Em 1968, o artista gráfico Rogério Duarte estava no auge. Nascido em Ubaíra (BA) em 1939, morava no Rio de Janeiro desde 1961. Ex-diretor de arte da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da editora Vozes, assinara cartazes de filmes do Cinema Novo, como Deus e o Diabo na Terra do Sol. Criador da estética do Tropicalismo, era de sua autoria a capa de um disco de Caetano Veloso, de 1967. Não tinha atividade político-partidária. Mesmo assim, foi preso e torturado nos porões da ditadura militar.
Rogério Duarte, em fotos com Gilberto Gil e Caetano Veloso: sua tortura virou “estudo de caso” na Comissão da Verdade Rogério Duarte, em fotos com Gilberto Gil e Caetano Veloso: sua tortura virou “estudo de caso” na Comissão da Verdade
No dia 4 de abril, Rogério e seu irmão Ronaldo Duarte foram, com suas respectivas namoradas Ruth Queirós e Sílvia Escorel de Moraes Saldanha, à manifestação popular em homenagem a Edson Luís de Lima Souto, estudante secundarista assassinado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro em 28 de março. A comoção gerada pela morte do estudante transformou a missa de sétimo dia dele, na Igreja da Candelária, no centro do Rio, em uma manifestação de denúncia da violência praticada pelas Forças Armadas do Estado brasileiro. No entanto, terminou em violentos confrontos e prisões arbitrárias e ilegais dos manifestantes; entre elas, a dos irmãos Duarte.
“Já no caminho de ida, depois que escondemos o carro perto do aeroporto, encontramos amigos que voltavam dizendo que a barra estava pesada demais e não dava mais para entrar na Igreja. O Exército sitiara a Igreja e os que ficaram do lado de fora foram expostos à ação de cavalos e das bombas de gás lacrimogêneo. Procuravam sair da Avenida Getúlio Vargas, mas estava tudo cercado”, declarou Rogério à Comissão Nacional da Verdade.
Depois de se dirigirem à manifestação e presenciarem o confronto contra os policiais, Rogério e seu grupo resolveram ir embora. No retorno ao carro, foram abordados por dois agentes à paisana do Serviço Nacional de Informações (SNI), na Rua da Quitanda, por volta das 18 horas. Eles alertaram Rogério e os outros para que os acompanhassem discretamente – “senão vai chover bala”, um deles informou. Fizeram, então, sinal para que uma viatura que ali passava parasse.
Na radiopatrulha 8-149 estavam os patrulheiros Álvaro de Oliveira Souza, Antônio Macedo Portela e José Xavier Tôrres. Os agentes se identificaram como membros do SNI e deram a ordem: as meninas deveriam ser deixadas no Dops e os homens seriam levados para o Departamento de Correios e Telégrafos, a poucos quarteirões. As moças foram liberadas por volta das 23 horas do mesmo dia, graças à intervenção do pai de Sílvia, o embaixador Lauro Escorel.
A tortura
Rogério e Ronaldo Duarte ficaram pouco mais de dez minutos em uma cela do Serviço de Vigilância do Departamento de Contra-Terrorismo (DCT), para então serem transferidos em uma Kombi de cor creme, que os irmãos identificaram como um veículo do Estado. Forçados a ficarem deitados para não saber para onde iriam, foram levados para a Vila Militar, onde ficaram vendados a maior parte do tempo, recebidos com socos e pontapés e despidos.
“Para o primeiro interrogatório, tiraram as vendas, chamaram-nos de Fidel Castro, comunistas, e avisaram que ‘por causa disso, vão apanhar a noite inteira’. Durante oito dias, fomos submetidos a torturas, espancamento, interrogatório, lavagem cerebral, todo o pacote sistemático de técnicas para desestruturar completamente uma personalidade”, relatou Rogério. “Estive em uma cela onde havia dezenas de placas de papelão presas num suporte de pau com o clássico desenho da caveira e as iniciais E.M., de Esquadrão da Morte. Essas placas eram sempre encontradas nos ‘presuntos desovados’ na Baixada Fluminense. Aquela foi uma típica ‘cela da morte’. Podia ser tudo encenação ou eu ia mesmo morrer.”
Rogério e Ronaldo Duarte ficaram privados de contato com amigos e familiares durante todo esse tempo. No dia 10 de abril, quarta-feira, Rogério completava 29 anos de vida em meio a torturas físicas e psicológicas, como choques elétricos nas axilas, além de interrogatórios cujas perguntas pareciam não lhes dizer respeito. Para sua sorte, o caso chegou à imprensa.
