Mais que documentário sobre o rapper Emicida, um resgate histórico e celebração da cultura negra. Há ecumenismo de ideias, mas também o “lugar de fala” da periferia. Vê-lo, ao final deste ano tenebroso, é injeção de energia e esperança
por José Geraldo Couto
O grande acontecimento cultural deste final de ano – se não do ano todo – é o documentário Emicida: AmarElo – É tudo pra ontem, em cartaz na Netflix. Dirigido por Fred Ouro Preto, o filme tem em seu núcleo o show que o rapper Emicida realizou em novembro de 2019 no Teatro Municipal de São Paulo para lançar seu disco AmarElo.
Duas imprecisões no que acabo de escrever. A primeira: Emicida já não pode ser chamado simplesmente de rapper, uma vez que sua música transcende os limites do gênero, conectando-se com o samba, o choro, o soul e outras manifestações musicais de matriz africana. Ele próprio diz que o que faz hoje é “neossamba”, para marcar a influência cada vez maior da tradição sambista em seu trabalho.
Segunda imprecisão: Emicida – AmarElo não é simplesmente “um documentário”. É um resgate histórico, uma celebração e um manifesto – tudo junto e misturado, mas sem confusão, e sim com uma clareza diamantina.
História da cultura negra
A partir do referido show no Municipal – um acontecimento histórico em si mesmo, pois foi a primeira vez que um artista de hip hop (e adjacências) se apresentou no centenário teatro, para um público majoritariamente negro e periférico –, o filme traça didaticamente uma história abrangente da cultura afro-brasileira e das lutas do povo preto em nosso país, para mostrar o longo, doloroso e no entanto belo caminho percorrido por seus ancestrais para que se chegasse até ali, naquela noite especial.
Um rico material de arquivo e animações didáticas, articulados sob a locução do próprio Emicida, constroem uma leitura panorâmica da história do povo negro e suas manifestações entre nós, especialmente na cidade de São Paulo, em cuja “micro-África da zona norte” nasceu o artista.
Emicida presta tributo não apenas aos músicos que ao longo de um século pavimentaram sua estrada – de Pixinguinha a Wilson das Neves, de Clementina de Jesus a Zeca Pagodinho, de Geraldo Filme a Leci Brandão, de Adoniran Barbosa aos Racionais MC –, mas também a expoentes negros da intelectualidade e das artes: o arquiteto setecentista Tebas (Joaquim Pinto de Oliveira), o advogado e escritor Luiz Gama, a filósofa Lélia Gonzalez, o ator e diretor teatral Abdias do Nascimento, a atriz Ruth de Souza etc.
Alternados a cenas de gravações do disco, ensaios e bastidores (com Wilson das Neves, Marcos Valle, Fabiana Cozza e outros), vemos capítulos da história de lutas do movimento negro. A certa altura, a ativista negra norte-americana Angela Davis declara que aprendeu mais sobre feminismo negro com Lélia Gonzalez do que as brasileiras poderiam aprender com ela própria.
Num dos momentos mais fortes do filme, no meio do show no Municipal, Emicida pede para que se levantem na plateia homens e mulheres que em 1978 ocuparam as escadarias externas do mesmo teatro, enfrentando a ditadura militar no ato de fundação do Movimento Negro Unificado. A ovação que eles recebem é de arrepiar.
Outra passagem de alta voltagem emocional é aquela em que Fernanda Montenegro declama o poema “Ismália”, do simbolista Alphonsus de Guimaraens, ressignificado no interior de uma canção de Emicida. A participação de Fernanda e de Marcos Valle, bem como o tributo prestado aos modernistas Mario e Oswald de Andrade, que um século antes lançaram o Modernismo no mesmo Municipal, atestam a disposição do compositor e cantor de não se fechar à contribuição dos grandes artistas e intelectuais brancos.
Pele alvo
A despeito dessa disposição ecumênica de não se fechar no gueto, Emicida não abre mão de seu “lugar de fala” de garoto preto da periferia. Sua poesia, cada vez mais afiada, a todo momento afirma essa perspectiva. “80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo”, diz numa canção. “Tudo o que nós tem é nós”, declara em outra, com a dicção da sua quebrada.
Longe de se entregar a uma posição passiva, de lamentação, a arte de Emicida exibe uma verve altiva, de revolta e mudança: “Achar que minhas mazelas me definem é o pior dos crimes, é dar troféu pro nosso algoz e fazer nós sumir”; “Não sou o alvo do racista, sou o pesadelo dele”; “Eu decido se vocês vão lidar com o King ou vão lidar com o Kong”; “Quem casou com a tempestade não se liga em guarda-chuva”.
É nesse contexto que o artista vê o samba como um símbolo maior da potência e da modernidade da cultura negra, ao mesmo tempo luta e gozo (“pai do prazer, filho da dor”, na definição de Gil e Caetano). “O samba é o Brasil que deu certo, e não há vitória possível para este país que passe distante do samba.”
O que há de mais explosivo e ameaçador (para a cultura patriarcal-oligárquica que nos domina há cinco séculos) no discurso e na prática de Emicida é a chamada “interseccionalidade” defendida por Lélia Gonzalez, isto é, a união das pautas de raça, gênero e classe numa só luta por emancipação e liberdade. Não por acaso, o momento mais apoteótico do show do Municipal é aquele em que o cantor se junta no palco à drag Pabllo Vittar e à cantora trans Majur e os três repetem inúmeras vezes, como um mantra, como um brado, o refrão de Belchior: “Tenho sangrado demais,/ tenho chorado pra cachorro./ Ano passado eu morri,/ mas este ano eu não morro”.
Não por acaso, também, numa coda que derruba as últimas resistências do espectador mais insensível, vemos e ouvimos, com seu sorriso radiante, a mulher que sintetizou em si essas três lutas, e que por isso foi assassinada. Nem preciso dizer seu nome. Está nos muros de todas as cidades.
Emicida: AmarElo, em suma, é uma injeção de energia e esperança ao final de um ano tenebroso. É o melhor antídoto contra a barbárie que nos assola.
Fonte: Outras Palavras
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