Processo de surgimento de uma etnia brasileira é obra da anulação violenta das identidades étnicas de índios, dos africanos e dos europeus
Decifrar e compreender o Brasil talvez seja uma das tarefas mais intrincadas que os sociólogos, antropólogos e cientistas tenham como desafio, pois a identidade brasileira possui nuances distintas de outras construções civilizacionais. Darcy Ribeiro mergulhou fundo nesta tarefa de arquitetar uma teoria plausível sobre o Brasil, com os estudos e análises que o consumiram por 30 anos em sua vastíssima obra antropológica.
Destas experiências e observações, Darcy defendeu, em sua obra O Povo Brasileiro, que aqui se constituiu a ninguendade – fruto da desconstrução étnica de nossas matrizes formadoras – ou seja: indígena, europeia e africana. Sua teoria obedece à conceituação de que aqui não se formou precisamente uma identidade nacional, mas uma maneira inventiva de se colocar no mundo, que nasce do desfazimento dos moinhos de gastar gente e da quebra brutal de suas etnias.
Marca indelével desta ninguendade é a mestiçagem. Essa argamassa de elementos de diversas etnias, religiões e culturas fundidos e lavados em sangue indígena, negro e europeu que enseja o povo brasileiro. Em sua investigação na construção da teoria que explica o Brasil, o antropólogo pondera:
“Nós, brasileiros (…) somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi um crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na ninguendade.
Fator capital para a mestiçagem um velho costume indígena foi a oportunidade que nossos colonizadores encontram para seu processo sutil em princípio de escravização indígena, por meio da tradição do cunhadíssimo.”
Esta antiga prática indígena para incorporar estranhos à sua comunidade consistia em lhes dar uma moça índia como mulher. Assim, estabeleciam-se laços que o aparentavam a todos os membros do grupo.
A partir de então, o estranho (europeu) estabelecia uma relação de parentesco com os índios da família. Oportunamente, o colonizador viu nesta tradição a oportunidade para o processo de pilhagem, pois contava com um enorme contingente de “cunhados” que seguindo a tradição do sistema de parentesco deveriam se pôr a serviço do parente.
Consequentemente surge a primeira geração de mamelucos fecundados nos ventres das mulheres indígenas, e que posteriormente seriam também a primeira geração da ninguendade. Esses mamelucos ou brasilíndios – um povo que não era índio e nem português, mas falava tupi – sofriam os efeitos de sua quebra étnica, de sua desindinização e a busca de uma identidade, que por meio dessa fusão biológica e cultural gestaria o que configuraria o brasileiro.
Este processo de surgimento de uma etnia brasileira é obra da anulação violenta das identidades étnicas de índios, dos africanos e dos europeus, como pela indiferenciação entre as várias formas de mestiçagem como os mulatos (negros com brancos), caboclos (brancos com índios) ou curibocas (negros com índios). Todos eles na ninguendade.
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