Ricardo Calil
Reprodução
O galã Carlo Mossy (com a musa Rossana Ghessa): “carnificina”24.01.2005 | Se o cinema brasileiro dos anos 70 fosse transformado em filme de ficção, a pornochanchada faria o papel do amante cafajeste, o público seria a boazuda insaciável e o cinema oficial da Embrafilme representaria o marido traído.
No clímax desse filme imaginário, o marido chegaria em casa no momento em que a mulher se entrega ao amante e este corre para se esconder no armário. Desconfiado, o corno trancaria o armário e jogaria a chave fora.
A pornochanchada ficou escondida durante anos no armário da história oficial do cinema brasileiro, mas agora dá sinais de uma volta em grande estilo. O gênero inspirou documentários sobre suas atrizes e produtores, virou tema de mostras em museus e cinematecas, de teses de doutorado e até de um disco – além de manter uma sessão de sucesso no Canal Brasil.
“A pornochanchada foi uma carnificina celulóidica”, define Carlo Mossy, galã e produtor de boa parte dos filmes do ciclo que dominou as telas dos cinemas brasileiros nos anos de chumbo da ditadura militar. “Foi uma grande sacanagem”, endossa o jornalista Xico Sá, conhecedor do gênero.
Dar papel de destaque à pornochanchada na história do cinema brasileiro é uma questão de justiça. Durante os anos 70 e começo dos 80 foram produzidos mais de 600 filmes do gênero. Alguns deles figuram entre as maiores bilheterias do cinema nacional. “Os mansos” teve 2,8 milhões de espectadores, “A viúva virgem” atraiu 2,5 milhões de pessoas e “Como era boa a nossa empregada” arrebatou outras 2,04 milhões.
A lista de sucessos é grande: “Toda donzela tem um pai que é uma fera”, “Os paqueras”, “Ainda agarro essa vizinha”, “O bem dotado, o homem de Itu”, “Mulher objeto”, “Histórias que nossas babás não contavam” e “Os bons tempos voltaram – Vamos gozar outra vez.”
Apesar da qualidade técnica e artística sofrível, do humor rasteiro e da visão conservadora da sexualidade encontrados na maioria das pornochanchadas, havia também alguns filmes de bom nível – incluindo até exemplares com discussões políticas e existenciais pertinentes, feitas por diretores como Carlos Reichenbach e Jean Garrett.
A definição de “pornochanchada”, termo pejorativo adotado pela crítica, não é simples. A princípio, ele se refere a comédias eróticas de baixo orçamento, que beberam na fonte do cinema italiano e da chanchada brasileira. Mas há quem defenda a tese de que filmes como “Dona Flor e seus dois maridos” e “A dama do lotação”, os dois maiores sucessos da história do cinema brasileiro, não passam de pornochanchadas com verniz literário. Ou ainda que os dramas eróticos de cineastas como Walter Hugo Khoury e Arnaldo Jabor também integram o gênero.
A maioria das pornochanchadas foi produzida na chamada Boca do Lixo, no centro de São Paulo, ou no Beco da Fome, na Cinelândia do Rio de Janeiro. Os filmes de cada cidade eram bem diferentes: grosso modo, a pornochanchada carioca era mais light e cômica; a paulista, mais pesada e cabeça.
Fábrica de símbolos sexuais
Ricardo Calil
Nathaniel prepara um documentário sobre as “musas”: discriminaçãoO ciclo da pornochanchada foi um raro exemplo de sucesso no cinema brasileiro que não dependeu da ajuda do Estado. Como disse a atriz Aldine Muller, numa frase já clássica: “Os intelectuais esgotaram o Cinema Novo, mas logo o pornô fez o cinema se levantar.”
A pornochanchada deu emprego a pessoas que mais tarde se destacariam como cineastas ou autores de novela (Guilherme de Almeida Prado, Antonio Calmon, Sílvio de Abreu), bons atores (Antônio Fagundes, Ney Latorraca, Nuno Leal Maia) e centenas de técnicos.
E, claro, foi uma verdadeira fábrica de símbolos sexuais nos anos 70. Passaram pela pornochanchada atrizes como Vera Fischer, Adriana Prieto, Helena Ramos, Aldine Müller, Sandra Barsotti, Rossana Ghessa, Nicole Puzzi, Kate Lyra e Adele Fátima.
As musas do gênero serão tema de um documentário dirigido por Nathaniel Leclery e roteirizado por Guilherme Coelho, parceiros do premiado “Fala tu”. Eles pretendem mostrar as histórias pessoais de algumas dessas mulheres, da infância ao presente. Entre elas há hoje donas de casa, evangélicas, vendedoras, produtoras teatrais. Uma minoria continua trabalhando como atriz.
A dupla pensou primeiro em fazer um documentário mais amplo sobre a pornochanchada. Um comentário de Eduardo Coutinho fez com que decidissem limitar o foco. “A pornochanchada não existiria sem as mulheres”, disse o diretor de “Cabra marcado para morrer” e “Edifício Master”.
