Como os grupos organizados transformaram a cidade do Rio de Janeiro em palco da maior festa popular do país
Os Tenentes do Diabo / Muito e muito contristaram /
Da Quitanda aos moradores / Que tanto os lisonjearam
Se coretos se fizeram / Só para obsequiá-los /
P’ra que no parar um pouco / Para assim lisonjeá-los
O Club X, que também / No se dignou parar /
Em frente desses coretos / F-los muito contrariar
Todas as sociedades / Do travesso carnaval /
s honras que se lhes fez / Responderam muito mal
Nem uma s cortesia / A coretos to faceiros!… /
Nem uma s deferncia / A quem despendeu dinheiros!… […]
Se se chama isso censura / censura com razo /
Pois sempre muito doeu / A cruel ingratido
por Felipe Ferreira Foliões na avenida Rio Branco em 1926, em fotografia de Augusto Malta
Estas singelas quadrinhas, publicadas no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, em 9 de fevereiro de 1869, tinham como objetivo reclamar da atitude pouco simpática tomada por alguns dos mais destacados grupos carnavalescos da cidade. Delas se depreende que sociedades importantes, como os Tenentes do Diabo ou o Club X, teriam dado pouca atenção a algumas ruas que haviam preparado grandes festas para “lisonjear” seus desfiles.
Mais do que uma simples curiosidade, esses versos apontam para algo importante que está na raiz da formação do carnaval carioca, e brasileiro, contemporâneo. Diferentemente de outras folias – como as de Roma no século XVIII, de Paris no início do século XIX e de Nice ou Nova Orleans em finais no mesmo século – a do Rio de Janeiro se organizaria sem nenhuma intervenção importante do poder público.
Ao observar o carnaval contemporâneo – com sua regulamentação em que a ordem, os locais e os horários de apresentação são rigorosamente estabelecidos, e obedecidos – não temos noção do curioso caminho seguido pela organização das festividades carnavalescas e do destacado papel exercido sobre ela pelas ruas do Rio de Janeiro. Muito além de simples palcos da folia, os espaços urbanos da cidade foram importantes atores de um processo no qual o poder público se manteve curiosamente afastado por quase um século.
Desde sua implantação, a partir de finais da década de 1830, o carnaval da capital do Império do Brasil se impôs graças ao esforço de seus próprios foliões. Houve uma espécie de organicidade, de empatia, que comprometia boa parte da população na implantação de sua festa carnavalesca. Essa participação ativa dos grupos de foliões e dos habitantes das principais ruas da cidade iria gerar uma festa que “pertencia” a eles. A reclamação em versos, portanto, não deve ser vista apenas como lamento ou admoestação, mas principalmente como um movimento consistente na dura disputa carnavalesca em que a cidade do Rio de Janeiro se envolveria a partir de meados do século XIX.
Pós e líquidos perfumados
O ano de 1855 marca, simbolicamente, a implantação definitiva no Brasil de uma forma nova de brincar durante o período de carnaval. É quando um grupo de amigos organizaram uma sociedade, o Congresso das Summidades Carnavalescas, para se divertir nos dias de folia e desfilar, pela primeira vez, na cidade do Rio de Janeiro. A idéia era passear pelas principais ruas do centro urbano, apresentando-se à população sobre carruagens decoradas, nas quais cidadãos da elite exibiam fantasias vindas diretamente de Paris. Entre as metas da iniciativa estava oferecer à Capital do Império uma nova festa carnavalesca, um divertimento moderno e elegante, em tudo diferente da brincadeira que acontecia até aquele momento, na cidade: o entrudo.
O costume de comemorar o período imediatamente anterior à Quaresma, denominado entrudo, já existia em terras brasileiras desde as primeiras décadas do século XVI.
Apresentada de diferentes formas, a depender da época ou do lugar, a brincadeira era inicialmente muito semelhante às balbúrdias medievais conhecidas como charivaris. Em nosso país esse costume encontraria um solo fértil, espalhando-se de norte a sul. Com o passar das décadas, os principais centros urbanos iriam desenvolver jeitos próprios de brincar nesse período do ano. Em finais do século XVIII, a principal característica do entrudo era o costume de as pessoas lançarem, umas nas outras, pós e líquidos, geralmente perfumados.
Sem se concentrar em um só local, a brincadeira acontecia dentro das casas, em sua versão familiar, ou nas ruas, na forma de Entrudo Popular. Durante três séculos, essa foi a manifestação característica do carnaval, no Brasil.
