A SEPARAÇÃO DA POLÍTICA, DO DIREITO E DA CULTURA.

                                             

                                                       Por Geraldo Serathiuk

 

Perry Anderson, historiador inglês, ensina que a guerra fria trouxe a
repressão aos partidos políticos, ao poder legislativo, aos movimentos
sociais e culturais do mundo todo, afastando da atividade algumas gerações
de homens e mulheres. Perdeu a esquerda, perderam os liberais, perderam
todos aqueles que eram a favor da democracia. A política partidária, social
e cultural, perdeu em qualidade e credibilidade. Ainda vivemos as
conseqüências desse tempo e colhemos seus frutos. Anderson também disse que
muitos desses homens e mulheres se deslocaram para as universidades, longe
da prática social em função da repressão, invertendo o eixo da produção
teórica, priorizando a filosofia em detrimento da política e da economia.
Lembrando que no lugar dos afastados, dos exilados, dos presos e dos mortos,
veio uma geração de alguns lambe-botas do arbítrio ou de pessoas sem
participação que não tinham visão coletiva e pensavam somente em si, e
implantaram como referência, nos cursos, a visão do academicismo técnico e
prolixo, distanciado da sociedade.
Mas o pior não foi só isso, pois de forma consciente ou inconsciente,
ajudando as forças do arbítrio, passaram a transmitir a seus alunos um
conceito negativo e de ojeriza à política, apontando somente seus defeitos e
desvios, omitindo que a queda na qualidade e credibilidade foi fruto de
algumas gerações terem saído de circulação, do processo democrático ter sido
interrompido e entrarem em seu lugar pessoas que não eram da mesma estatura
e comportamento, sem nenhuma visão coletiva. Agregado o fato de que tivemos
durante este período o surgimento da sociedade de consumo e de comunicação
de massas, que utilizado pelo arbítrio contribuiu para o surgimento dos
messias dos dramas metropolitanos, dos trens pagadores e para incentivar o
ingresso do fator religioso, através das concessões dos meios de
comunicação, que refletiu na estrutura política e mais do que se imagina no
mundo da vida, como diz Habermas. E não precisamos ler Jung, Levi-Strauss ou
qualquer etnólogo religioso, para saber as implicações, que a cada dia vemos
crescer.
Este foi o cenário que quando os sobreviventes daquelas gerações começaram
a se reinserir na sociedade após a anistia, tiveram que enfrentar. Ou seja,
o arbítrio havia conseguido neutralizar a política substituindo-os e teriam
que concorrer nas universidades e na sociedade com uma outra realidade. E
isso foi um fenômeno ocorrido em todo o mundo e um motivo muito forte na
queda da qualidade, credibilidade e popularidade das instituições.
Este processo não deixou de atingir em muito os cursos de direito, tendo em
vista o grande número de perseguidos que eram advogados, juizes, promotores,
professores e estudantes de direito, pois naquele tempo as universidades de
direito eram um dos maiores centros de formação de pessoas com visão
coletiva e de cultura universal, não ficando apenas no estudo técnico da
dogmática jurídica restrita. Vivendo parte deste tempo, primeiro como
adolescente vendo as perseguições àqueles homens e mulheres, depois como
estudante de direito, dirigente estudantil e autoditada, optei pela
atividade no movimento social e nos partidos político, podendo ver como
Anderson foi simples e brilhante, pois percebi como seus ensinamentos se
confirmaram.
Temos visto o esforço para se fazer o reencontro da política, do direito e
da cultura, nas nossas universidades. Para quem estudou um pouco de
semiótica e lingüística, percebe que os professores ficaram prisioneiros da
sua origem social e do seu meio, que acabou determinando a sua expressão
comportamental entronizada e a vocabular, como mecanismo de poder. Mesmo
aqueles que tentam se desconstruir, usando o termo de Derrida, através de
correntes de pensamento, de ideólogos ou até da moderna bio-dança jurídica,
