente, no caso dos Beatles).
Procuramos enfatizar, como símbolos indiscutíveis de qualidade musical tudo aquilo que nos remeta ao referencial tradicional: a organização engenhosa e coerente, a ousadia sob controle, o compromisso com o desenvolvimento da linguagem, a capacidade de resolver problemas propostos, e, sem dúvida, o critério técnico possui um lugar de destaque nesse contexto. O argumento da técnica foi o que ganhou mais adeptos dentro da realeza moderna. Não é por acaso que nas monarquias européias, ao invés dos reis governarem, preferem fazer eleger um técnico (um especialista em gestão de países), como primeiro ministro. Dessa forma, o monarca continua servindo como antena espiritual do país, lembrando-o da sua ligação com um passado heróico, e o primeiro ministro trata de questões mais objetivas e mundanas.
Em música, o critério técnico pode ser o passaporte de um músico popular (plebeu) para o ingresso no mundo da música erudita (nobreza). Não basta ganhar dinheiro e poder: sempre vai faltar alguma coisa enquanto ele não puder sentar na mesma mesa da aristocracia e ser reconhecido como igual. Assim, o músico popular bem sucedido, pode tanto o ser do ponto de vista da Indústria Cultural (parte material do sucesso), quanto do ponto de vista do prestígio que é capaz de angariar frente às elites culturais estabelecidas (parte espiritual do sucesso). Quanto mais próximo dos ideais estéticos da elite, mais perto da condição de nobreza. Indivíduos que sabem escrever música, fazer arranjos, tocar piano, compor suas próprias músicas, passam a ser chamados de maestros, ganham prêmios e viram exemplo no exterior do quanto a música popular de um país é avançada (o caso da nossa MPB). São os Carlos Gomes, Padres José Maurício e os Aleijadinhos anônimos da vida que, apesar da origem humilde e etnia, amparados pelo metier e/ ou pela proteção da aristocracia, conseguem ascender à condição de nobres da arte.
Assim, justificando a primeira afirmação do texto sobre deixar de fazer música e dedicar-me à arte sonora, concluo que, afinal de contas, o termo música é ideal para uma manifestação artística de tendência aristocrática como a que acabamos de apresentar, pois, em sua raiz etimológica, se refere, de fato, à realeza das artes, as Musas, e se trata de arte produzida por elas e para elas. Não é a arte do sonoro. É, antes, a arte de acatar ordens, por meio da organização de material oriundo de sistemas sonoros pré-estabelecidos, visando à manutenção da desigualdade.
Esquecer as Musas e ater-se aos sons para que tudo volte a ser possível!
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Valério Fiel da Costa