A cultura moderna nasceu na África há 44 mil anos?

A nossa visão das origens da modernidade intelectual e tecnológica humana tem ultimamente sido abalada por várias descobertas. Primeiro, foi a confirmação de que algumas das pinturas feitas pelo Homo sapiens na Gruta Chauvet, em França, tinham 30 mil anos – isto é, eram muito mais antigas do que toda a arte pré-histórica conhecida. Depois – e ainda mais inesperada – veio a notícia de que pinturas encontradas em várias grutas de Espanha, algumas delas com 40 mil anos, terão sido feitas por neandertais. Enquanto a primeira descoberta fazia recuar em 10 a 15 mil anos a emergência da modernidade cultural da nossa espécie, a segunda retirava-nos pioneirismo em matéria cultural.

Agora, uma série de novos resultados, revelados hoje em dois artigos na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, poderão mesmo pôr em causa o facto de a modernidade humana ter nascido exclusivamente na Europa. Uma equipa internacional de cientistas descobriu que, há 44 mil anos, um dos povos da África do Sul, os San – que ainda hoje lá vivem, sendo também conhecidos como bosquímanos (termo que no entanto é considerado pejorativo) -, já dava todos os sinais culturais e tecnológicos de modernidade.

 

Até aqui, o consenso era que, em África, as sociedades modernas de caçadores-recoletores só teriam surgido há 10 mil a 20 mil anos. Mas Francesco d”Errico, da Universidade de Bordéus, França, e colegas tornaram a datar os objetos encontrados numa gruta habitada pela cultura San – a gruta de Border, nos montes Libombos, na fronteira entre a África do Sul e a Suazilândia – e fizeram recuar a idade desses objetos em pelo menos… 24 mil anos. “A datação e a análise do material arqueológico descoberto na gruta de Border permitiu-nos demonstrar que muitos elementos da cultura material que caracterizam o estilo de vida dos caçadores-recoletores San faziam parte da cultura e da tecnologia dos habitantes do local há 44 mil anos”, diz em comunicado Lucinda Backwell, coautora, da universidade sul-africana de Witwatersrand.

 

Isto significa que a emergência da modernidade em África (que se verificou no período designado por “Idade da Pedra Tardia”) terá coincidido com o Paleolítico Superior na Europa, altura em que o Homo sapiens chegou ao continente europeu. “O nosso trabalho prova que, na África do Sul, a Idade da Pedra Tardia começou muito mais cedo do que imaginávamos e ocorreu mais ou menos em simultâneo com a chegada dos humanos modernos à Europa”, diz Paola Villa, outra coautora, da Universidade do Colorado, EUA.

 

As novas datações, salientam os cientistas, mostram para além da dúvida que, há uns 44 mil anos, as pessoas que viviam na gruta utilizavam tecnologias tradicionalmente conhecidas como sendo da cultura San. “Enfeitavam-se com cascas de ovos de avestruz e conchas de animais marinhos, gravavam anotações nos ossos”, diz Lucinda Backwell. “Fabricavam finas pontas com osso, que utilizavam como furadores ou para fazer setas. Uma dessas pontas tem uma espiral gravada que está cheia de ocre vermelho, muito semelhante às marcas que os San fazem para identificar as setas quando caçam.”

 

Num pau de madeira decorado, os cientistas descobriram aliás resíduos de ricina, um potente veneno – e o mais antigo indício da utilização de veneno até agora descoberto. E também uma bola de cera de abelha, misturada com resina de eufórbia (uma planta tóxica) e talvez com ovo, embrulhada em fibras vegetais. “Este composto complexo, utilizado para fixar as pontas das setas ou as ferramentas a uma haste, foi diretamente datado e tem 44 mil anos”, diz ainda Lucinda Backwell. “É o vestígio mais antigo de sempre da utilização de cera de abelha.”

 

Os autores pensam que terá sido o povo San a desenvolver e espalhar a cultura humana moderna pelo mundo. Mas, ao mesmo tempo, como frisa Paola Villa, “as diferenças tecnológicas e culturais entre a África do Sul e a Europa mostram que os povos dessas duas áreas escolheram caminhos radicalmente diferentes de evolução técnica e social”. E concluem que, de facto, ainda não existem dados suficientes para determinar as trajetórias, eventualmente múltiplas, da expansão mundial da modernidade humana.

 

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