A Carteira de Trabalho completa 73anos e a CLT 62 . Serviu de instrumento para derrotar o sindicalismo combativo do começo do século passado. Hoje, temos que defender a velhinha. Mas, antes temos que tirar sua parte podre. A parte da estrutura sindical.
Em 1º de Maio de 1943, o ditador Getúlio Vargas anunciava a criação da Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT. Poucas siglas são tão conhecidas. Mas poucos temas causam tanta polêmica e confusão.
Comunistas e anarquistas contra a carteira de trabalho e férias
Antes de a CLT existir, sindicalistas anarquistas e comunistas lutavam contra a carteira de trabalho e a lei de férias, por exemplo. Depois que ela começou a vigorar, para muitos se tornou sinônimo de legislação social avançada. Para outros, principalmente os patrões, a CLT dificultava contratações. E para complicar ainda mais, no início dos anos 80, o então metalúrgico Lula dizia em alto e bom som: “A CLT é o AI-5 dos trabalhadores”.
Confuso, não é? Vamos com calma. Para entender melhor como e porque a CLT apareceu nada melhor do que um livrinho de Kazumi Munakata. Livrinho só no tamanho. Trata-se de A legislação trabalhista no Brasil (Brasiliense, 1984), obra didática e precisa. Infelizmente não tenho notícias de edições recentes.
Vamos aos fatos. Como já dissemos, a CLT começou a valer em 1943. Ou seja, 13 anos depois da subida ao poder de Getúlio Vargas. Ora, Vargas sempre foi tido pelo senso comum como o pai das leis trabalhistas. Grande benfeitor que parou de tratar a questão social como caso de polícia. Essa mitologia sobre Vargas só não explica porque o “pai dos pobres” levou 13 anos para fazer valer sua generosidade. Arrisquemos nós uma explicação, com ajuda de A legislação trabalhista no Brasil.
Antes de chegar ao poder, Getúlio já havia prometido em sua campanha à presidência o estabelecimento de leis trabalhistas. Não porque fosse avançado ou paternalista. Acontece que, na época, anarquistas e comunistas controlavam cada vez mais sindicatos e os colocavam na linha de combate por melhores condições de vida. E a revolução russa, ainda jovem¸ fornecia o exemplo necessário para que o movimento sindical também lutasse por uma outra sociedade.
Getúlio: entregar alguns anéis para manter a mão firme no chicote
Nesse contexto, tratar a questão social com as “patas de cavalo” da República Velha só iria apressar uma solução do tipo soviética para o país. Seria preciso ceder alguns poucos anéis para manter a mão firme no manejo do chicote. Seus colegas de classe social não entenderam o raciocínio e veio o golpe de Estado que ganhou o nome de Revolução de 30. Uma revolução feita contra uma parte da classe dominante para melhor assegurar a seu conjunto a permanência no poder.
Vargas criou o ministério do Trabalho em novembro de 1930. Um mês após sua chegada ao poder. Tanta pressa explica-se pela necessidade de controlar o movimento sindical. E para isso a nova legislação passou a tratar os sindicatos como se fossem parte do aparelho do Estado. Como se fossem repartições públicas. Somente funcionariam aqueles autorizados pelo ministério recém criado. Somente aqueles que se enquadrassem nos termos do Decreto 19.770 de março de 1931.
Os antigos sindicatos independentes denunciaram imediatamente a manobra do governo. Iniciaram campanhas contra os sindicatos controlados pelo governo dos patrões. Aí é que entram as leis trabalhistas.
Em 1931, a concessão de férias é suspensa até sua nova regulamentação por uma comissão mista. Em 1934, as férias anuais voltam a ser concedidas. Mas apenas para os empregados que forem associados de sindicatos reconhecidos pelo ministério do Trabalho. Entenderam? Leis trabalhistas, direitos, benefícios, só para quem curvar a espinha ao governo. Chantagem pura e simples.
