A música angolana começa a ocupar o seu espaço. Depois de se afirmar dentro
das suas fronteiras inicia agora, timidamente, a conquista da audiência
internacional.
Mas se queremos falar da música em Angola, temos que fazer uma incursão no
seu passado musical e, mesmo, procurar mergulhar nas raízes de sua
história.
Sabemos que num passado longínquo houve em África migrações do grupo bantu,
de norte para sul, o qual ao atingir a região onde hoje se localiza Angola,
empurrou mais para sul os povos Koisan e Vatwa, que falavam uma língua
caracterizada por clicks. Quando em 1482 Diogo Cão chegou à foz do rio
Zayli, já existia o poderoso Reino do Kongo, de língua kikongo.
O que poderia ter sido uma troca de relações amistosas, degenerou na maior
injustiça de toda a história: a escravatura. Esta depressa se tornou uma
fonte de rendimentos que exauriu a região do grupo kikongo dos seus melhores
filhos. Mais tarde os portugueses expandiram-se para o sul, até à barra do
Kwanza, em 1560, levados pela ambição de chegarem às tão faladas minas de
prata de Kambambe.
Embora nessa época já se escrevesse música na Europa, não temos conhecimento
de qualquer partitura escrita pelos padres que vieram nas caravelas, com a
cruz numa mão e na outra a espada.
Em 1568/9 os Jagas penetraram no Kongo. Foram expulsos depois de violentos
combates. Uma parte instala-se na região de Kasanji, perto de Mbaka e uma
outra dirige-se para sul. Não sabemos qual terá sido o grau de contribuição
lingüística dos Jagas na língua kimbundu, nem tão pouco o grau de influência
musical na cultura Mbaka, que é o bastião dessa língua.
Depois da chegada de Paulo Dias Novais a Angola e da fundação de Luanda, o
porto desta cidade passou a ser um ponto de passagem de escravos para a
América (que levaram com eles toda uma cultura musical), como tinha sido o
de Mbinda, no Kongo. Nesta altura as movimentações étnicas já se encontravam
com fronteiras mais ou menos definidas, num espaço geográfico delimitado
pelas diversas zonas lingüísticas.
Em 1641 chegaram os holandeses a Angola. A sua ocupação durante sete anos,
deu origem, entre outras, às famílias Van-Dúnem e Vieira Dias, que viriam a
notabilizar-se no campo da música e não só.
Nas pinturas de Cavazzi, do século XVII, podemos encontrar já instrumentos
musicais, tais como a dikanza, ngoma, marimba, kissanji, clochas
(double-bell), instrumentos tradicionais que são construídos pelos próprios
músicos e que vamos encontrar nos povos da nossa região.
Podemos dividir estes instrumentos em:
IDIOFONES:
São instrumentos que soam por si mesmo mediante a percussão.
– Saxi (katxakatxa), comunmente chamado de maraca, feito de maboque. Depois
de seco fazem-se uns pequenos orifícios e no seu interior colocam-se
sementes secas. Hoje já se põe, por facilidade, missanga.
– Bavugu, instumento corrente do grupo Kung. Três cabaças untadas, num
conjunto baseado no jogo de ar comprimido e descomprimido, tangido por uma
mão num dos orifícios, enquanto que o outro orifício, é coberto e
descoberto, num movimento de vai e vem contra uma das coxas da perna.
– MEMBRANOFONES
Instrumentos de percussão.
– Ngoma (batuque ou tam-tam). Em tempos idos serviu para enviar mensagens.
Há vários modelos que variam segundo a região.
– Mpwita, tambor de fricção, ao que parece originário do Kongo. No interior
tem uma vara de madeira com uma das extremidades solidamente liga ao centro
da membrana. A mão direita molhada serve para friccionar e a mão esquerda
faz pressão na pele de tambor, em função do ritmo que quer marcar.
AEROFONES
– São instrumentos muito pouco falados. Tem-se conhecimento do Mpungu,
espécie de trompa de origem kikongo; do vandumbu, trompa de madeira macia
revestida por um enlleamento de fibras, do grupo Ambwela, no sudoeste de
Angola e do Njembo-erose, constituído por um chifre de antílope com
ressonador doboso de cera de abelha, instrumento limitado à área dos
pastores himbas (ovahimba), do grupo Herrero, no sudoeste de Angola.
CORDOFONES
– Instrumentos de cordas percutidas. É o caso do Hungu, também chamado
Mbulumbumba, muito utilizado pelo povo Koisan. É constiuído por um arco, que
possivelmente antes terá servido para arremessar flechas, com uma cabaça
amarrada. A mão esquerda, sustentando o conjunto, pratica um movimento de
vai e vem contra o ventre. A mão direita, com uma varinha, percute a corda.
Este instrumento foi levado pelos escravos para o Brasil, onde tem o nome de
berimbau e serve para acompanhar uma dança acrobática chamada capoeira de
Angola.
INSTRUMENTOS DE CORDAS ESFREGADAS
– A Kakocha, espécie de violino com três cordas.
INSTRUMENTOS DE CORDAS BELISCADAS
– A tchihumba, constituído por cinco cordas de mateba, ou mais, ligadas às
astes e a uma caixa de ressonância. Segura-se com uma das mãos e toca-se com
os polegares.
INSTRUMENTOS DE LÂMINAS
– Marimba. De influências culturais asiáticas, é um instrumento que se pode
encontrar perto das quedas de Kalandula e também na região da Lunda.
– Kissanji. É um instrumento de som fluido, utilizado para fazer companhia
em grandes caminhadas, ou como fundo musical quando um mais velho conta
histórias, à volta da fogueira, ao luar. Sobre a tábua harmónica fixam-se as
lâminas, que podem ser em bambú ou metal, presas a um cavalete. O
instrumento é agarrado com as duas mãos e tocado com o polegar de cada uma.
Alguns grandes tocadores chegam a utilizar os indicadores. Também é chamada
Mbwetete, quando é feita à base de bambú.
Todos estes instrumentos são utilizados em função dos momentos adaptados às
necessidades, tais como nascimento puberdade, casamento, caça, cânticos para
a chuva, rituais litúrgicos, funerais, varrer das cinzas, espirituais, etc.
entre os muitos ritmos que os acompanham podemos referir a kabetula,
kilaphanga, semba (rebita) e makinu.
