A era das leis de incentivo à cultura no Brasil, iniciada com a Lei Sarney, completou 20 anos. Nesse período, dezenas de outras leis de incentivo foram criadas em diversos estados e municípios brasileiros e se consolidaram como base das políticas públicas e como fonte substancial do financiamento à cultura. A lógica é simples. O governo renuncia a parte da arrecadação e permite às empresas contribuintes optar por abater de seus impostos a pagar os recursos investidos na cultura, parcial ou integralmente, dependendo do caso.
Não pretendo aqui discutir o mérito ou a ineficácia das leis de incentivo à cultura, mas apontar uma de suas mais graves lacunas e distorções, até o momento insistentemente ignorada pelos seus gestores.
Todas as leis de incentivo, repito todas, federais, estaduais ou municipais, requerem que o agente cultural, para receber os recursos patrocinados através delas, emita apenas um recibo de mecenato ou instrumento similar. Assim, permitem a ele a não emissão de notas fiscais. Lógico: estes recursos não são considerados como receitas de prestação de serviços, mas como dinheiro público destinado à execução de projetos culturais temporariamente geridos por terceiros, empreendedores privados ou instituições sem fins lucrativos. Tanto é assim, que todos somos obrigados a prestar contas de sua correta e transparente aplicação aos órgãos públicos competentes.
Além disso, todas as leis de incentivo, repito todas, exigem a menção e o destaque de sua utilização nos materiais de divulgação dos projetos com elas realizados e prevêem, por óbvia, a veiculação da marca do contribuinte patrocinador. Isto significa, por conseqüência, que todos os projetos culturais que utilizaram leis de incentivo para se viabilizarem, repito todos, assumiram compromissos explícitos com governos e empresas privadas para veiculação de suas respectivas marcas.
A distorção grave e ameaçadora surge quando uma esfera municipal considera como receita de veiculação de publicidade o montante de recursos provenientes do incentivo federal ou estadual e reivindica a cobrança de impostos sobre tais verbas. Mais grave ainda, quando um município como o Rio de Janeiro multa um agente cultural carioca em R$330.000,00 (trezentos e trinta mil reais) por não ter recolhido ISS sobre os recursos recebidos por meio das leis de incentivo nos últimos cinco anos. A Secretaria Municipal de Fazenda do Rio quer interpretar isto como prestação de serviços de publicidade, só porque os projetos veicularam as marcas dos patrocinadores.
A situação carioca é ainda mais absurda, pois a multa abrange inclusive os recursos provenientes da Lei Municipal de Incentivo à Cultura do Rio de Janeiro que, para piorar, são repassados aos agentes culturais pela Secretaria Municipal das Culturas. Se o imposto fosse devido e o repasse foi feito pela própria Prefeitura, por que o ISS não foi retido na fonte? A resposta dada por um funcionário da fazenda quando questionado sobre o assunto foi kafkiana: “Não se preocupe, entre na justiça que o senhor ganha”. Quer dizer, temos que pagar advogados para provar que somos inocentes?
O problema não é simples, redunda de verdadeiros “buracos negros” nas legislações. Sua abordagem requer tanto conhecimento técnico tributário como habilidade e sensibilidade políticas. Mas é preciso apontar uma solução legal de imediato, sob o risco de a Prefeitura do Rio ter que multar uma parte significativa do mercado cultural carioca.
Cultura e Mercado Ivan Fortes