A realidade do aborto no Brasil retratada em quadrinhos

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Por Alessandra Monterastelli*

Há dois dias, o Portal Vermelho publicou uma matéria do El País que tratava de como o aborto continua sendo um grande tabu na América Latina, já que é considerado crime em quase todas as legislações desses países. Apesar da recente despenalização sob três hipóteses no Chile (risco de vida para a gestante, inviabilidade fetal e estupro) e a codificação dada pelo STF no Brasil em 2016 de que praticar aborto nos três primeiros meses de gestação não é crime, os avanços para uma lei que proteja as mulheres e reconheça o direito delas sobre o próprio corpo ainda é tímida.

Segundo dados da ONU, a América Latina é a região do mundo com maior porcentagem de gestações não planejadas, 56%. Apesar da proibição, o abordo é uma realidade: a cada ano centenas de milhares de mulheres efetuam o processo de forma clandestina, representando enormes riscos para a própria saúde. As complicações decorrentes dessas intervenções sem auxílio médico representam uma das principais causas de mortalidade materna- 67 mortes por cada 100.000 nascidos vivos, segundo dados do CEPAL.

Na realidade desigual e injusta de um país como o Brasil, movimentos feministas lembram que as mulheres ricas abortam através de procedimentos caros, enquanto as mulheres pobres e periféricas morrem ao tentar interromper a gravidez em clinicas de aborto clandestinas, muitas vezes de infecções causadas pela falta de preparo, cuidados e higiene do local.

Na maioria das vezes essas mulheres não têm condições financeiras e familiares de criar uma criança ou, ainda, são abandonadas no cuidado da criança, já que os homens têm o aborto liberado- se não querem ter o bebê, vão embora, não assumindo responsabilidade afetiva ou financeira.

Além de passar inúmeros riscos e dificuldades sozinhas, são julgadas pela sociedade como “assassinas” e “imorais”. Mas, afinal, quem são essas mulheres?

É isso que o projeto Quatro Marias, de Helô D’Angelo, Joyce Gomes e Bianca Santana trata de mostrar. A ideia, que nasceu como projeto de TCC, é contar a história, através dos quadrinhos, de quatro personagens que praticaram o aborto clandestino – humanizando-as e retratando suas dificuldades, situação social e personalidade. Os quatro relatos são histórias reais, apenas os nomes foram mudados. “Todo mundo conhece pelo menos uma mulher que abortou. Aqui, nós apresentamos as histórias em quadrinhos de quatro anônimas – quatro mulheres com quem você pode muito bem já ter cruzado na rua. Uma delas pode até ser sua amiga. Uma delas pode até ser sua mãe”.

Maria Memória é uma jovem de classe média que engravida e decide abortar no final dos anos 70, durante a ditadura militar, em uma sociedade ainda muita conservadora: “os anos 60 haviam passado e levado junto a liberdade sexual. Mas essa história só pegou mesmo na Europa e nos EUA. Por aqui, pelo menos entre quem estava no poder, os costumes e as regras continuaram tão rígidos e antiquados como antes (…) o aborto era uma coisa tão remota, no imaginário tradicional, que nem merecia ser discutido”. Além de contar a experiência das entrevistadas, o quadrinho apresenta dados reais da situação do aborto no Brasil. No Caso de Maria Memória, que após abortar engravidou novamente três meses depois, é revelado que 25% das adolescentes engravidam de novo um ano após primeiro procedimento.

Maria Dentro da Lei, descendente de avó indígena, engravidou vítima de estupro. “Você precisa ser mulher para sofrer violência sexual. Não tem cor, não tem classe social. Tem madame que entra no carro e tarado entra junto. E tem gente que está no ponto de ônibus e a violência acontece. É uma violência de gênero”, diz, em um dos desenhos, Beatriz Duarte Gomes, assistente social do Hospital Pérola Byngton. Maria recorreu ao aborto legalizado (permitido em caso de violência sexual), mas conta como é difícil encontrar um lugar para fazer o procedimento. “Na teoria, há no Brasil 71 hospitais disponíveis para o procedimento em 26 Estados; só que a lista desses estabelecimentos não está divulgada em lugar nenhum”; é citado, inclusive, que o Ministério da Saúde foi investigado por omissão pelo Ministério Público Federal em janeiro de 2016.

Na história de Maria Mudança, os traumas passados, a vida familiar e o lado psicológico da moça são mais explorados, já que sua história começa com ela contando do aborto em uma consulta na psicóloga. Por ser de classe média alta, consegue fazer o procedimento em uma clínica especializada, com um médico atencioso à sua saúde, e é bem tratada. No final, ela chora: “só porque eu tinha dinheiro esse procedimento foi seguro”.

Maria Julieta mora na periferia. “Sabe o que mais deixa as pessoas bem putas mesmo? Uma mulher com tesão. Isso não pode, só o homem pode sentir prazer”. Transa com um rapaz e, após contar a ele de sua gravidez, é abandonada: “cê você decidir ter o filho, sabe que vai ter sozinha. Eu não tô afim de ser pai”. Maria faz o aborto tomando Cytotec, que arranja de forma clandestina. Sofre durante todo o processo, tanto pelas fortes dores, pela falta de segurança e auxílio médico, quanto pelo medo de morrer ou de não conseguir interromper a gravidez de forma efetiva.

Essas são as quatro Marias. O trabalho narra, pelos quadrinhos, não só as dificuldades e perigos presentes na realidade de inúmeras mulheres brasileiras na hora de abortar, mas também os machismos da sociedade e a forma como as mulheres crescem com eles no seu entorno; o que passa pela cabeça de uma mulher diante dessas situações, e suas consequências psicológicas. Além disso, divulga dados importantes, explica o funcionamento da pílula e de alguns remédios dentro do corpo feminino. Tudo isso unindo texto e desenho, de forma simples e clara.
 

* estagiária do Portal Vermelho 

Do Portal Vermelho 

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