Com a escravatura exportaram-se culturas para as Américas (norte e sul), que
vieram mais tarde a dar origem a outras culturas, incluindo musicais. No
caso do encontro de Portugal com Angola e o Brasil, sabe-se hoje que a
partir das viagens marítimas do século XVII se estabeleceu um intercâmbio
entre os povos da península Ibérica e os ameríndios, que veio a dar origem
ao fandango, dança popular espanhola aparecida por volta de 1769. Tudo leva
a crer que os espanhóis tenham aprendido com os ameríndios, nas suas
colónias, uma dança que veio a dar origem ao fandango, em Sevilha, onde já
havia influências da cultura musical oriental, cultivada pelos mouros e
ciganos.
O fandango iria encontrar-se em Lisboa, no século XVIII, com as danças fofa
e lundu, vindas do Brasil, resultando no fado que, segundo José Ramos
Tinhorão “viria no século XIX a realizar sua síntese, passando da taberna ás
salas para virar canção”.
De notar que a chamada dança lundu no Brasil, que surgiu na Baía no século
XVIII, aparece também em Lisboa nos fins da década de 1770. Trata-se de uma
dança que está relacionada com o Kaduke de Mbaka (Angola), e que veio a ser
uma das danças mais populares em Luanda com o nome de masemba (umbigadas,
plural de semba), que se caracteriza pelo encontro dos corpos, na umbigada.
E uma dança erótica levada pelos escravos para o Brasil e que lá se adaptou
ao quadro económico e social.
A palavra lundu vem de kilundu que segundo António Asis Júnior quer dizer
espírito, ser do mundo invisível e Cordeiro da Mata refere como ente
sobrenatural, que dirige os destinos do homem. O seu diminutivo é Kalundu.
Hoje, no nosso linguajar popular temos a expressão “está com os calundus”,
está atacado de loucura.
No Brasil o encontro forçado entre portugueses e negros e uma parte da
cultura ameríndia com o ritmo de cadência angolana Kaduke/semba vem a dar
origem ao samba, vocábulo muito controverso. Mas Liceu Vieira Dias diz que
“o samba é o Kaduke. Semba e Masemba são a mesma coisa. Semba é singular. O
prefixo ma, em Masemba, é plural. O samba está directamente ligado à masemba
e ao semba. Samba não é como os brasileiros pensaram, um facto do folklore a
que eles ligaram este nome. Samba é o infinito de Kusamba (rezar). E é
natural, como eu já disse uma vez, ao contrário do que afirma Câmara
Cascudo, que lá nas grandes roças onde os senhores de engenho ficavam
isolados nos seus casarões com a família, que à noite, nos terreiros, os
escravos se juntassem para pedir aos deuses o regresso à pátria, à terra.
Então eles empregavam o termo Samba, confundiram com Samba, que era rezar,
implorar e pedir a Deus, através de uma manifestação étnico-coreográfica e
musical, como era comum em todos os povos primitivos. Isto foi considerado
não do ponto de vista religioso pelos senhores de engenho mas do ponto de
vista recreativo. Daí o facto deles terem ligado uma manifestação religiosa
com uma manifestação festiva, com um acto festivo”. Isto foi o que
aconteceu”.
Com a “vinda do soldados desterrados sem as mulheres, criou-se um encontro
entre os povos e um conseqüente aumento de mestiços e negros calçados, que
engrossavam as fileiras duma pequena burguesia nascente”. Os efeitos
deixados pela invasão de Napoleão à Península Ibérica iriam catalizar o
processo de simbiose cultural, que já estava a operar na música feito pelo
povo que se concentrava em redor da cidade de Luanda.
Mas essa é uma outra estória, mas recente, que esperamos desenvolver numa
próxima crônica.
II. AS PESSOAS, O MEIO E O TEMPO
FIGURAS MARCANTES DA ÉPOCA (1875/1935)
P
ropomo-nos neste capítulo, levar os nossos leitores ao universo da música
suburbana; sua gênese, suas figuras mais representativas (poetas, pintores,
intelectuais, músicos, intelectuais, músicos, funcionários ou simples
habitantes de bairros populares ou da periferia), todos empenhados em
defender a cultura angolana, em geral, e a música, em particular. Mas falar
dos homens implica falar do seu meio: Luanda, catalizadora da vida cultural
e política, de ontem e de hoje.
Ao abordarmos este tema é indispensável fazer referência a dois conceitos, a
nosso ver essenciais, que gostaríamos de definir para despojá-los de todas
as conotações a que estiveram submetidos ao longo dos tempos e, sobretudo,
durante a era colonial. Trata-se de “música tradicional” e de “folklore”.
A música tradicional pode ser considerada como ligada a um passado muito
longínquo, transmitida oralmente de geração a geração, ligada aos hábitos e
costumes (práxis). Esta música influenciou a música popular que se
manifestou em torno da cidade de Luanda.
Para classificar este tipo de manifestações surge a palavra folklore. É uma
palavra de origem inglesa (1846) produto da união de folk (povo) e lore
(ciência). Folk-lore, ciência de um povo, ciência das tradições, de usos da
arte popular dum país. Por extensão (1877), folklore: conjunto dessas
tradições, cantos, legendas populares do folklore nacional, provincial.
Com o decorrer do tempo, a palavra folklore tomou um conceito diferente
daquele que deu origem, e é assim que vamos encontrar nos “grandes
dicionários: “aspecto pitoresco mas sem importância, ou sem significação
profunda” e como locução familiar a expressão: “é folklore, não é
importante”. Em África foi o segundo sentido da palavra que recebemos. A
partir daqui, podemos deduzir que a palavra Folklore terá servido para
classificar certas manifestações consideradas sem importância para os
europeus.
Mas voltemos à história da música em Angola. “Luanda, era ainda por esta
altura uma pequena urbe, habitada como vimos, essencialmente por
comerciantes e funcionários, ocupando-se de negócio, o centro de todas as
atenções”.
No século XIX nasce em Benguela Augusto Tadeu Bastos (1872/1936),
personalidade multifacetada no domínio das artes, das letras e das ciências.
Foi compositor musical e pintor, jornalista e novelista, conferencista e
linguista, etnógrafo e historiador, estudioso da astronomia e da matemática.
Entre as várias músicas de motivo angolense, que compôs e interpretava ao
piano, salientava-se a valsa “As Furnas do Lobito”. Até à data não sabemos
onde se encontra (m) a (s) partitura (s).
