A partir de um roteiro escrito em 1987 por Rogério Sganzerla, inspirado por sua vez em contos de Luís Antonio Martins Mendes, a atriz e diretora helena Ignez fez de A Moça do Calendário seu filme mais orgânico e maduro, com uma pungente atualidade.
Por José Geraldo Couto
O protagonista é o “mecânico e dublê de dançarino” Inácio (André Guerreiro Lopes, extraordinário), que a narradora (a própria Helena Ignez) nos conta, em off, ter sido um jovem da elite, aluno das melhores escolas, antes de romper de modo traumático com o pai latifundiário.
Em torno desse fio narrativo central – as relações de Inácio com a mulher, com os colegas de trabalho, com o dono da oficina, com seus “bicos” como ator, com o sonho de encontrar a tentadora “moça do calendário” (a luminosa Djin Sganzerla) –, desenvolvem-se outros núcleos ou módulos: um apartamento comunitário onde vivem artistas e intelectuais, uma ocupação do MST, uma ONG contra o racismo etc.
Godard e chanchada
É uma tapeçaria heterogênea: há discursos sobre temas urgentes (violência de gênero, ocupação de escolas), há clipes musicais, inserções de filmes antigos, cenas burlescas e momentos de um delicado lirismo urbano, como aqueles em que Inácio percorre de bicicleta a praça Roosevelt e ruas de Santa Cecília, ou as caminhadas de Iara (também Djin Sganzerla) por calçadões e galerias do centro paulistano. Godard e chanchada, Noel Rosa e Mc Fininho, teatro de vanguarda e registro documental. Helena Ignez orquestra tudo isso com mão ao mesmo tempo leve e segura, sem perder o ritmo e o frescor.
Algumas ideias são bem características de Rogério Sganzerla, como o dono da oficina, o impagável “Celso Patrão, pré-capitalista primário”. Outras, ao que tudo indica, têm a ver com a sensibilidade especificamente feminina da diretora.
Há uma cena admirável que funde inúmeras tensões e demandas: num enquadramento fixo, com foco profundo, vemos Inácio em primeiro plano, comendo um ovo cozido e vendo no notebook o ator Jorge Loredo (o Zé Bonitinho) no filme Sem essa, aranha, de Sganzerla. Enquanto estuda e repete os gestos do ator, ele discursa contra a exploração capitalista dos trabalhadores. No fundo do quadro, sua mulher (Zuzu Leiva), passando uma camisa a ferro, retruca: “E você acha que eu gosto desta vida de uber-doméstica, passando roupa para pagar o condomínio?”
De certo modo, está tudo ali, assim como, em estado de potência, o filme se anuncia todo no magnífico plano inicial, em que, de costas para a câmera, o protagonista, numa laje sobre o tráfego do Minhocão, rege com os braços o caos da cidade.
Mulher na direção
É interessante observar como Helena Ignez, a partir de sua experiência acumulada de atriz, cinéfila e parceira criativa de Glauber Rocha e principalmente de Rogério Sganzerla, tornou-se na maturidade uma cineasta de personalidade própria, plena de vigor, inventividade e poesia.
O cinema novo não teve nenhuma mulher diretora. O cinema dito “marginal” tampouco. A própria nouvelle vague só contou com uma mulher cineasta, Agnès Varda, que aliás teve na Mostra de São Paulo uma bela retrospectiva. Hoje a situação é outra, e Helena Ignez segue desbravando esse mundo novo. Como diz o título de um filme de Marco Ferreri, Il futuro è donna.
Assista ao trailer:
https://www.youtube.com/watch?v=M_tsGbvXgrY
*José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor. Publica suas criticas no blog do IMS
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