Trabalhadores rurais deslumbrados com um salário fixo
O problema é que a Revolução de 1930 trouxe um novo padrão de acumulação capitalista para o país. A depressão de 1929 derrubou a economia dos Estados Unidos e os preparativos para a 2a Guerra Mundial paralisaram a Europa. O caminho para a industrialização nacional virou uma necessidade, não apenas uma questão de escolha. Com isso, a procura por força de trabalho aumentou e atraiu centenas de milhares de trabalhadores do campo. Gente acostumada às piores condições de vida e de trabalho. Gente que devia achar o pagamento de um salário fixo um grande avanço em relação a sua situação de semi-escravidão na lavoura.
São essas pessoas que se depararam com duas alternativas. De um lado, juntar-se ao movimento sindical independente e resistir às tentativas de controle por parte dos patrões e do governo. De outro, associar-se a sindicatos atrelados e poder desfrutar de benefícios já existentes como as férias, ou direitos que estariam ainda por vir, segundo a promessa das autoridades. A tendência a aceitar a chantagem fica cada vez maior, à medida que chegam mais e mais trabalhadores do campo, deslumbrados com a possibilidade trabalhar com alguma dignidade.
Mas, a situação não ficou só na chantagem. Em 1935, a Aliança Nacional Libertadora, organização com forte influência dos comunistas, tentou tomar o poder e fracassou. O governo aproveitou para abrir a caixa de ferramentas. Iniciou violenta repressão contra as lideranças sindicais e populares. Em 1937, completou o serviço dando o golpe do Estado Novo. Todos os partidos foram fechados. Milhares de sindicalistas e militantes comunistas foram jogados na cadeia para serem torturados e mortos. O movimento sindical foi definitivamente massacrado. Ficaram somente os sindicatos oficiais.
Não foi à toa que o famoso salário mínimo foi regulamentado somente em 1938. Agora, com os sindicatos oficiais dominando o cenário, um salário mínimo já poderia começar a ser pago. Não como uma conquista da luta dos trabalhadores, mas como presente do “pai dos pobres”. Na verdade, um carrasco da liberdade sindical.
CLT coroou um processo de que colocou o movimento sindical de joelhos
Assim, a CLT não é de jeito nenhum uma conquista dos trabalhadores. Nem uma concessão de Vargas. Ela coroou um processo de que colocou o movimento sindical de joelhos. Além disso, jamais foi aplicada em sua totalidade. Os trabalhadores rurais, por exemplo, somente tiveram seus direitos reconhecidos após a Constituição de 1988. Ainda assim, mais no papel, que na prática. Mas quando se tratava de combater a liberdade sindical, a CLT cumpriu seu papel. Afinal, sempre que foi preciso, os governos e os patrões encontraram na CLT os instrumentos necessários para fechar ou calar os sindicatos.
Mas como é que ficamos nós e a CLT no atual cenário? Quando Lula comparou a CLT ao AI-5 não estava se referindo aos direitos trabalhistas. Estava denunciando o atrelamento dos sindicatos ao Estado que a CLT prevê em seus 100 artigos sobre a estrutura sindical. Por outro lado, nem Lula, nem nós, tínhamos idéia dos ataques que viriam nos anos seguintes. Não imaginávamos que o neoliberalismo faria o estrago que fez. Primeiro, com Fernando Collor, depois com Fernando Henrique. Desemprego em massa, desregulamentação, abertura para o capital estrangeiro acabar com as indústrias nacionais, desmanche das estatais e dos serviços públicos. Tudo contribuindo para colocar o movimento sindical na defensiva.
Um dos elementos centrais dessa ofensiva é a desregulamentação das leis trabalhistas. E lei trabalhista no Brasil quer dizer CLT. E agora? Para onde vamos? Defendemos a CLT ou colocamos abaixo o “AI-5 dos trabalhadores”?