“O cineasta Ronaldo Duarte e seu irmão, o artista plástico Rogério Duarte, continuam desaparecidos desde a tarde da última quinta-feira, quando foram levados pela viatura da Radiopatrulha 8-149”, noticiou o jornal Correio da Manhã na edição de 10 de abril. Conforme o diário, “uma comissão de intelectuais e artistas estabeleceu contatos com as diversas áreas de segurança, federais e estaduais, tendo obtido uma única resposta: ‘estes dois nomes não constam na lista’. Assim, fontes do I Exército informaram à Comissão que Ronaldo e Rogério não se encontravam em nenhuma dependência da área militar − do Exército, da Marinha, ou Aeronáutica − tendo a mesma resposta partido da Secretaria de Segurança de Niterói, do Departamento Federal de Segurança Pública e do Departamento de Ordem Político e Social”.
Em 12 de abril, o Correio da Manhã publicou uma carta aberta, assinada por 86 artistas e intelectuais, como Antônio Carlos Jobim, Chico Buarque de Hollanda, Oscar Niemeyer, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Vinicius de Morais, entre vários outros. Nela, pedem esclarecimentos acerca dos irmãos Duarte, cujos nomes não constavam oficialmente em nenhuma instalação das Polícias ou Forças Armadas. Porém, horas antes de o jornal começar a circular pelo país, Ronaldo e Rogério Duarte foram soltos, por volta das 3h30 de 12 de abril, nas proximidades do bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro.
Denúncia pública
Após terem sido libertados, Rogério e Ronaldo delataram, publicamente, as torturas sofridas durante os dez dias em que foram mantidos presos. No Correio da Manhã de 14 de abril, os irmãos deram detalhes das torturas sofridas e da maneira ilegal como foram detidos e mantidos em cárcere.
“No interrogatório, perguntas que não sabiam responder, como se conheciam padres ou pessoas que eles nunca viram. Dormiam nus e estavam em dependências em que outras pessoas também eram torturadas. Enfermeiros tentavam retirar as marcas das pancadas com compressas”, registrava o jornal. Os irmãos “foram transferidos para três prisões dentro da Vila Militar” e “levados em uma Kombi, camuflados embaixo dos cobertores, escondidos inclusive da Polícia Rodoviária”.
A denúncia pública das torturas sofridas pelos irmãos Duarte ganhou dimensão, e o episódio e seu desenrolar figuraram em várias edições dos jornais durante o mês de abril. Em 16 de abril, o comandante interino do I Exército, general José Horácio da Cunha Garcia, soltou uma nota oficial da instituição. Declarando, “de antemão, certo de que as denúncias (…) não correspondiam com a verdade dos fatos”, o milico afirmou ter determinado, “imediatamente”,” meticulosas investigações”. A conclusão oficial – e forjada: “os referidos cidadãos não estiveram presos em nenhuma unidade do Exército e em nenhuma delas passaram por qualquer motivo”.
Mas os nomes dos envolvidos nas torturas de Rogério e Ronaldo Duarte foram identificados pela 3ª Delegacia Distrital do Rio de Janeiro, que investigou o caso. Segundo o Correio da Manhã de 4 de maio, foram acusados “os militares (todos do Batalhão de Comunicações Divisionárias) coronel José Goulart Câmara (apontado como o chefe dos torturadores), o primeiro-sargento Eurico, o segundo-sargento Marcelino, o segundo-sargento Ford, o terceiro-sargento Joevalner, além do civil Valter (ou Walter) Rodrigues, um dos agentes do SNI que efetuaram a detenção dos irmãos Duarte e de suas companheiras”.
O desfecho
Em ficha produzida pelo SNI e expedida em 17 de abril, em atendimento a um requerimento interno aberto dois dias antes, a verdade começou a vir à tona. Conforme o levantamento do histórico político dos irmãos Duarte, Ronaldo possuía “elementos e registros” que despertaram interesse do SNI sobre suas atividades passadas.
Já Rogério foi considerado um “elemento de esquerda ligado a atividades de artes plásticas”, por ser primo do deputado Marcelo Duarte, do MDB. Ele também havia sido indiciado no Inquérito Policial Militar (IPM), sem, porém, ter sido denunciado pelo procurador da Auditoria de Guerra da 6ª Região Militar. Seu caso evidenciava como a ditadura agia à margem da lei contra qualquer pessoa, mesmo sem acusações ou suspeitas mais concretas.
Em 2014, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade dedicou à prisão e à tortura de Rogério um “estudo de caso” especial, tantas foram as arbitrariedades em torno do episódio. O artista baiano morreu três anos depois, em 13 de abril de 2017, aos 77 anos, vítima de um câncer. Sua história foi retratada no documentário Rogério Duarte, o Tropikaoslista, lançado em 2018 e dirigido por José Walter Lima.
Com informações da Comissão Nacional da Verdade
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