Em 1875 surge-nos uma composição, que tem por título Madya Kandimba (Maria
Coelhinho). É uma das primeiras peças de coro de Masemba recolhida por Óscar
Ribas e que ele nos apresenta no seu livro Misoso III, (1964).
A peça conta-nos a história de um europeu de amores com a sua empregada
africana. A mulher, ao tomar conhecimento deste romance, de pistola em
punho, põe-se à procura da empregada, que foge de barco. Pela sua estrutura
melódica e poética, somos levados a crer que Madya Kandimba é já um produto
definido em termos de simbiose cultural. Outras peças mais recentes, têm a
mesma estrutura, o que nos leva a crer que a génese da música suburbana é já
anterior a 1875.
1884 é a data atribuída à composição Kinjangu (cataneirão). Não sabemos se
ela veio já composta/criada das zonas ao redor de Ngulungu Alto ou se foi
criada em Luanda por aqueles que vinham desta região.
Depois de ouvir alguns músicos dos anos 40 ficamos a saber que Kinjangu era
conhecido pelos seus actos bárbaros cometidos contra o povo de onde ele
próprio era descendente, em parte.
Nesta composição diz-se que ele (Kinjangu) tomasse cuidado, pois quando
chegasse o momento ( a independência ), os que não eram de casa, teriam para
onde ir/fugir, mas ele sendo de casa, teria que ajustar contas com os seus
conterrâneos. Esta idéia traduz-se na estrofe onde se fala na galinha do
mato (hanga) referindo-se ao ocupante, o português, e galinha-de-casa
(sanji) para fazer referência ao filho da terra. De ressaltar a mensagem
dada através da referência à escrava que aborta, e à patroa que dá à luz
com a finalidade de salientar as injustiças no quadro dos estratos sociais
provocados pelo encontro forçado entre o filho da terra e o ocupante, cujo
objectivo era o dinheiro, mais importante que a vida.
A palavra Kinjangu, nesta composição, designa o nome de uma pessoa de origem
italiana (Quinjango), mas coincide com a palavra “kinjangu” que em kimbundu
se traduz por cataneiro, o que possui uma catana ou trabalha com ela. Catana
em kimbundu é Njangu, palavra pertencente a uma classe cujo plural é
jinjangu (catanas). A palavra no singular juntando o prefixo ki- (ki-
njangu) pode também ser interpretada como o cataneirão, se considerarmos o
prefixo ki como um aumentativo. Face a todas estas indicações ficamos
perplexos quanto ao valor semântico a ser atribuído a esta palavra no
contexto temático da peça em si. Conhecendo minimamente o povo de onde esta
composição é originária, o seu espírito sarcástico e humorístico, podemos
ter tendência em optar pela tradução da palavra Kinjangu como cataneirão.
Quando Angola aparece em 1885 com as suas fronteiras traçadas na conferência
de Berlim, já os efeitos do retorno das culturas musicais exportadas pelos
escravos (Brasil e Portugal) se faziam sentir em Luanda, tanto mais que as
duas composições: Madya Kandimba, de 1875 e Kinjangu, de 1884 já se
encontravam com escalas musicais definidas: a maior e a sua menor relativa.
Na última década do século XIX, Alfredo Troni (1845/1904), célebre advogado
português muito interessado pelas coisas de Angola, esquecia as advocacias e
tornou-se um dos altos frequentadores de Masemba. Era tão popular que até já
era falado numa das músicas da sua época.
Tolony, kina kyambote Trony, dança bem
ilumba, yala ku muxinda as moças, estão na fila
No primeiro quartel do século XX, o meio artístico angolano iria beneficiar
da experiência vivida pelos intelectuais de estirpe, baseados na cultura
tradicional ou popular.
Cordeiro da Matta (1857/1894 ) com a edição em 1891 dum livro de provérbios
(jisabu ) e adivinhas (jinongo-nongo), que vamos encontrar em algumas
músicas populares, certifica-nos, assim, a origem das inspirações da música
popular que se vem a conhecer anos mais tarde.
O velho Luís Gomes Sambo (1874- 1946 ), “figura de destaque das famílias
fidalgas de Cabinda”, homem de muito saber nas ervas e no campo musical,
“ervanário e naturista”, dedicava-se à música clássica. Foi o autor de
composições para banda e sopros que ele dirigiu e com a qual desfilou nas
ruas de Luanda em momentos festivos, como o carnaval. Prestigiado nos meios
sociais angolanos e portugueses de Angola, passeou a sua banda pelo país.
Não se expunha com menos de quinze figuras. Residia em Kaxitu, mas
deslocava-se muito à Luanda, Benguela e Katumbela. A banda tocava música
própria de “fanfarra”, em coretos de Luanda e kaxitu, antes de 1943. Não se
encontram rastos das suas partituras. Os netos, alguns deles músicos
contemporâneos, conhecem algumas de suas melodias.
António de Assis Júnior (1877/1960) “foi o primeiro presidente da Liga
Nacional Africana em 1930″. Editou um belíssimo dicionário
Kimbundu-Português, também com provérbios populares.
Voto Neves “foi antigo tesoureiro da Câmara Municipal de Luanda”. Tocava
viola e cantava músicas africanas e portuguesas. Conhecia e lia música,
chegou mesmo a dar aulas e já tecia considerações sobre música, “explicava a
semelhança, pelo menos eufónica e melódica da música brasileira com a nossa,
dizendo que o próprio baião tem origens africanas. “Liceu” (1919/1994), anos
mais tarde, defendendo a mesma tese.
O velho Rodrigues Ndongo, “é um dos precurssores da música popular
angolana”. Já era um grande tocador de guitarra à bayana em 1935. Tinha um
conjunto formado pelos velhos Borja (pai do Xodó), José da Conceição, que
tocava violino, funcionário de Finanças, (pai do Noémio da Conceição),
acompanhado à guitarra pelo Cabedo de Lencastre, que também já cantava em
kimbundu (madya kandimba, por exemplo). José da Conceição dos Santos (pai do
falecido José Cordeiro,que pertenceu ao Ngola Ritmos), e o Aleixo Palma, avô
da falecida cantora Belita Palma.
Filipe Amado (karola) (1894/1968), “gráfico da Imprensa Nacional de Angola”,
homem da dikanza segundo alguns, também dava uns toques de sanfona. “Figura
popular das masemba e comandava as rodas de semba com garbo e autoridade dum
bom mestre-sala.