No mito do Getúlio “pai dos pobres”, a cartilha era a CLT
Para tentar ajudar nas respostas que cobrei acima, vou tentar dar uns palpites. Dessa vez, sem o valioso auxilio do livro de Munakata. Quando Getúlio Vargas lançou a CLT, o fez com tudo muito calculado. Derrotou o movimento sindical, de um lado, e se garantiu para o futuro, de outro. Em 1945, logo depois do 1º de Maio de 1943, Vargas foi derrubado. Muitos de seus colegas de classe social nunca engoliram sua subida ao poder através de um golpe. Aproveitaram o clima de condenação ao nazi-fascismo e da queda dos ditadores europeus para derrubar o ditador brasileiro. Mas não faltou quem dissesse que Vargas caiu porque protegia os pobres. Esse mito foi ganhando força com a crise do pós-guerra. O povo começou a ver a solução para a crise na volta de Getúlio ao poder. Afinal, era ele o “pai dos pobres”. E sua cartilha era a CLT. Era ela que os varguistas apontavam com a grande herança do benfeitor gaúcho. Em 1950, Vargas voltou ao poder. Mas dessa vez como presidente eleito. Não mais como ditador todo poderoso. Por isso, ficou mais sujeito ao jogo político de interesses. Principalmente, na briga entre os setores da classe dominante que queriam um desenvolvimento mais nacional e os que achavam que a vocação do país era agrícola. Que a industrialização tinha que ficar por conta do capital estrangeiro. Nessa briga de interesses, Vargas se perdeu no fogo cruzado e cometeu o suicídio em 54. Algo que firmou de vez a imagem do antigo ditador e caudilho como “pai dos pobres”.
Enquanto isso, a classe trabalhadora continuava com sua luta. Em 1953, por exemplo, São Paulo fez a Greve Geral dos 300 mil. No período, aconteceram centenas de greves. Essa classe trabalhadora podia até acreditar nos pontos positivos da CLT, mas não ia ficar esperando as leis serem cumpridas. Foi à luta por um salário mínimo decente, melhores condições de trabalho, aumento salarial. E começou a ver nesses direitos algo que deveria ser mantido, independente da existência de qualquer cartilha apelidada de CLT. A CLT impedia, por exemplo, a formação de uma central sindical. Pois da greve de 1953 saiu o Pacto de Unidade e Ação (PUA). Uma espécie de embrião de uma central sindical. Foi nessa greve também que os trabalhadores aprenderam que é preciso se organizar nos locais do trabalho. Não apenas ficar esperando o sindicato atuar a partir de fora. Outro aspecto não previsto pela CLT. Depois disso, veio o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Outra tentativa de organizar os sindicatos por fora do que mandava a CLT. Ou seja, tal como os sindicalistas dos anos 30, os sindicalistas do pós Guerra também fizeram greves e manifestações contra a CLT. Não contra seus direitos, mas contra a estrutura sindical que ela impunha.
Infelizmente, todo esse esforço de organização recebeu um golpe terrível em 1964. Os militares tomaram o poder e repetiram Getúlio Vargas em 1937. Prenderam, torturaram e mataram milhares de lutadores dos sindicatos e partidos de esquerda.
Tudo o que a ditadura precisava estava no capítulo sobre estrutura sindical da CLT
E a CLT? Continuou firme e forte. Não tinha porque mudar nada. Tudo o que a ditadura precisava estava lá na parte sobre estrutura sindical. E os direitos da CLT? Só eram aplicados na base da greve. Do aperto dos trabalhadores. Ora, nesse contexto, a CLT somente poderia ser considerada “o AI-5 dos trabalhadores”. Para reprimir os sindicatos, ela valia. Para fazer valer os direitos básicos dos trabalhadores, era só enfeite.
O problema é que esse contexto mudou. Após o fim da ditadura, a burguesia deu umas tropeçadas. Quase deixou um operário de esquerda ganhar as primeiras eleições diretas desde os anos 1960. No desespero de derrotar Lula, acabou elegendo um aventureiro que foi corrido do poder devido a suas pilantragens. A multidão que derrubou Collor pensou que a hora do povo havia chegado. Mas o que chegou foram as instruções de Washington. O chamado Consenso de Washington. Na verdade, uma receita. A receita do Plano Real era a mesma utilizada no México, Argentina, Peru. Mas parecia coisa nossa. Parecia coisa do intelectual Fernando Henrique. E a eleição do sociólogo vendido ficou garantida. O neoliberalismo começava a funcionar a todo vapor em terras brasileiras.
