Do Cinema Novo ao cinema industrial

Na casa de número 138 da Rua 19 de Fevereiro, em Botafogo, Nelson Pereira dos Santos montou “Vidas secas”, Glauber Rocha morou um ano, Leon Hirzsman e Joaquim Pedro de Andrade participaram de reuniões no porão, e a turma do Cinema Novo promoveu um célebre encontro com cineastas da Nouvelle Vague francesa e do Neo-realismo italiano.

Construída em meados do século XIX, a casa era uma espécie de sede do Cinema Novo e já não existe mais, derrubada que foi para a construção de um prédio. Mas seus antigos moradores, os produtores Lucy e Luiz Carlos Barreto, continuam na ativa, e, a partir de hoje e até o dia 15 de dezembro, serão homenageados com uma mostra de 15 filmes em 18 cidades da França.

A Retrospectiva Lucy e Luiz Carlos Barreto, que faz parte do Ano do Brasil na França, vai apresentar aos franceses obras como “Vidas secas”, “Dona Flor e seus dois maridos”, “Garrincha, alegria do povo”, “Bye Bye Brasil”, “Menino do Rio” e “Bossa nova”.

A iniciativa partiu da Association Française d’Action Artistique, que convidou o distribuidor Jacques Atlan para ajudar na tarefa. Em geral, retrospectivas homenageiam diretores, mas desta vez a idéia é lançar o foco sobre o trabalho dos principais produtores de cinema do país, responsáveis por 82 títulos desde a inauguração da LC Barreto, em 1961.

Lucy e Luiz Carlos, mais conhecido como Barretão, lembram dos primeiros tempos da produtora, quando tiveram que importar duas câmeras de última geração.

— O slogan do Cinema Novo era uma idéia na cabeça e uma câmera na mão — lembra Barretão. — Mas aquelas câmeras antigas não davam para acompanhar a cabeça dos novos cineastas, e aí trouxemos as máquinas de fora.

Casal vai produzir Falabella e novo filme de Moacyr Góes

O salto tecnológico não se deu somente nas imagens.

— Trouxemos o melhor técnico de som da França para “Amor bandido”. Incomodava-me profundamente o som dublado, já que não havia som direto e tínhamos que dublar todos os filmes — conta Lucy, lembrando que sua mãe, Lucíola, também se envolvia diretamente na produção dos filmes.

Barretão logo se tornou o líder político e econômico do Cinema Novo, sendo o principal responsável pela criação da distribuidora Difilm, que ajudou os filmes brasileiros a conquistarem, nos anos 70, 42% do mercado.

— Ele foi sem dúvida nenhuma a coluna dorsal do Cinema Novo — diz Cacá Diegues.

A LC Barreto foi responsável pela maior bilheteria do cinema brasileiro, “Dona Flor e seus dois maridos”, com 12 milhões de ingressos vendidos. Nos últimos anos, suas maiores bilheterias foram “O quatrilho”, com 1,3 milhão, e “O casamento de Romeu e Julieta”, com um milhão. Barretão explica que a estratégia da produtora é também atingir o mercado exterior:

— Embora perdendo um pouco no interno, ganhamos no externo. “Bossa nova”, por exemplo, teve uma performance média aqui e fantástica lá fora. Foi exibido em 480 cidades americanas e comercializado em mais de 80 países. Nossa política é ter os dois mercados.

São muitos os projetos da produtora, como fazer conteúdo para telefonia e para TV, e usar cada vez mais os recursos digitais. O próximo filme começará a ser rodado em agosto e será baseado no romance “O balé da utopia”, de Álvaro Caldas. Com direção de Marcelo Santiago e elenco que inclui Marcos Ricca e Mel Lisboa, trata de um triângulo amoroso em tempos de ditadura militar brasileira. Depois, virão duas comédias, “Polaróides urbanos”, de Miguel Falabella, e “Peleja de Ojuara”, de Moacyr Góes.

Lucy e Luiz Carlos Barreto estão longe de se aposentar, mas têm assumido novas funções.

— Paula e Fábio (filhos do casal) vão tomar conta da produtora. Eu e Lucy vamos passar a atuar como consultores. Além disso, Lucy vai se voltar mais para os documentários e eu vou continuar fazendo política de cinema.

Produtor protesta contra a “censura estética”

E é com a experiência de mais de 40 anos fazendo política cinematográfica que Barretão analisa o atual momento:

— “Romeu e Julieta” poderia ter atingido a faixa de três milhões de espectadores, caso tivesse sido lançado em outubro passado. Mas foi lançado em março deste ano e pegou a maré descendente. Este ano, em relação a 2004, houve uma queda de freqüência de 32%, em geral. O mercado se concentrou na classe média alta e o povão ficou excluído.

Ele critica o atual processo de escolha dos projetos a serem patrocinados:

— Em algumas estatais são constituídas comissões externas de seleção, formadas em geral por críticos, cineclubistas e pesquisadores de cinema — diz. — São pessoas sem nenhum compromisso com a política comercial, que estão estrangulando o lado industrial do cinema. Está se instituindo uma censura estética gravíssima no país.

Segundo Barretão, de 2002 para cá os recursos foram pulverizados e se voltaram para primeiros filmes, produções experimentais e regionais.

— São filmes que devem ser feitos, sim, mas com outras formas de financiamento. É função da Secretaria do Audiovisual botar debaixo do seu guarda-chuva toda a produção de investigação de linguagem. Do jeito que está vamos bater o recorde de produção de filmes inéditos, que não chegam ao mercado. Estão sendo feitos menos filmes competitivos.

Ele conta que, em 2003, o cinema brasileiro chegou a ocupar 22% do mercado e, ano passado, caiu 16%.

— Este ano, vamos despencar para algo entre 10% e 12% — diz Barretão, antes de dar uma longa baforada em seu inseparável charuto e completar, preocupado: — Se não corrigirmos, vamos regredir ainda mais.

 

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