Abel Fontes Pereira, um outro alto sanfoneiro, p0,ai dum grande compositor:
Fontinhas e seu irmão, Oliveira F. Pereira, fundador do grupo de teatro
Ngongo.
António Palma, “oriundo de Kabiri, foi o pai da Belita Palma, cantora que se
distinguiu nos anos 60. Era funcionário de Justiça e também dedilhava
instrumentos de corda. Faleceu muito velho, livre, algures no Lubangu, onde
acabou por se exilar.
Nga Firmino (1091/1995), oriundo de Malanje e pedreiro de profissão, era
tocador de sanfona e conhecedor duma série de peças da música suburbana
luandense. Muitas delas fizeram parte do repertório cantado pela geração dos
anos 40.
Um pouco mais tarde iriam aparecer figuras de destaque. Foi o caso de Manuel
dos Passos, grande companheiro de “Liceu” (músico e compositor dos anos 40)
considerado por Domingos Van-Dúnem “como um homem de profundeza de
pensamentos, de uma cultura ímpar. Nasceu no seio do kimbandismo, era um
mestre.
Xico Machado já não é da mesma opinião. Embora reconheça o valor de Manuel
dos Passos, diz “o Álvaro Caldas para mim era o maior porque estava
embrenhado justamente no meio onde vivia, ao passo que o outro não, o Passo
virou funcionário.
Jaime de Sousa Araújo tenta esclarecer-nos um pouco mais e diz-nos que
“Manuel dos Passos dominava o kimbundu e conhecia pormenores culturais da
vida esperitual, no convívio filial com uma grande senhora espírita, Xika
Aniceto (1872/1959), mestiça, residente do bairro operário, do lado do
tanque de água. Esta senhora importante à qual Óscar ribas fazia também
referência, reunia em sua casa numerosas pessoas e tratava da cultura
mental, como as “macumbas”do Brasil. Era a “biblioteca” do Manuel Passos”
que por ela foi criado. No livro Izomba, Óscar Ribas diz-nos que “Francisca
Aniceto foi relamente uma kimbanda de nome entre a massa nativa luandina.
Manuel Passos tinha “alguma qualidade no espaço social de salões e casas de
danças nativas. Ainda que evoluindo no mesmo meio tinha um comportamento
multifacetado e diferenciado, devido à educação que recebera. Não destoava a
presença do Manuel dos Passos tanto nos salões da Liga Nacional Africana, de
burguesia seleccionada, como em salões de “kilaphanga” ou de “masemba”.
Distinguia-se.
“Caldas era diferente, por falta de determinados hábiots e traquejo em meios
diferentes do Bairro Operário, Tanque de água, Caribala, etc.(…) Todavia,
revelava-se uma figura inteligente e popular nos meios de dança dos bairros
suburbanos. A maior diferença era ditada pelas condições de ordem económica
de ambos.
“Álvaro Caldas não se sentia bem nos bailes da Liga ou da Associação dos
Naturais de Angola, que obrigavam a certos preceitos de postura e de
apresentação…Dedicava-se mais às músicas populares de “Batuque” ou salões
pobres e carnavalescos, como às Sátiras de disputa entre a “Fineza”,
“Coração” e a “Cidrália”; esta banda, com sede no Bairro da Ingombota, onde
nasceu. (…) Algumas vezes procurava-se o Caldas no salão de “Kilapanga”,
situado no Tanque de Água (Bairro Operário), onde cantava e dançava.
Outra figura importante do folklore luandense, era o Flávio Galiano, burguês
de estirpe. Lembrava a desenvoltura dos foliões “crioulos” do Brasil.
Atlético, funcionário do Banco de Angola, como o irmão, campeão de salto em
altura e de estafetas 4 X 200, Flávio foi um dos bons defensores do Sportimg
Clube de Luanda nos anos trinta. Brigão, quando tivesse que defender as suas
hostes carnavalescas. Tocador de tamborim de uma das mais afamadas danças
dos subúrbios – o “Coração” ou o “Pincão”, era de trato afável e cavalheiro
no exercício de suas funções bancárias. O Flávio sabia conciliar
comportamentos sociais, por forma a se tornar um empregado exemplar do
banco; folgazão nos períodos carnavalescos e adversário difícil em lutas,
algumas delas travadas na Ilha do Cabo, onde em períodos de lazer pernoitava
amorosamente amancebado.
Podíamos falar também de Horácio Van- Dúnem, de Adão Correia, mas até à data
não nos foi possível recolher dados necessários. Outros homens, muitos deles
desconhecidos das novas gerações, notabilizaram-se neste combate, alguns às
vezes até inconscientemente, pela afirmação e revalorização da música em
Angola. Tinham em comum a vontade de viver e absorviam diferentes
influências vindas do exterior. Na verdade, eram ritmos e danças de Angola
que, levados pelos escravos para fora do país, regressavam à terra
modificados, influenciando os jovens angolanos que neles se identificavam.
É o caso do Tango, do samba, do blues, do jazz…
Na Argentina, em 1864, já se falava do Tango. Escrito na língua bantu:
tangu, em kimbundu, quer dizer “ramo”. Vem do ritmo milonga, mas não estamos
documentados para afirmar se terá havido um ritmo com esse mesmo nome em
Angola. Ao ouvir o ritmo milonga (na Argentina) reconhecemos uma relação com
o kaduke/semba (em Angola). A palavra milonga é o plural de mulonga, que no
dicionário de Cordeiro da Matta quer dizer: crime, mistério, ofensa,
figurativo, ressentimento. No dicionário de Assis Júnior tem o significado
de contenções, questões, demandas(…) desavenças.
No Brasil, em 1930, já se falava do samba (reza) que vem dos rituais
litúrgicos feitos pelos escravos.
Na Ámerica do Norte, os cantos e as danças africanas levadas pelos
descendentes da arte do griot (trovador, contador de estórias ) dão origem
ao blues. Este terá aparecido por volta de 1870, depois da guerra de
secessão e da abolição da escravatura.
Os cantos de blues, os espirituais e o ragtime são os elementos que estão na
origem do jazz. Não podemos precisar a data da aparição de todos estes
ritmos na América no Norte. Contudo, sabemos que entre 1880 e 1910 alguns
negros de Louisiana agarraram-se a um conjunto de tradições e
desenvolveram-nas em função de um novo contexto social, que era o seu.