Leclery e Coelho já estão sentindo alguns dos preconceitos que costumam rondar a pornochanchada. Ao procurar patrocínio, perceberam que algumas empresas não gostariam de se associar a um filme sobre o gênero. Por conta disso, decidiram tirar a palavra “pornochanchada” do nome do documentário e adotar o título provisório de “Os fabulosos anos do cinema brasileiro”. Ainda não levantaram patrocínio, mas acreditam que conseguirão filmar até o final do ano.
Leclery afirma que as atrizes da pornochanchada são o alvo preferencial da discriminação. “Há trinta anos elas são vistas como devassas. Essas atrizes ajudaram a cristalizar a imagem do que é a brasileira e sofreram muito com isso. Todas foram receptivas à idéia do documentário, mas apareceram armadas para o primeiro encontro.”
Uma das grandes musas do ciclo, Sandra Barsotti, confirma o cuidado. “As atrizes da pornochanchada eram vistas como profissionais do sexo, como verdadeiras piranhas. As pessoas mexiam com meu ex-marido, com meu irmão”, conta Sandra, que foi uma das poucas atrizes do gênero que ainda conseguiu realizar uma carreira bem-sucedida na televisão e no teatro.
Entrar no universo da pornochanchada foi para Sandra uma forma de romper certas barreiras pessoais. “Eu era a menina certinha do Leblon, a primeira da turma. As pessoas pensam que rolava a maior sacanagem no set, mas era tudo muito profissional”, diz. “A pornochanchada carioca era ingênua como uma fotonovela. Os filmes eram assanhados, mas não de baixo nível.”
A redescoberta do gênero
Além do documentário sobre as atrizes, em fase de captação, o gênero aparece como destaque em outro filme já finalizado: “O Galante rei da Boca”, de Luís Alberto Rocha Melo e Alessandro Gama. Exibido com sucesso em festivais de cinema no ano passado, o documentário mostra a trajetória do produtor Antonio Polo Galante, considerado o rei da Boca do Lixo. Ele produziu desde títulos como “Presídio de mulheres violentadas” até clássicos dos diretores Walter Hugo Khoury, Rogério Sganzerla e Carlos Reichenbach.
Luís Alberto Rocha Melo explica que o documentário não é especificamente sobre a pornochanchada, mas sobre os mecanismos de produção de um cinema popular. Ele detalha o modelo praticado por Galante: “Os exibidores adiantavam metade do orçamento. Com esse dinheiro, ele rodava o filme. Com a bilheteria, fazia outro filme e pagava as dívidas depois.”
Ele ensina que o título da pornochanchada era fundamental para atrair o público. “Galante fazia filmes a toque de caixa com títulos como ‘A filha de Emanuelle’ ou a ‘A filha de Calígula’, para aproveitar a publicidade em torno de produções estrangeiras que eram proibidas pela censura”, conta Luís Alberto Rocha Melo. “Naquela época havia um público flutuante que entrava no cinema de rua por causa do cartaz. Isso não existe mais.”
Alessandro Gama acha que esse não foi o único elemento que deixou de existir no cinema brasileiro. “Hoje se fala muito em cinema independente, em filme de baixo orçamento, em diversidade de produção. Mas quem realmente praticava isso era o Galante e ao outros produtores da Boca do Lixo, que faziam um cinema independente do Estado.”
“O cinema popular brasileiro está sendo redescoberto por uma nova geração. Existe uma história contada e outra não contada no cinema brasileiro. A pornochanchada está nessa segunda categoria. É preciso lembrar que o cinema nacional não é só Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos. Ele é feito também por produtores como o Galante e diretores como Osvaldo de Oliveira”, afirma Luís Alberto Rocha Melo. “A discussão não pode ser estética, nem ideológica. Não dá para dizer que os filmes populares eram melhores que os do Cinema Novo. A discussão tem que ser histórica e política. É preciso afirmar uma história que foi negada.”
O processo de afirmação dessa história negada começa a dar seus primeiros passos. A pornochanchada aos poucos vai abrindo a porta do armário para ocupar espaços nobres do cinema e da academia. Em junho passado, Galante foi tema de uma retrospectiva no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, com curadoria de Eugênio Pupo. Em dezembro, a Cinemateca Brasileira, também na capital paulista, foi palco da mostra “Cinema Brasileiro, a vergonha de uma nação”. Organizada por Remier Lion, ela reuniu diversos filmes populares, incluindo algumas pornochanchadas.
Não ficou nisso. A pornochanchada também se tornou tema de teses de mestrado e doutorado. “Boca do Lixo – Cinema e classes populares”, de Nuno César Abreu, da Unicamp, e “O Brasil é feito de pornôs: o ciclo da pornochanchada no país dos governos militares”, de Flávia Seligman, da USP, despejaram um olhar acadêmico sobre o gênero.
Vítima da abertura política
Para Hernani Heffner, conservador e pesquisador da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio (MAM), essas mostras e teses são sintomas claros da aceitação da pornochanchada por um público culto. “Há várias razões para a sobrevida do gênero. Em primeiro lugar, existe a questão do erotismo, que hoje pode ser considerado quase casto”, afirma. “A pornochanchada não é só peito e bunda. Há também um olhar sobre o espírito daquele tempo. O gênero reflete um quadro mais amplo de liberação dos costumes. Boa parte dos filmes mostra o choque entre a visão mais conservadora dos adultos e a visão mais libertária dos jovens.”