A partir da década de 1840, um novo tipo de folia começaria a aparecer. Após a Independência, a nova elite brasileira, concentrada então no Rio de Janeiro, se afastou da esfera cultural portuguesa aproximando-se da influência francesa. Modas e modos parisienses passavam a se impor na Corte brasileira influenciando o gosto e o comportamento dos habitantes do país. Entre outras ações, buscava-se implantar uma festa carnavalesca capaz de refletir o gosto da nova elite ascendente.
Bailes, como os da Ópera de Paris, e desfiles de carruagem “ao estilo italiano” tomavam conta da folia da capital da França e passavam a ser copiados pela burguesia brasileira. Já havia bailes carnavalescos no Rio de Janeiro, em Porto Alegre e em Recife. Na década seguinte, outras cidades, como Desterro (atual Florianópolis) e Salvador, aderiram à moda.
Importantes pontas-de-lança do carnaval que a burguesia brasileira desejava implantar por aqui, esses bailes eram eventos isolados, realizados dentro de salões ou teatros. As ruas das cidades ficavam, portanto, entregues ao grosseiro entrudo, que o novo carnaval procurava sufocar com sua sofisticação. Ocupar as ruas passou a ser um dos principais objetivos da elite, ao organizar grupos de foliões dispostos a desfilar a céu aberto. Não é de admirar, então, o grande sucesso do passeio realizado pelo Congresso das Summidades Carnavalescas em seu primeiro desfile.
Roteiro prévio
Em poucos anos, aumentou muito o número de grupos de amigos associados nas sociedades carnavalescas a desfilar pelo centro da cidade. Em 1864, uma dezena de sociedades já se apresentava pelas ruas da Capital, entre elas os Zuavos Carnavalescos, os Estudantes de Heidelberg, a Paulicéia Vagabunda, os Títeres do Diabo, o Club X, a Sociedade de Música Euterpe Commercial e a Sociedade Nova Chromática.
Sem contar com os muitos outros clubes de influência negra, como os Ticumbis, ligados aos batuques e às celebrações dos escravos. Havia, ainda, os conjuntos eminentemente populares, com seus bumbos característicos, que mais tarde seriam chamados de zé-pereiras. Inspirados nessa mescla de pioneiros surgiu, ao longo do tempo, toda uma gama de agrupamentos que tomavam as ruas do Rio de Janeiro com as mais variadas e inclassificáveis formas de brincadeiras carnavalescas.
Os impasses resultantes dos encontros desses conjuntos de foliões resultariam em negociações e disputas de poder, marcando um diálogo tenso, mas ao mesmo tempo bastante enriquecedor, entre as diferentes “folias” presentes na área do centro da cidade, que ia do Passeio Público ao convento de São Bento, e do Paço Imperial ao Campo dos Ciganos (atual praça Tiradentes). Esse quadrilátero razoavelmente reduzido representaria, por um longo tempo, o espaço essencialmente carnavalesco da cidade.
Em poucos anos, algumas ruas começaram a sobressair, atraindo para si o interesse dos grupos em desfile, sem que o poder público tomasse qualquer tipo de providência para organizar horários ou roteiros dos passeios. A ordenação da folia era deixada, desse modo, a cargo de seus próprios atores. Cada grupo, fosse ele uma grande sociedade ou um conjunto popular semi-estruturado, cuidava de seu desfile, estabelecendo os horários de início e fim, a duração do passeio e, principalmente, o roteiro a seguir.
Diferentemente do que se pode imaginar, esses roteiros não eram fruto de decisões aleatórias acontecidas no momento do desfile, mas sim de resoluções tomadas com muita antecedência. Os grupos mais organizados, geralmente as sociedades, publicavam nos jornais, semanas antes, a seqüência de ruas por onde passariam, domingo e terça-feira. A segunda-feira ficava reservada ao descanso dos sócios, pois os desfiles duravam muitas horas e terminavam com a participação em bailes que se iniciavam à meia-noite e terminavam ao romper da aurora.
Esforço de atração
Para uma rua da cidade, sua inclusão no roteiro dos grupos era uma verdadeira bênção. Além do óbvio orgulho dos moradores em ver seu logradouro valorizado, havia interesses mais diretos, como o dos comerciantes que lucravam com o afluxo de pessoas e o dos moradores que podiam alugar a bom preço as sacadas de sua casas de sobrado. A ausência de qualquer regulamentação oficial sobre as ruas por onde os grupos deviam passar incentivava os moradores dos diferentes quarteirões a criar formas de atraí-los.
