Contos de Antonio Carlos Viana dão aos párias sociais uma identidade incomum na literatura contemporânea
Um livro de contos pode ser simultaneamente excessivo em número de textos e adequado em acerto narrativo; é o caso de Aberto Está o Inferno (Cia. das Letras, 160 págs.), de Antonio Carlos Viana. Autor já experimentado, com tema e estilo discerníveis, Viana talvez tenha pecado por evitar o doloroso processo de expulsar do cenário os contos apenas bons, de um conjunto em que se destacavam vários excelentes. Num volume mais magro e em companhia apenas uns dos outros, estes renderiam um livro certamente memorável.
Excluindo tal aspecto, no entanto, estamos diante de um ótimo livro. Focado principalmente no mundo dos de baixo, dos perdedores da vida, interioranos ou favelados, aqueles que muitas vezes só aparecem aos olhos do leitor brasileiro no noticiário policial, e escrito num patamar confortável da língua portuguesa de nossos dias — nem alheio ao problema das diferenças de registro social da linguagem, nem submetido a um naturalismo lingüístico de tipo mimético —, Aberto Está o Inferno acerta quase sempre ao desenhar realidades ficcionais consistentes, com personagens fortes, alguns dos quais com permanência na retina do leitor para muito além do tempo da leitura.
Isso quer dizer que estamos bastante afastados do estilo pós-moderno que desde os anos 60 vem se comprazendo na rarefação dos dados realistas, no apagamento das personagens e na crescente sofisticação do relato dos tormentos mentais de uma primeira pessoa invariavelmente intelectualizada e sofrida, que ocupa o centro da cena e dela não se arreda nem para descansar. Viana freqüenta outra praia, ao mesmo tempo mais antiga, na linha de tantos escritores de matriz realista documental, e mais contemporânea, em companhia de toda uma leva de escritores que nos últimos anos retomou a vida dos miseráveis como tema da literatura e da arte.
O autor não tem afinidade com o traço brutalista dessa ficção recente. Pelo contrário: a começar pela linguagem, e seguindo na abordagem, os contos de Aberto Está o Inferno se caracterizam por aquilo que numa época se chamava, com boa razão, de “humanismo” — a experiência humana em situações limite, com particular interesse na sensibilidade do indivíduo, independentemente de sua classe ou destino. São vários os miseráveis em centro de cenas (de crianças abusadas sexualmente a velhos solitários), mas também várias são as criaturas de classe média baixa (de adolescentes sonhadores de cidade pequena a velhinhas viciadas em filmes pornô). Em todos os casos se pode observar esse empenho em mostrar o lado irrenunciavelmente humano daquela vida, a revelar um igual a nós bem ali onde o leitor poderia esperar apenas um estranho.
E mesmo em cenas vizinhas do clichê — como a do último conto do livro, sobre um coronel interiorano que vai à zona para usufruir dos serviços das meninas recém-incorporadas —, Viana se sai bem, em geral, conseguindo alguma inventividade bem na hora em que estava escorregando para o trivial. Talvez um leitor mais exigente se aborreça com certo ressentimento contra a Igreja Católica, presente até na imagem do título; mas mesmo ele vai vibrar com a força de vida do conjunto, nos vários contos ocupados com sexo e morte, elementos comuns na vida e nem sempre acolhidos na ficção. Se duvidar, que leia apenas os dois primeiros contos — um, o poderoso encontro entre um menino e uma pobre prostituta; outro, a desesperadora percepção de um menino que vê seu pai enlouquecer ao perder seu lugar no mundo.
Por Luís Augusto Fischer