tentando carnavalizar o formalismo e o tecnicismo ou romper com a
neutralização do mundo jurídico, não percebem que estão procurando achar uma
maneira de aproximar a política, o direito e a cultura novamente, o que é
elogiável. Talvez pelo fato de terem sido formados num período onde a
prática política foi reprimida, sofrem por terem represados seus impulsos no
período do arbítrio, que suprimiu a criatividade, a liberdade e a alegria, e
acabaram prisioneiros de um período onde a política, o direito e a cultura
não andavam juntos, e alguns em razão desta formação acabam reproduzindo o
mesmo modelo, ou seja, formam estudantes longe do mundo da vida,
internalizados na teoria, parecendo frios burocratas com saber técnico.
Foucault revolucionou a teoria política, como nos ensina Eco, dividindo-a em
duas fases: a primeira ingênua quando o poder era visto como centro único e
a segunda quando o poder é visto em vários centros, nas estruturas, nas
instituições, nos corpos, na linguagem e até no jeito de vestir, e é uma boa
referência para ajudar a nossa analise sobre as formas de comportamento
exteriozados pelo distanciamento entre a política, o direito e a cultura,
não esquecendo de Reich, Barthes, Deleuze e Pichon-Riviére que melhoram
muito o nosso olhar.
Assim com compreensão devemos entender que a interrupção da democracia teve
como conseqüências à saída de algumas gerações de circulação e a perda em
capital humano em todo o mundo, e pagamos por isso até hoje. Desta forma com
tolerância, os professores poderão descrever os defeitos e desvios da
política, mas também contar o porquê disso ter ocorrido. E não precisarão
inconscientemente buscar teorias exóticas ou niilistas para si e seus alunos
entenderem à separação da política, do direito e da cultura, e aos poucos
com a responsabilidade de orientadores, novamente despertar o interesse e
ajudar a formar novas gerações, com visão coletiva preparada para retomar a
participação na política, melhorando sua qualidade e por conseqüência sua
credibilidade.
Woody Allen, no personagem do filme Zelig, nos mostra de forma engraçada
como nos influenciamos e interagimos entre as pessoas e os fatos. Tenho
certeza que é só observar o conteúdo da mensagem de Zelig, e perceberemos
que a política, o direito e a cultura, que foram separados tristemente pelo
arbítrio fruto da guerra fria, influenciam-se e por conseqüência o
tecnicismo da dogmática autônoma e formal deve aceitar as interações. Com
isso os cursos de direito continuarão a ser formadores de homens coletivos,
como dizia Habermas, que por estarem próximos do estudo e da prática da
política partidária, social e cultural, acabarão trazendo uma contribuição
cada vez maior para a sociedade, pois estarão mais perto do mundo da vida.
E para homenagearmos àquelas gerações, que mesmo tendo passado por muitos
sofrimentos e decepções, mas que nunca perderam a esperança, a alegria e o
bom humor, poderíamos fazer um primeiro ensaio didático, de interação da
política, do direito, da sociologia e do cinema, por exemplo, onde
imaginaríamos um quadro onde Pareto, um dos formuladores da teoria das
elites, ainda vivo, sugerisse a Woody Allen, filmar o Zelig II, onde o
personagem mais transformista do cinema pudesse representar um lambe-botas
do arbítrio que para conseguir um carguinho e alguns favores se
transformaria num lambe-botas da democracia, que no exemplo bíblico de Saulo
devemos louvar, mostrando que a “elite transformista” também existe abaixo
dos trópicos. E assim perceberíamos de forma realista que mesmo tendo
afastado aquelas gerações modernizadoras do caminho durante um tempo,
pretendem continuar tomando o seu lugar por mais algumas, ou seja, o atraso
e o obscurantismo vão continuar resistindo, e a formação de gerações numa
concepção didática onde a política, o direito e a cultura estejam ligados à
prática social é uma importante contribuição para se consolidar a
democracia.

Geraldo Serathiuk, especialista pelo IBJE-PR.

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