Entre as coisas que mais assombram e atraem na poesia, está o momento em que nos deparamos com a surpresa do conhecimento de uma “voz”. Descobrir de quem é essa voz, tentar recompor sua história, o contexto de onde ela vem é um dos fascínios que envolvem a leitura da poesia.
Alexandre Simões Pilati*
A voz da lira, a voz da lírica é algo que se concretiza, definitivamente, na leitura; é também algo além dos sons, das palavras, das imagens do poema. A voz lírica é o que encontramos de vivo e real nos textos, é o que humaniza a construção literária.
Em certas poéticas, firmadas em princípios humanistas seguros, o prazer dessa descoberta é ainda maior. Este é o caso da coletânea Pé de ferro & outros poemas (Anita Garibaldi, 2017), de Adalberto Monteiro. A voz lírica de Adalberto Monteiro comove o leitor por sua honestidade, sua singeleza exigente, a disposição comunicativa e seu compromisso com o registro poéticos dos acontecimentos os mais diversos. Nesse sentido, a voz lírica desses poemas de Pé de ferro se assemelha à de um cantador de cordel, àquela dos repentistas e dos compositores populares. Entretanto, tal voz jamais resvala para o pitoresco ou para a estilização de um tom que não é o do poeta urbano, culto, comprometido com as lutas de seu tempo e consciente de seu lugar na luta de classes. A voz lírica de Adalberto Monteiro adere à vida, à matéria simples, humilhada, radiante e complexa da existência de todo dia. E o mais importante: realiza-se como voz real do mundo, sem qualquer mistificação.
O sujeito lírico de Pé de ferro & outros poemas, esse cantador urbano, olha para as coisas do cotidiano e as desvenda com a calma tranquila que apenas se constata nos sábios. Dele emana uma sabedoria serena no trato das mais variadas matérias, seja a memória, o amor, o erotismo, os fatos políticos, a cidade São Paulo, a miséria, a esperança ou a fome. Vale ressaltar, entretanto, que a sabedoria que preenche os versos de Adalberto Monteiro não é aquela de quem, petulante, acha que sabe tudo. É aquela de quem deseja saber, que sabe interrogar e que acredita que a arte é uma das mais profundas maneiras de se interpretar as relações humanas.
Talvez seja desse desejo de entender a dinâmica da vida que nasça a tendência essencial da poética de Pé de ferro & outros poemas: o olhar estruturado em função de crônica do cotidiano, em que o modo textual da descrição atravessada pela interpretação subjetiva converte-se em dominante da estrutura. Como um fino cronista de nosso tempo, Adalberto Monteiro jamais dissociará em seus versos o sentimento íntimo do olhar social, politicamente empenhado, atento a cada acontecimento que seja capaz de traduzir dinâmicas fundamentais do presente ou da História pretérita.
Para estar à altura de tal tarefa, a linguagem precisa encantar-se no comezinho. Em Pé de ferro & outros poemas, a linguagem poética precisa encontrar-se com o trivial e, portanto, precisa ser simples sem ser banal. É uma linguagem clara, pedestre, mas jamais vulgar. Sendo cotidiana, essa linguagem nunca é ordinária, uma vez que é mimese e veículo daquela sabedoria em torno da qual a voz lírica de Adalberto Monteiro se constrói, através da beleza que tem a sinceridade de alguém que, vencendo as hesitações típicas da personalidade do tímido, do retraído ou do deslocado, é capaz de se expor, de se revelar, integramente, honestamente, sinceramente.
Uma das formas utilizadas mais eficazes para requintar a expressão poética em Pé de ferro & outros poemas encontra-se na utilização de elementos naturais para traduzir estados de alma, situações sociais, movimentos da memória e as inusitadas arquiteturas do político. A natureza é um grande manancial de sentidos, onde Adalberto Monteiro recolhe forças de significado capazes de intensificar a expressão necessária a cada tema. É através da natureza, perceberá o leitor mais atento, que se constrói a quase totalidade das metáforas, das imagens, das figuras de linguagem de Pé de ferro & outros poemas. Com essa delicada força que vem da natureza e encanta a forma poética, Adalberto Monteiro enfrenta os mais difíceis assuntos, empresta dignidade e salva do esquecimento os que sofrem, os que ficaram para trás no tempo, aqueles sobre os quais a sociedade ou a intimidade não quer deixar sempre falar, relegando-os a último plano ou recalcando-os.
Fundamentalmente a poesia de Adalberto Monteiro, através desses princípios aqui aludidos apenas em linhas gerais, constrói uma voz que deseja comunicar e por isso comove, em sentido amplo. Comove porque nos incita à ação, comove porque impressiona, comove porque provoca a dureza da nossa alma, tão desacostumada a dar a atenção devida à beleza da vida. Ao nível do canto, ao nível do chão, essa poesia tem o grande mérito de ser expressão consciente de uma concepção de poesia que está traduzida em um dos textos de Pé de ferro & outros poemas: “O que será um livro de poemas senão o estuário no qual desembocam as alegrias e desgraças do mundo?” O autor sabe, como poucos, estar à altura de seu conceito de poesia, dando voz ao que nos salva e nos humilha; exprimindo poeticamente o que nos oprime e o que nos redime.
Alexandre Simões Pilati é poeta e professor de literatura da Universidade Brasília (UNB).
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