A minha busca desesperada das raízes da cultura que me é intrínseca, pode
encontrar a sua explicação nas palavras de Jaime de Sousa Araújo pronuncia,
quando diz: decorridos mais de meio século, sei avaliar as qualidades destes
grandes folkloristas, cidadãos de porte criticável na época de maior
preconceito social e que os estudiosos e musicólogos ignoram. Como o Manuel
dos Passos, Álvaro Caldas, Alfredo Lopes Teixeira, Flávio Galiano, os
especialistas deviam atentar ainda nas figuras de comportamento
multifacetado que, afinal merecem as maiores homenagens de gratidão, como os
poetas populares e irmãos Amilcar Neves e Eurico, filhos do velho Aurélio
(voto) Neves, outro folklorista de estirpe. (…)
Esses precursores de cultura comparavam-se a grandes figuras da música e do
carnaval brasileiro. Continuam ignorados.
III. A GERAÇÃO DOS ANOS 1940/50. LUANDA E AS SUAS FIGURAS MAIS MARCANTES
A
cultura musical luandense é fruto de vários encontros.
Diversos grupos populacionais chegaram a Luanda provenientes de várias
regiões de Angola, com preponderância para os grupos kimbundu, kikongo e
mbundu. Estes grupos traziam consigo o seu próprio universo cultural e à
medida que o tempo avançava iam se adaptando às novas realidades.
Um deles, vindo de Mbaka, trouxe o kaduke, ritual que era dançado ao ar
livre, acompanhado por instrumentos musicais rudimentares. Em Luanda, em
contacto com novas realidades, tornou-se dança de salão, onde entra a
sanfona, os homens vestidos de smoking e as mulheres com os seus belos
panos.
“Os nobres portugueses exilados como conseqüência das invasões francesas a
Portugal, chegados a Luanda sem as mulheres e habituados a uma vida social
muito influenciada pela cultura francesa, influenciaram (…) os nativos do
país”. Por essa ocasião fundaram-se associações, onde se organizavam bailes.
Estes tinham por base um tipo de movimentação coreográfica que é exactamente
a do “cotillon” francês (…). Algumas figuras do desenvolvimento da dança,
que era colectiva, eram comandadas(…) em francês: changer la dame, touner
à droite, touner à gauche. Além disso, havia muitas outras expressões
francesas testemunhando sua influência”.
Arlindo Barbeitos, lembra-se de ter visto/ouvido no Dondo, quando miúdo, uma
voz de comando dar início a este ritual, numa entoação que ele ainda sabe
imitar: un deux trois maintenant ça commence.
Esta dança, o Kaduke, caracteriza-se pela semba (umbigada, no plural
masemba): homens e mulheres entrechocam-se. É uma dança erótica, propícia
para aqueles que se encontravam sozinhos.
Em 1921 criam-se grupos recreativos e popularizavam-se imensas composições
com um conteúdo ligado às realidades objectivas do quotidiano. Os
compositores anónimas desta época, baseados às vezes em provérbios populares
(não sabemos se estes provérbios já tinham melodia na altura), puderam dar
largas à sua imaginação e acrescentar partes de sua autoria, algumas de
cariz sarcástico, quando não político, e deixar assim cristalizado nas
consciências o substracto de uma nova cultura em gestação.
Luanda deste tempo era já uma cidade mestiça, sob vários aspectos da vida
musical quotidiana. Os efeitos da cultura musical exportada pelos escravos,
já se faziam sentir em alguns pontos do planeta. O tango, o samba, os blues,
o jazz e o merengue têm um grande impacto nos músicos em Luanda, sensíveis a
esse retorno dos seus ritmos e danças. Entre eles manifestam mais simpatias
pelo samba, talvez por estar mais próximo de um ritmo local e mais
directamente ligado à população de cultura mestiça.
Em meados dos anos 30 já se evidenciavam nomes, tais como: Voto Neves,
Alfredo Lopes Teixeira, Flávio Galiano, Amilcar e Eurico Neves (poetas
populares, filhos do velho Voto), Luís Gomes Sambo, António Palma, Nga
Firmino, Fansony, Filipe Amado (Karola) José Vieira Dias, José de Fontes
Pereira, Mestre Geraldo, Horácio Van-Dúnem, Adão Correia, Óscar Ribas,
Pwaka, Viroscas, Teófilo José da Costa (Cu de Palha), Domingos Benedito de
Palma (pai da Bélita), Guilherme de Assis, (filho do escritor da Terra
Morta), os velhos Saraiva e Cordeiro, Álvaro Caldas, Manuel dos Passos e
tantos outros. Todos estes homens, indirecta ou diretamente, pertenciam ao
mosaico da música de Luanda. Faziam parte da árvore genealógica musical e
eram os ramos do tronco de uma árvore cuja raiz mergulhava nas profundezas
dum passado longínquo, com nomes incógnitos. Mas outros ramos iriam nascer.
Figuras Marcantes
O velho Rodrigues Ndongo, um dos precursores da música angolana, tinha um
conjunto formado pelos velhos Borga (pai do Xodó), José da Conceição
(funcionário de Finanças, pai do Noémio da Conceição e do falecido
Cordeiro), que tocava violino acompanhado à guitarra, Cabedo de Lencastre,
que também cantava em kimbundu (o Madya Kandimba, por exemplo) e o Aleixo
Palma.
Chico Machado, que veio a revelar-se um bom cantor de sambas, diz-nos ainda
que ” nesta época havia umas Tunas, onde, os personagens eram o pai do Liceu
(Vieira Dias ) que tocava piano, os irmãos Martins, do Ambriz, Alfredo
Saraiva, Abel Lencastre e outros cujos nomes não me recordo”.
Ainda segundo Chico Machado ” o pai do Liceu entrava muitas vezes em choque
conosco, por causa da nossa linha. Não nos apoiava e o Liceu dizia: – pois
é, por vossa causa é que a gente está subjugada. Ele e o pai pegavam-se
constantemente. E o pai argumentava: – garotos, não tem rodagem e querem nos
ensinar o verdadeiro camimho. Cresçam e apareçam. Era um nacionalista…”
Por esta altura já existia a Turma do Barulho. Na opinião de Gabriel Leitão,
“este grupo deve ter durado até 1944, com nomes tais como Beto Pimentel
(violão), Pedrinho seminarista (violão ), Guilherme Cordeiro (violão ),
mirumba (tumbas ), Xikitu Kwarrata (violão), Pitorra e Ermelinda”.
