Uma notícia publicada no Independent (1) propõe nova tese sobre as causas do naufrágio do paquete, ocorrido a 115 anos: um incêndio terá contribuído para o enfraquecimento da resistência do casco, incêndio esse ocorrido 10 dias antes do início da viagem fatídica, e escondido dos passageiros que, assim, embarcaram ao encontro das águas geladas do oceano.
Por Alexandre Weffort*
Se a história conhecida nos mostrava o desprezo pela vida dos passageiros – desprezo de classe, onde apenas 1ª classe tinha salva-vidas – os novos dados mostram a natureza predatória da moral capitalista: morreram mais de 1500 pessoas numa viagem que poderia e deveria ter sido evitada (se a informação sobre o incêndio não tivesse sido criminosamente ocultada em razão do lucro).
O MIS-RJ (Museu da Imagem e do Som) é um museu já com meio século de existência. O seu acervo contempla, além de partituras, fotografias e documentação diversa sobre a música popular brasileira, registos sonoros produzidos pelo próprio museu (entrevistas com personalidades da cultura brasileira, em depoimentos para a memória, de valor incalculável – como as entrevistas a Pixinguinha, Cartola, Jacob do Bandolim, Oscar Niemeyer, Augusto Boal, Fernanda Montenegro, entre tantos outros).
Na área da música, o MIS-RJ, com sede ainda na Lapa, desenvolveu durante décadas uma atividade em contato íntimo com os músicos populares cariocas, promovendo o conhecimento, através da preservação da memória coletiva, do choro – gênero musical instrumental originado em finais do século 19 e que se mantém até hoje, tendo como característica fundamental a “roda de choro”, sua forma de convívio, de aprendizagem e de realização musical essencial.
Mas o MIS-RJ, vinculado ao governo estadual do RJ, construiu uma sede nova (grande como o Titanic), virada para a praia de Copacabana. A obra, que depois de muitos atrasos, deverá estar quase concluída, irá albergar nos seus vários pisos diferentes facetas da cultura carioca, privilegiando o suporte virtual, num processo que teve a orientação da Fundação Roberto Marinho.
Consta do site do MIS-RJ um depoimento entusiasmado: “Tem tantas coisas acontecendo nesse lugar. Tem uma arquitetura extraordinária que não é temática. É radical como você não vê no Rio, de um conceito transformado em prédio que fala o seguinte: todo mundo tem direito à vista de Copacabana. O MIS vai ser um dos lindos mirantes do Rio de Janeiro. E com todo esse conteúdo embalado pelos objetos museográficos que a gente está fazendo, o museu vai ser uma experiência inesquecível” (2).
Mas há também quem dê atenção aos aspetos negativos. Márion Strecker assinala, em matéria publicada em junho de 2016, a preocupação pela natureza espetacular do projeto virtual, em detrimento da criação de condições técnicas para a preservação do acervo documental físico: “Pouco do acervo, porém, estará fisicamente na sede do novo MIS (…) O projeto do novo museu é fazer uso intensivo de computadores, projeções e instalações espetaculares para festejar a cultura carioca bem na frente da praia mais famosa do Brasil. A prioridade é, obviamente, oferecer diversão e informação para o público local e os turistas que passam no calçadão, e não criar um local para guardar comme il faut o acervo da instituição, fundamental para os pesquisadores da cultura brasileira” (3).
À contradição, entre um espaço ao serviço do conhecimento e o de um Museu rendido ao espetáculo virtual, junta-se agora o problema da sua transferência para as mãos dos interesses privados, em forma fantasiada de parcerias público-privadas. As notícias mais recentes, dos despachos do recém empossado prefeito do RJ, Crivella (4), vão no mesmo sentido de declarações anteriores de Pezão, governador do RJ (5) quando, em janeiro de 2016, pronunha extinguir seis fundações estaduais, entre elas o MIS-RJ.
O valioso acervo do MIS-RJ inicia, assim, uma travessia perigosa (o caso do Titanic, e da notícia colocada no início deste texto, justifica a sugestiva analogia). A memória preservada nos milhares de documentos requer cuidados de conservação e estudo. É espaço de fruição estética e, também, de abordagens críticas, tanto pelo encontro de novas respostas como pelo reconhecimento das circunstâncias históricas, também ideológicas, que marcam o conhecimento da própria cultura.
O risco que corre o MIS-RJ nessa sua transfiguração, de uma instituição de cultura da Lapa para ponto turístico em Copacabana, risco agora exponenciado pela sua transferência para a órbita dos interesses privados, respeita não apenas ao seu acervo documental mas à sua forma de relação com a cultura popular.
A hipótese de o naufrágio do Titanic se dever à mera ganância – critério mais forte da moral capitalista – e a morte de centenas de pessoas em consequência de omissão criminosa, obriga ao refazer de narrativas sobre um passado que se julgava melhor conhecido, mas que enfatizava a dimensão emocional da tragédia. No caso do naufrágio, a narrativa foi condicionada, a nível simbólico, num sentido que servia aos interesses dominantes, ao encontro do vácuo mental que caracteriza a, também cada vez mais dominante, “classe ociosa”; (6). E, como será no caso do MIS-RJ? Contará com o silêncio conveniênte de quem?
http://www.independent.co.uk/news/uk/home-news/rms- titanic-evidence- fire-senan- molony-belfast-
new-york- southampton-sink- april-1912- a7504236.html
http://www.select.art.br/novo-mis- rj-quer- impressionar-mas- nao-se- responsabiliza-por-
conservacao/
http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2017-01/crivella- baixa-80- decretos-reducao-
secretarias-50- cargos-comissionados
http://g1.globo.com/rio-de- janeiro/noticia/2016/01/para-cortar- gastos-pezao- propoe-extinguir- seis-
fundacoes-estaduais.html
No uso do conceito proposto em 1899 por Thorstein Veblen.
*Alexandre Weffort, residente em Portugal, é professor, mestre em Ciência das Religiões e doutorando em Comunicação e Cultura
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