Em 1855, ano do primeiro passeio do Congresso das Summidades Carnavalescas, o quarteirão da rua das Violas (atual Teófilo Otôni), situado entre as ruas da Candelária e da Quitanda, teve a honra de constar dos agradecimentos que a sociedade mandou publicar, após o carnaval, no Jornal do Commercio de 25 de fevereiro. O texto destacava a “recepção magnífica, triunfal, régia diremos, que prepararam às Summidades Carnavalescas”.
O investimento feito pela rua pioneira, e sua citação nos jornais, parecem ter chamado à atenção de outros logradouros pois, no ano seguinte, o Jornal do Commercio de 26 de janeiro informava que muitas recepções estavam sendo preparadas em diferentes pontos da cidade para saudar o desfile da “Carnavalesca”. Em 1858 o Jornal do Commercio de 15 de fevereiro destacava que algumas ruas, como a do Conde, dos Ciganos, das Violas, de São Pedro, do Ouvidor, Direita e a praça da Constituição “mostraram-se embandeiradas e graciosamente ornadas” para saudar as sociedades.
A simples decoração, porém, rapidamente deixa de ser suficiente para fazer com que um trecho de rua se destaque entre tantos outros interessados em trazer para seu espaço os passeios dos grupos carnavalescos. Outros elementos, como bandas musicais, coretos e iluminações, passam a fazer parte das atrações.
Aparentemente inconseqüente, o mútuo interesse – as ruas, que buscavam atrair os foliões para si, e as sociedades, cativadas pelas recepções cada vez mais festivas organizadas pelos quarteirões – começava a mudar a feição da festa carnavalesca no Rio de Janeiro. A diversão deixava, paulatinamente, de se apresentar como um evento que ocupava toda a cidade indistintamente para limitar-se cada vez mais a sua área central e a algumas ruas em especial. Essa concentração estabeleceria um forte contraste entre a antiga, e dispersa, brincadeira do entrudo e o novo e concentrado carnaval dos passeios. Um cidadão, em correspondência ao Jornal do Commercio de 7 de março de 1859, criticou a circunscrição da festa a “algumas ruas privilegiadas, deixando silencioso e triste o resto da cidade, outrora tão divertida pelo jogo sempre regretável de entrudo”.
Alheios a essa transformação, os grupos carnavalescos e os habitantes dos quarteirões do centro do Rio de Janeiro continuavam sua disputa, que se tornava mais acirrada a cada ano. Tornaram-se comuns os pedidos, publicados em jornais, implorando que as sociedades passassem por determinada rua. As atrações criadas para conquistar a atenção dos grupos ficavam mais elaboradas, com o uso de coretos, palmeiras, arcos triunfais, bandeiras, festões de flores, desenhos, fogos-de-bengala e até mesmo caricaturas criticando personalidades e situações da época.
A simples louvação das qualidades de uma rua já não era mais suficiente para provocar o interesse dos grupos carnavalescos, fazendo com que um novo elemento se incorporasse à disputa: a desqualificação das concorrentes. A confrontação tornou-se tão acirrada que muitos logradouros passaram a contar com as chamadas comissões de divertimento ou de festejos. Grupos de moradores (ou mesmo de profissionais especialmente designados) tornaram-se responsáveis pela organização das atividades carnavalescas do quarteirão e pela eventual contratação de artistas encarregados das decorações.
Alguns trechos de ruas decidiram criar uma espécie de prêmio, a ser conferido aos grupos que melhor se apresentassem em sua passagem. Outros enviavam ofícios, muito bem redigidos, às sociedade, solicitando, em termos altamente respeitosos, sua presença nos dias do carnaval.
Apesar do esforço, algumas ruas acabavam sendo excluídas do rol dos espaços privilegiados da folia. Em poucos anos estabelecia-se uma espécie de hierarquia espacial do carnaval. Certos logradouros, como a rua do Ouvidor, a praça Tiradentes e a rua do Rosário concentraram as preferências dos foliões organizados. O poder público continuava a se manter afastado desse tipo de controle, resumindo sua interferência à organização dos transportes – como o trem extraordinário que partia à meia-noite de domingo e terça-feira do centro da cidade para Cascadura, a partir de finais da década de 1860 – ou à regulamentação dos pontos de bondes em torno da área central durante a folia, a partir de meados da década de 1870.