Liceu, em 1936, já beneficiava do convívio de Manuel dos Passos e Óscar
Ribas de Araújo. O jovem Nino Ndongo, seu primo, na altura com 10 anos,
quando se deslocou a casa dele com a viola do pai em punho para umas lições,
lembra-se de lá os ter encontrado.
Foi neste ambiente musical com serenatas e farras, ainda hoje faladas e
lembradas com nostalgia, que desembarcaram em Luanda os irmãos OSMACE
(Óscar, Mário e César) vindos de Portugal, onde estudaram num dos mais
conceituados colégios. A música ia entrar numa outra fase.
Os autores iriam compôr não de uma forma espontânea, mas antecipadamente
reflectida.
Para atingir certos objectivos, o Liceu, já influenciado por uma família de
músicos, ganha uma certa simpatia pelo Óscar e com ele avança os seus
conhecimentos no violão. Com o Morais, que tinha acabado de chegar do Brasil
e com quem também aprendeu uma série de “musiquinhas”, formou-se o Grupo dos
Sambas, constituído por Liceu, Óscar Araújo, Antonino Van- Dúnem, Lacerda,
Alfredo Saraiva e Chico Machado. O Óscar, como diz o Liceu: “introduziu
aquilo que se chama o amor pela música brasileira(…) que nos levou a
descobrir a nossa cultura e o valor que ela tem”.
Numa primeira fase são compostas algumas músicas, tais como “Mirumba dos
Olhos Fundos”, “Golpe Profundo”, “Luar Indiscreto”, “A Divisa Desta Turma”,
“O Samba e o Mundo”, “Oxalá”, “Adeus de Despedida”, “Arrependimento” e
“Adeus”.
Por esta altura Liceu já tinha músicas de cariz reivindicativo. É o caso de
“Paulistanas de Cá e de Lá”, de 1937, e “Caminhos de Abrolhos”, de 1939, que
só são conhecidas pelos elementos que vêm a fazer parte do grupo (Antonino
Van – Dúnem, Lacerda, Saraiva e Morais).
A 3 de Março de 1938 fizeram uma emissão directa para o Brasil. O técnico de
som foi o Zé Amado, que era na altura chefe de produção do Rádio Club.
Chico machado, que também pertenceu ao grupo, diz-nos que as miúdas
Gertrudes e Helena Portugal também chegaram a cantar, e Tia Idalina
(conhecedora de muitas músicas da época das associações recreativas) era uma
presença assídua e comandava o público, ao ponto de terem uma grande claque
no campo de jogos do Bota-fogo que, ainda segundo Chico Machado, “era um
braço do Grupo dos Sambas”.
Em 1940/41, beneficiando do convívio e informações dadas por Manuel dos
Passos e Domingos Van-Dúnem e, como diz Chico Machado, com as influências
melódicas ouvidas em casa pela mãe e sua irmã, a famosa tia Guinhas, Liceu
pôde recompor as peças Muxima e Mbiri Mbiri.
Tudo isto leva Chico Machado a dizer que foi o Liceu que consertou estas
músicas, todas elas monocórdicas e monótonas, derivadas de várias estórias
às quais era preciso justamente dar uma outra dimensão, outra vida, pensando
já em as comercializar.
As músicas precisavam de ter três minutos. Normalmente era um verso pequeno,
sempre repetitivo. Era preciso consertá-lo, juntado-lhe várias estórias e
várias músicas. Se o Liceu não tivesse intervido, é possível que essas
músicas viessem a ser conhecidas. Mas uma coisa é certa, naquela altura foi
ele que o fez, ninguém lhe pode tirar esse mérito.
Anos mais tarde Liceu, domingos Van- Dúnem, Nino Ndongo, Aníbal de Melo e
Manuel dos Passos começaram a cantarolar “umas coisas” do tempo do Grupo dos
Sambas.
A certa altura Liceu, condicionado pela época, vira-se para os seus colegas
e diz: “…bom, aqui o problema é que nós não podemos entrar, nesta fase, em
músicas assim abertas, como nós fazíamos no tempo do Grupo dos Sambas, com
mensagens em português. Temos que aproveitar as nossas músicas. A nossa
música tradicional (naquele tempo cantávamos música brasileira). Temos que
aproveitar os nossos motivos culturais e portanto vamos passar `a nossa
música tradicional. Fomos pegar no conteúdo, que era vazio, não queria dizer
absolutamente nada, problemas locais de caráter social, política social não
sei o quê, e fomos injectar mensagens para acordar a malta e entender que é
a hora de começarmos a pensar. E então peguei nas letras, transformei-as e
nas músicas, que eram retalhos, fiz umas rapsódias e saíamos à rua. (…)
Algumas dessas “musiquinhas” já teriam sido cantadas nas associações
recreativas, extintas em 1945, e nos carnavais. O ritmo, por se encontrar
instalado no corpo, foi se manifestando, passou de pais para filhos e
acompanhou várias manifestações do dia-a-dia.
A certa altura, algumas canções começaram a ser repetidas no asfalto, fora
do quadro carnavalesco. A viola começou a ser utilizada para acompanhar
esses cânticos, nos encontros ao sábado, em torno dos nossos “pratos”, onde
a “mwamba wa sanji”, “mwamba wa mbiji”, “funji ya xitu” ou “funji ya mbiji”,
eram delícias feitas por uma “mais velha” experiente nestas coisas da
culinária. Os encontros acabavam de madrugada com um “muzongê”( caldo de
peixe com óleo de palma), insubstituível para a ressaca.
Estes homens e outros, mal ou bem, encontram-se inseridos no processo de
integração da viola no meio. As peças musicais harmonizadas por Liceu e Nini
Ndongo já se encontravam em escalas temperadas bem definidas (maior ou sua
menor relativ), certamente de influência européia/portuguesa.
Liceu, embalado nas suas pesquisas rítmicas, já tinha transcrito o ritmo
Kasukuta para o violão, utilizando dois acordes (Im/V7/II#) da escala menor
relativa.
Por esta época a transcrição de alguns ritmos do campo para a cidade,
tocados ao violão, já tinham a forma hoje conhecida.
Fruto de vários encontros com Domingos Van- Dúnem e Manuel dos Passos, do
ponto de vista da análise dos temas literários/textos, e com Liceu e Nino
Ndongo, para a cobertura harmónica de feição mista, iria nescer um grupo
músico-cultural-político. Num encontro entre Mário de Araújo, Liceu e Chico
Machado discutiu-se o nome para o grupo e Chico Machado diz-nos que “foi o
Mário que deu a última idéia, dizendo: não, vamos pôr em termos latinos
rimos no fim, NGOLA RITMOS”. Segundo Domingos Van-Dúnem o grupo nasceu em
1947.