Hernani Heffner também aponta os motivos que levaram à decadência da pornochanchada a partir do final dos anos 70. “Com a abertura política, prevaleceu a idéia de que o cinema precisava endireitar o país. Era necessário fazer filmes mais sérios, mais engajados socialmente. Além disso, houve a ascensão do vídeo de sexo explícito e a explosão dos blockbusters americanos, como ‘Guerra nas Estrelas’.”
A sensualidade ingênua da pornochanchada, de acordo com o pesquisador, foi importante para a iniciação sexual de muitos jovens brasileiros. Essa tese é confirmada pelo caso do músico Alexandre Caparroz, conhecido como Che. “’A Sala Especial’, clássica sessão de pornochanchadas da TV Record nos anos 80, foi importante para minha educação sexual. Foi a época da tendinite plena”, diz Che, numa referência explícita aos efeitos colaterais provocados por hábitos onanistas. “Ver a Helena Ramos tirar a roupa era algo impactante.”
A memória afetiva daquele tempo foi tão marcante que Che (ex-Professor Antena) decidiu fazer um disco em homenagem à pornochanchada: “Sexy 70 – Music Inspired by the Brazilian Sacanagem Movies of the 1970’s”. Primeiro, ele pensou em compilar temas das trilhas do gênero, feitas por músicos como Erlon Chaves, Túlio Mourão, Paulo Moura e John Neschling, hoje maestro da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Mas, depois de ver mais de sessenta produções durante a pesquisa, decidiu compor novas músicas inspiradas pelos velhos filmes.
O resultado, acredita, fica próximo ao easy listening ou ao muzak, baseado em instrumentos como vibrafone, xilofone e piano elétrico e influenciado por trilhas de italianos como Henry Mancini e Ennio Morricone, mas com um molho latino. Depois de esgotar a primeira tiragem de três mil CDs, Che já programa shows para São Paulo a partir de março em que pretende exibir em telões ao lado do palco trechos dos filmes que o inspiraram.
Chanchadeiros viscerais
Não dá para falar em revival da pornochanchada sem citar o Canal Brasil. A sessão “Como era Gostoso o Nosso Cinema” é tão importante para o público televisivo de hoje quanto a “Sala Especial” foi para a geração 80. Há três anos essa faixa de horário dedicado aos filmes eróticos nacionais se mantém entre as maiores audiências do canal de tevê paga.
O diretor Paulo Mendonça afirma que “Como Era Gostoso o Nosso Cinema” foi importante até mesmo para a sobrevivência do Canal Brasil. “Em 2003, quando pensamos em fechar, essa faixa foi fundamental para mostrar que o canal tinha potencial de público.” A pedido dos assinantes, este ano o horário de exibição dos filmes passou da 1h da madrugada para a meia-noite. Vinte novas pornochanchadas, vindas dos acervos de David Cardoso, Cláudio Cunha e Antonio Polo Galante entraram na programação.
“O sucesso das pornochanchadas hoje, em meio à enorme oferta de sexo em outros canais, nas locadoras e na Internet, tem uma explicação simples: a coisa intuída é mais saborosa. Há um desgaste das situações mais explícitas”, diz Paulo Mendonça. Ele conta que a maior parte do público de “Como era Gostoso o Nosso Cinema” tem mais de 45 anos e pertence às faixas A e B.
O Canal Brasil foi responsável pela ressurreição de algumas carreiras, entre elas a do galã Carlo Mossy. Ao lado de David Cardoso, ele foi um dos principais atores-diretores-produtores de pornochanchadas dos anos 70. Depois que voltou a aparecer, agora na televisão, Mossy já foi convidado para papéis importantes no filme “O homem do ano”, de José Henrique Fonseca, e na série “Carandiru”, que Hector Babenco roda para a Globo. Mossy está dirigindo um programa sobre Carlos Imperial, a quem define como “o primeiro homem multimídia do Brasil”, e que também foi astro de pornochanchadas, para a série “Retratos Brasileiros”, do Canal Brasil.
Mossy aproveita o embalo e não pára por aí. Quer dirigir este ano o longa “Relações perversas”, baseado no conto “Uns braços”, de Machado de Assis. “Eu costumo dizer que escrevi esse roteiro a quatro mãos com Machado. Por isso, quero fazer uma leitura na Academia Brasileira de Letras.”
Não é exagero. Mossy também está captando dinheiro para realizar a série “Contos Eróticos na Madrugada” para o Canal Brasil. Serão treze episódios de “neopornochanchadas” com sexo explícito, dirigidos e apresentados por ele no estilo de Jack Palance em “Acredite se Quiser”. O ex-galã tem certeza de que será um sucesso. “Aqui no Brasil tudo é chanchada: o governo, a televisão, a política cinematográfica”, diz. “O brasileiro é um chanchadeiro visceral.”
Ricardo Calil Especial para nominimo.