Algumas tentativas de organização dos itinerários dos principais grupos chegaram a ser feitas, mas nenhuma delas vinda do poder público. A primeira não passaria de mera sugestão, publicada na Semana Ilustrada de 18 de fevereiro de 1872. Em 1881, as próprias sociedades decidiram se apresentar pela rua do Ouvidor de acordo com uma ordem que elas mesmas definiram. No ano seguinte o processo se repetiu. Mas, em 1883, os grupos já não seguiam nenhuma ordenação. O desfile unificado voltou a acontecer em 1887 e, pela última vez, em 1891.
O peso da centralidade
Nos últimos anos do século XIX, o foco do carnaval carioca se aproximava cada vez mais do eixo da rua do Ouvidor. Essa artéria acabaria por impor sua centralidade sobre as outras ruas, pelo fato de concentrar grande parte dos órgãos de imprensa da capital. Naquela época, a simples citação do nome de grupos de foliões em um jornal tornava-se mais importante que qualquer tipo de recepção festiva organizada por este ou aquele quarteirão.
Não é de admirar, desse modo, que todos os clubes, ranchos, cordões e sociedades considerassem obrigatória a passagem por ali. Mas a estreita artéria não tinha condições de ser o palco exclusivo da folia, que continuava a ocupar outros logradouros importantes do centro.
Com a abertura da avenida Central e de sua continuação, a avenida Beira-Mar, em 1906, a coisa começaria a mudar de figura. O novo eixo monumental, com suas largas calçadas, imponentes fachadas e múltiplas pistas de rolamento, criado para o deleite da burguesia, passaria a dividir a atenção e o interesse dos cariocas. Flanar pelo novo espaço tornava-se sinônimo de sofisticação e de modernidade. Construída nos moldes dos novos boulevards parisienses, no carnaval a avenida recém-inaugurada foi utilizada preferencialmente pela brincadeira burguesa do corso, uma espécie de continuação dos passeios iniciados pela Carnavalesca em 1855.
Para organizar o ir e vir das charretes e, pouco depois, dos automóveis abertos carregando foliões fantasiados, que marcaram o imaginário do corso, foi necessário criar algumas regras e horários que limitavam os tempos de passagem pela avenida Rio Branco (novo nome da avenida Central desde 1912). Em 1922, o corso desfilava oficialmente na artéria durante todo o sábado e domingo de carnaval. Na segunda-feira, dia dedicado aos grupos populares chamados genericamente de cordões, o corso podia ocupar a avenida até as 21 horas. Na terça-feira, dia dos préstitos das grandes sociedades, o passeio dos carros podia acontecer até as 17 horas.
Em resumo, a organização dos desfiles em dias e horas preestabelecidos acontecia não por uma necessidade de organização do carnaval em si, mas em prol da supremacia do corso burguês que ocupava todo o espaço da nova artéria por quase todo o tempo festivo.
Auxiliada pelos jornais, que criavam concursos de ranchos, blocos e cordões e incentivavam a disputa entre as principais sociedades, a folia do Rio de Janeiro foi se organizando em dias e horários diferentes para cada tipo de brincadeira. A partir de 1932, com a oficialização do carnaval carioca promovida pelo interventor Pedro Ernesto, os desfiles passaram a ser controlados diretamente pelo poder público, que fixou horários e regras oficiais para as apresentações.
Fechou-se, desse modo, um ciclo, um período em que o carnaval do Rio de Janeiro esteve nas mãos de seus principais atores. A partir da década de 1930, os habitantes das ruas do centro da cidade e os participantes das brincadeiras populares deixavam de ser os principais controladores da festa, submetendo-se à lógica oficial.
Se atualmente não se pode imaginar a folia brasileira sem uma rígida organização de espaços e horários provinda de órgãos oficiais – seja no Rio de Janeiro, em Salvador, Recife ou São Paulo -, é importante observar que sua forma atual nasceu, cresceu e se estabeleceu sob um processo muito diferente. Foi a participação direta dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro que conferiu ao evento seu verdadeiro caráter. O diálogo, tenso ou amigável, entre foliões, espaços urbanos, brincadeiras, decorações e desfiles acontecido no século XIX, forneceu a matéria essencial para que o carnaval brasileiro se transformasse na maior festa popular do planeta.