Estes moços, alguns deles sem darem conta, criaram o que iria servir de base
cultural para as gerações posteriores, como a nossa, que começa a reflectir
sobre os seus Mais Velhos, como qualquer coisa que se vai desvanecendo à
medida que desaparecem os possíveis informadores dessa época, que deve ser
maravilhosa. Jovens à procura de si próprios, ao ponto de terem lançado o
grito VAMOS DESCOBRIR ANGOLA, cujo eco ainda soa nos ouvidos de quem aqui
nasceu e se agarra à sua terra, dependendo dela como uma árvore depende da
sua raiz para continuar a crescer.
IV. A MÚSICA SUBURBANA LUANDENSE DAS SUAS ORIGENS AOS FINS DOS ANOS 50
A
música suburbana luandense é fruto do encontro longínquo entre europeus e
africanos que foram obrigados a aproximar-se da cidade, tornando-se numa
reserva de mão de obra barata. Esta relação de trabalho deu origem, anos
mais tarde, a um novo tipo de habitação em redor da cidade européia e ao
aparecimento do assimilado que aprende, por força das circunstâncias, a
língua portuguesa, em detrimento de sua língua materna.
As músicas vindas da cintura suburbana, no conteúdo das suas letras, fazem
referência às injustiças sociais entre as duas raças.
O negro, ao instalar-se em redor de Luanda, na dependência do trabalho,
fornecido ao branco, cria associações recreativas, onde se encontram os
primeiros nomes daqueles serviram de elo de ligação entre a cultura do campo
e a que viria a dar origem à nova música luandense.
Eram cantares feitos, provavelmente, de sentimentos relacionados com a
nostalgia do passado. Gente de 15 a 30 anos que veio para Luanda sem
família. A toada da melodia terá sido melancólica, com lembranças da vida do
campo de onde vieram, levados pela necessidade de ter que trabalhar para o
europeu/estrangeiro.
Esta nova gente recém chegada deve ter polarizado uma parte da população de
Luanda com as escalas musicais vindas do campo.
As composições que terão sido criadas nestas novas condições de vida,
estabelecem um corte com a música tradicional, na sua temática, embora a
linha melódica tenha guardado alguns elos de ligação, não muito evidentes.
Mas se um “mais velho”, nos seus cantares, tem uma ligação melódica com a
tradição/passado, o presente germina nele novos valores que acabam por se
exteriorizar, com mais evidência, nos seus filhos ou netos.
Esta geração, que será eternamente anónima, criou ao longo dos anos as bases
de uma nova cultura musical. Não há documentos que possam certificar esta
afirmação. Só a nossa imaginação nos pode levar a interpretar as coisas
desta forma.
São vários os grupos étnicos que se vêm juntar numa região como Luanda,
arrastados pela escravatura e trazendo consigo a sua cultura
secular/milenar. Todos eles são da mesma família Bantu.
Entram em contacto /choque com uma outra cultura, a européia, onde as
relações entre branco/negro eram de exploração e expropriação.
Não há uma data exacta que possa marcar o início da música suburbana
luandense. É nos fins do século XVIII, princípios do XIX, que começam a
surgir os primeiros factores sociais que vêm dar origem a novos
protagonistas no campo musical.
Com a geração dos anos 40 vão-se criando, naturalmente, condições que dão
origem, em 47, ao aparecimento do famoso Ngola Ritmos que, ao princípio teve
dificuldades em ser aceito pelo público europeu quando cantava em kimbundu.
Convidado para animar um baile, o público depois de tanto ouvir cantar em
kimbundu, dizia:
– “!. Vão lá tocar pró “museke. “
“Liceu” magoado com este tipo de reacções, reflete e num outro baile decide
cantar músicas portuguesas. Quando o “zé povinho” já se encontrava no salão
em dança animada com as músicas da “santa terrinha”, o nosso “Liceu”, já
combinado com os outros elementos do Ngola Ritmos, ia metendo aos poucos os
ritmos da terra em kimbundu. Os dançarinos, de fato e gravata, continuavam a
marcar o passo na dança, um pouco surpreendidos. Afinal não é nada mau! E lá
foram aos poucos aceitando as músicas em kimbundu.
A geração de 40 foi o reflexo da rejeição do poder colonial a todas as
manifestações culturais indígenas. Esta geração soube estabelecer um elo de
ligação entre o campo e a cidade, sem menosprezar a cultura dos seus
antepassados, de forma que aqueles que estavam debaixo do domínio da cultura
portuguesa se sentissem tocados e se tornassem sensíveis a este movimento
cultural que se caracterizou, no decorrer do tempo, pela transformação e
adaptação à nova época.
A geração dos anos 40 apareceu com um lote de canções, a maior parte de
origem popular, que refletiam alegrias e tristezas de um povo subjugado ao
colonialismo e que corriam na boca do povo.
O Ngola Ritmos faz delas o seu repertório favorito, introduzindo novos
acordes e uma mescla de ritmos, criando uma música aculturada, no bom
sentido do termo, onde o ritmo, a melodia, harmonia e poesia iriam delinear,
de uma forma mais nítida a diferença entre a música suburbana e urbana.
Em 1950 Domingos Van- Dúnem aparece à cabeça do Gexto, com Gabriel Leitão,
Higino Aires e Antonino Van-Dúnem ( 1914/1995).
Por essa época já se falava de Garda e o seu conjunto, e o Duya com Bento,
Maneco e Chinito formam os Demónios do Ritmo.
Em 1951 funda-se o Botafogo. Começou com actividades desportivas e
recreativas e durou apenas 3 anos.
Em 1953 Guilherme Assis cria o grupo Cama (Conjunto Artístico de Melodias
Angolanas). Nesse mesmo ano o Botafogo, por motivos alheios à sua vontade,
paralisa as suas actividades, que só reinicia em 1956, albergando então
muitos dos revolucionários angolanos. Importa realçar a figura de Quim Jorge
que, segundo Roldão Ferreira, muito contribuiu para a valorização crescente
da nossa cultura.