Junto com o fim da inflação veio o fim dos empregos, a falência de empresas brasileiras, a entrega das estatais. O resultado foi mais miséria, salários baixos, violência, serviços públicos piores e mais caros. Mas também foi a desorganização do movimento sindical. Com o.desemprego em alta, ficou mais difícil fazer greve. Com a terceirização da força de trabalho, ficou mais difícil organizar a classe de forma unitária. Num único local de trabalho há assalariados de diferentes empresas, remunerações, jornadas de trabalho, direitos. São várias pautas de reivindicações contra diferentes patrões. O crescimento das vagas no setor de serviços não compensou nem de longe o desemprego na área industrial. Mesmo assim as centenas de milhares de trabalhadores desse setor trabalham em funções mais difíceis de organizar a ação sindical. São lojas de departamentos, shoppings, lanchonetes, televendas, barracas de camelô. Lugares em que a competição e o isolamento entre os trabalhadores são estimulados.
Desregulamentação das leis trabalhistas. Lei trabalhista no Brasil quer dizer CLT
Agora, um dos principais aspectos da receita de Washington é a desregulamentação das leis trabalhistas. Como já disse, lei trabalhista no Brasil quer dizer CLT. “Então, vamos dar um fim na CLT”, gritavam o governo FHC e os patrões. Mas e a parte boa (para eles!) da CLT? A parte que fala sobre estrutura sindical. “Ora, diriam os patrões, depois que o neoliberalismo passou por aqui, não precisamos mais da CLT. Desemprego, terceirização, trabalho sem registro. Tudo isso deixou a CLT obsoleta. Aí, só ficou a parte ruim. O paternalismo, a demagogia, direitos demais, que atrapalham a criação de empregos. Bota fora!”
Pois aí está. A CLT virou sinônimo de lei trabalhista. As leis trabalhistas precisam ser defendidas pelos trabalhadores. Os sindicalistas independentes do começo do século estavam errados? Não! Estavam certos. Naquele momento da história, levando em consideração o conflito de classes, não havia como aceitar a chantagem que os patrões e o governo queriam fazer.
Hoje, não. Hoje não é possível aceitar que tirem aquilo que a CLT propõe com direito. A parte sindical, sim. Tem que ser rasgada.
Mas espera um pouquinho. A CLT nunca foi tudo isso que falam. Só alguns direitos ali escritos viraram realidade. Como é que agora vamos sair em defesa de um calhamaço de promessas não cumpridas? Acontece que os poucos direitos que valem hoje na CLT só valem porque a luta dos trabalhadores fizeram valer. Quer ver um exemplo? A carteira profissional foi criada em 1932. O documento foi rejeitado pelo movimento sindical independente, pois implicava o controle do mercado de trabalho pelo governo. Mas, hoje, não há como ser contra o registro na carteira. Ele se transformou numa conquista. O que funciona na CLT, funciona porque nós, trabalhadores, fizemos funcionar. E tem mais. Nossa luta tem que ser para que os direitos ainda não respeitados (e são muitos) passem a valer. Não o contrário.
Agora, é com o governo Lula. Já há uma proposta de enxugamento da CLT saída de dentro do gabinete do Ministério do Trabalho. O ministro do Trabalho, Jacques Wagner, andou dizendo que é a favor de acabar o 13o salário em pequenas empresas. Maus sinais. Temos é que pegar a velhinha de 60 anos e contar seu passado sujo. Mas, matar não. Tirar o tumor que é a legislação sindical e fazer valer os direitos da CLT.
Espero voltar ao tema da desregulamentação das leis trabalhistas em outro texto.
FONTE: REVOLUTAS