A revolução das batutas

 

 

 

 

“Liga? Mas fica parecendo coisa de escola de samba…”. “Ué, oxalá a gente consiga atingir o nível de organização desse pessoal.” E assim era criada na tarde de domingo na Sala São Paulo a Liga das Orquestras Sinfônicas Brasileiras. Foi o último ato de um seminário que discutiu desde sexta-feira a situação das orquestras no País. Vários temas foram abordados, mas uma realidade perpassou todos eles. A música de concerto está nas mãos do poder público. E ele não tem idéia do que fazer com ela. Para mudar este quadro, chegou-se à conclusão de que os artistas precisam de poder para exigir políticas culturais claras para o setor. E isso só acontece com representatividade. Daí a liga, que passa desde agora a reunir os principais conjuntos sinfônicos em atividade regular no País.

 

O tom do seminário, promovido pela Fundação Osesp, foi dado logo na abertura, na sexta de manhã, com discurso do ministro da Cultura Gilberto Gil. Após definir a música clássica como símbolo da permanência da arte ocidental e da necessidade de sua constante reavaliação, ele reconheceu a inexistência de uma política cultural para o setor. Um dia antes, na quinta, o escritor Elder Vieira, coordenador do Plano Nacional de Cultura, já havia se referido ao setor, em encontro da classe musical promovido pela Philarmonia Brasileira, como uma “lacuna” dos últimos quatro anos de gestão pública. “É urgente a criação de uma política sistemática para a área. Mas precisamos de informações para criar planos de ação consistentes”, disse o ministro.

 

A declaração caiu como uma luva em um painel que tinha como objetivo discutir a relação das orquestras com o poder público. O ministro não ficou até o final. Se tivesse ficado, teria ouvido dos demais participantes que não há música de concerto e ópera sem dinheiro público. Seja por meio de investimentos diretos, seja pelas leis municipais, estaduais e federais de incentivo à cultura, é o Estado quem banca tudo. Mas não se trata só de dinheiro. O que falta é infra-estrutura. Para ficar em um exemplo: quem quiser hoje interpretar a música de compositores brasileiros como Carlos Gomes, Villa-Lobos ou Camargo Guarnieri se depara com a falta de edições das partituras, ficando obrigado a utilizar material muitas vezes repleto de erros e imprecisões; isso poderia ser resolvido com a criação de um banco de partituras preocupado em editar e disponibilizar este material. Da mesma forma, precisaria partir do governo a volta da discussão sobre educação musical nas escolas. E assim por diante.

 

Mas para que isso aconteça, porém, é preciso mudar a relação entre orquestra e Estado. “O que se percebe aqui é que houve uma precarização da nossa atividade. De quem é a culpa? Nossa? Do governo? Há um sistema educacional falho. Há a descontinuidade: tudo muda de quatro em quatro anos e a cultura deve ser um processo mais amplo, longo. Tudo isso é fato. Mas ficar pendurado no poder público não ajuda, esta relação de dependência gera vícios difíceis de contornar. As orquestras precisam aprender a andar com seus próprios pés”, disse o maestro Jamil Maluf, diretor artístico do Teatro Municipal de São Paulo. Marcelo Lopes, diretor executivo da Osesp, completou. “No começo, dependíamos da sensibilidade de algumas pessoas no governo para conseguir levar adiante o projeto Osesp. Mas acabamos criando um projeto consistente, ligado à comunidade o suficiente para transformar qualquer tentativa de acabar com a orquestra em um enorme prejuízo político.”

 

Em outras palavras, chegou a hora de as orquestras começarem a pensar em seu lugar no mercado. Mostrar aos governos porque são importantes. Para isso, no entanto, parece ser consensual a necessidade de uma nova realidade institucional para as orquestras. A Osesp, por exemplo, virou fundação. O Municipal de São Paulo encaminha em fevereiro para a Câmara de Vereadores projeto semelhante. O modelo não prevê a exclusão do Estado, pelo contrário: ele permaneceria como principal financiador. Mas permite maior agilidade na gestão, na captação de patrocínios, por exemplo, impedindo que os humores políticos interfiram demais no trabalho artístico. Profissionalização parece ser a palavra de ordem do momento. Seja na relação com o Estado, seja na estruturação de projetos que possam atrais a iniciativa privada.

 

O que ficou claro, no entanto, é que a realidade das orquestras é muito distinta. Participaram do seminário, além da Osesp e do Municipal de São Paulo, instituições como as sinfônicas de Porto Alegre, Paraná, Sergipe, Goiás, a Petrobrás Sinfônica, a Orquestra do Teatro Municipal do Rio, a Sinfônica Nacional, ligada à Universidade Federal Fluminense, a Bachiana Brasileira, a Orquestra de Câmara da Universidade Federal da Bahia, a Sinfônica da USP, entre outros. Os contextos de trabalho são distintos . E os problemas também. Se de um lado há grupos tentando refinar as relações de trabalho há outros que enfrentam problemas estruturais que colocam obstáculos a sua própria existência.

 

E é por isso que a liga surge também com o objetivo de propor intercâmbio de experiências. Na ata de fundação, estão previstos, por exemplo, o intercâmbio artístico e de acervos de partituras, grupos de trabalho para discutir aperfeiçoamento da legislação que rege a atividade orquestral, troca de know-how administrativo e operacional e a criação de um núcleo de formação de mão-de-obra específica para orquestras sinfônicas.

 

Vai funcionar? A pergunta é simples mas estava na cabeça de todos os presentes no seminário. Carlos Eduardo Prazeres, ao discursar em favor da criação da liga, idéia surgida na sexta-feira durante intervenção do maestro John Neschling, dá a pista do primeiro obstáculo a ser ultrapassado. “Chega de vaidades, de brigas pessoais entre maestros, de ciúmes, invejas. Enquanto a gente briga, nosso público está envelhecendo e as salas estão ficando vazias.” Fica anotado.

 

NÚMEROS

 

300 mil

pessoas formam o público-alvo mensal da Osesp

 

37%

das maiores empresas brasileiras preferem investir em música erudita, o que faz dela o terceiro maior destino de investimentos, ao lado da música popular

80% do público

da Osesp tem mais de 50 anos

 

96 a cada 100 pessoas

da população brasileira das classes D e E nunca foram a um concerto de música erudita

 

93 a cada 100 pessoas

da classe C nunca foram a um concerto de música erudita

 

75 a cada 100 pessoas

da população das classes A e B nunca foram a um concerto de música erudita

 

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João Luiz Sampaio

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