Sebastião Coelho fala-nos da primeira entrevista, em Benguela, do Ngola
Ritmos, realizada em 1952 e do aparecimento da cantora Ana Maria
Mascarenhas, que se veio a revelar uma excelente compositora. Algumas das
suas músicas foram gravadas em disco, anos mais tarde, pela sua irmã
Conchinha de Mascaranhas.
Jaime de Sousa Araújo diz-nos “que neste ano o Ngola Ritmos, já dava brado
com o Timpanas na cidade de Luanda”.
Por esta altura, por intermédio de Ngola Ritmos, muitas músicas populares já
se tinham tornado famosas e poucos eram aqueles que conheciam as estórias
ligadas à sua origem e à forma original.
Neste mesmo ano Zeka Saraiva, que na altura trabalhava na Rádio Club, diz
ter gravado um espetáculo do Ngola Ritmos na Liga Nacional Africana e no
Bairro Operário, no quintal do falecido Xodó, para um programa de Domingos
Van- Dúnem, “Domingo Sereno”, em kimbundu, patrocinado pela fábrica de
cervejas Nocal.
Em 1957 José Oliveira de Fontes Pereira cria a Escola Semba e surgem-nos,
também, os Kisweya (tirano, fera) com Barceló de Carvalho (Bonga) como um
grande tocador de harmónica, Carlos David André, Tizinho, João, Nando
Kajibota, Lamartine e várias bailarinas.
Em 1958 forma-se o conjunto Ngola Dimuka, dirigido por Beto Guise e no final
desse ano, princípios de 59, surgem os Negoleiros do Ritmo. Na primeira
formação apareceram Almerindo Cruz, Joãozinho Morgado, Carlos Geoveti e
Dionísio Rocha.
Em 1959 formam-se os grupos Mulogais do Ritmo, Quimbandas, Mwenyu wa Ngana,
Gingas e Ilundo. O Duo Ouro Negro apresenta-se no Restauração e “Kurikutéia”
passa a ser a música de abertura dos seus espetáculos. Nesse ano José
Oliveira de Fontes Pereira, com a Escola de Semba desfila no carnaval com a
música “Sanji Yami” e o Duo Ouro Negro dá o primeiro espetáculo em Lisboa.
No principio dos anos 60 já gozava de uma certa fama o grupo de bailado
teatral Kisanji do Ritmo, apoiado pela Associação dos Naturais de Angola,
ANANGOLA. Kyavulanga, diz-nos que “Muxima wa tete, Xikela e Kaminina, foram
músicas que pertenceram ao repertório do grupo, abusivamente utilizadas e
reproduzidas por outros grupos, mesmo em disco” e fala-nos também dos
Jograis de Angola, constituídos por Eleutério Sanches, Moisés Menezes, Couto
Cabral e Guerra e Silva. Forma ainda criadas, nessa época, outras
associações culturais, tais como o Clube de Teatro de Angola e o Clube dos
Amigos do Teatro.
Roldão Ferreira diz que “por esta altura forma-se o grupo de bailado teatral
Fogo Negro, que fez sair o teatro à rua em dias de carnaval e a Garda já
tocava piano e viola. O largo da Maianga e a zona dos Armazéns do Lima, eram
áreas onde se assinalava esta movimentação cultural”.
Em 1961 dá-se o “4 de Fevereiro” e um dia depois S. José Lopes, director da
PIDE, manda encerrar as portas do grupo Botafogo. A 4 de Outubro desse ano,
Oliveira Fontes Preira, que foi um elemento importante no grupo de Bailado
Teatral Fogo Negro, consegue criar o Grupo de Teatro Ngongo. A primeira
chamava-se Alambamento, escrita pelo próprio fontes e não chegou a ser
apresentada ao público porque, segundo Roldão Ferreira, Fontes Pereira foi
supenso do Ngongo no mesmo ano da sua formação e substituído por Quim Jorge,
do Departamento Técnico, que se revelou um excelente compositor. Outra
figura importante do Ngongo foi o exímio tocador de violão Catarino Barber
(1937/1985).
Um outro nome que embalou a geração de nossos pais foi Eleutério Sanches,
poeta, músico, pintor, um caso concreto da música mestiça em Luanda e autor
de melodias inesquecíveis. A célebre música conhecida por “Luanda”, que o
Duo Ouro Negro veio a gravar anos mais tarde, é uma composição que prima
pela sua simplicidade.
Por esta altura já se falava da voz de Lilly Tchiumba (1937/1989), que
Ferrando Silva considera “artista-combatente, talvez pioneira na luta pelos
direitos da mulher artista”. Surgiram, também, as belas composições de Rui
Mingas Ixi Yami e Mwimbu wa Sabalu, esta com poema de Mário de Andrade.
A década dos anos 60 é apaixonante. Nela vamos encontrar os efeitos, nos
nossos músicos, do regresso dos elementos intrínsecos da cultura angolana,
que viajaram para vários pontos do mundo. Qualquer coisa que se faça em
Angola, não poderá deixar de ter semelhanças com o que já foi feito noutras
partes do mundo. Será difícil poder ligar a Angola de amanhã uma música que
seria facilmente identificada como angolana, como nós hoje podemos ligar o
Tango, o Kachimbu e a Milonga à Argentina, o Samba e a Bossa Nova ao Brasil,
a Rumba e o Bolero à Cuba, o Merengue à Republica Dominicana, o Beguine a
Guadalupe, a Bamba e a Plena à Porto Rico, a Cumbia e o Curulao à Colômbia,
o Mento e o Reguê à Jamaica, o Blues e o Jazz aos Estados Unidos.
Não obstante, qualquer angolano que se preze, não pode deixar de reagir à
melodias eternizadas pelo Ngola Ritmos, à voz de Lourdes Van- Dúnem, de
Euclides Fontinhas, da falecida Belita Palma, a um solo de viola do Zé Kenu,
a uma marcação rítmica do Joãozinho da Ngoma, juntamente com a viola de
Carlitos, no ritmo da Semba, como só ele sabe marcar, ou a uma melodia do
Elias dya Kimwezu, para não falarmos do falecido Artur Nunes, na altura já
adorado pelos mais velhos.
Quando ouvimos as poucas gravações antigas da época, nas vozes de alguns já
falecidos, não conseguimos evitar lágrimas e lembranças de um tempo passado,
e damos conta dum trabalho que não teve continuidade devida, por certos
erros cometidos que ninguém quer hoje assumir.
Pois é, “a culpa é da conjuntura”.
Saiba mais aqui…