A problemática época em que vivemos, onde milhões de pessoas reivindicam soluções urgentes, não se dissocia de todo o contexto socioeconômico, político e jurídico em que se insere a questão dos direitos humanos e da cidadania no Brasil. Com a perpetuação de uma cultura ideológica dominante, que serve à manutenção e reprodução do status quo, formando uma barreira intransponível no que seria a conscientização do indivíduo no contexto dos direitos humanos, torna-se difícil a construção de uma cidadania com dignidade.
Em países periféricos como o Brasil o cotidiano vivido pela ampla maioria de sua população demonstra claramente a caótica situação de miserabilidade crescente, desempregos, subempregos, fome e aumento da violência, ao mesmo tempo em que se cria um senso comum de violência, autoritarismo e conformidade com as atuais circunstâncias, incapazes de distinguir representação de realidade. Resulta numa crise moral, ética e política onde corrupção e clientelismo afetam o cerne do Estado que é visto como provedor de bem-estar social. Basta observarmos a violação dos direitos humanos e a exclusão de minorias ¾ que, somadas, formam maioria frente aos direitos fundamentais ¾ e da própria possibilidade de lutar por tais direitos.
Neste contexto socio-econômico, político e jurídico em que vivemos assume elevada importância a discussão em torno dos direitos humanos, seus fundamentos e garantias. A grande questão aqui colocada e que serve de ponto mediador para a nossa abordagem é a seguinte: sendo os direitos humanos institucionalizados em nosso ordenamento jurídico e socialmente aceitos e sendo uma condição inerente ao princípio da convivência harmônica entre os indivíduos, qual a possibilidade real de sua efetivação, numa sociedade de população numerosa e crescente como a nossa?
Ocorre que os direitos e garantias tutelados em nossa norma constitucional não são implementados, caracterizando uma crescente contradição, de forma que um grande contingente populacional não tem assegurados seus direitos mínimos de cidadania. Há uma grande dicotomia entre sua positivação e sua efetividade: embora sejam assegurados como direitos e garantias fundamentais, os direitos humanos não são respeitados em nossa sociedade, sendo que temos presentes imensas desigualdades sociais e a democracia brasileira pode ser considerada uma farsa.
Neste sentido questiona Oliveira:
Como se quer construir democracia com tal situação? De um lado, as imensas desigualdades sociais, que tornam o conceito de democracia uma esfinge para os despossuídos e sua prática uma visível farsa. De outro, uma cultura política, de exclusão social, de violência, uma cultura política de desidentificação social. (Oliveira, apud Scherer-Warren, 1993:61)
Ocorre uma crise de cidadania, na qual o indivíduo desconhece seus direitos, sendo portanto difícil se chegar à efetivação de direitos humanos. Para Ilse Scherer-Warren,
… a simples situação de miséria, de discriminação ou mesmo de exploração não produz automaticamente este reconhecimento. E mais ainda, como reconhecer o direito de lutar por um direito? Neste sentido é fundamental a existência de um fator subjetivo, ou seja, o reconhecimento de sua dignidade humana, que sempre foi solapada nas classes subalternas e tem suas raízes no sistema escravocrata e colonial. (Scherer-Warren, 1993:69)
O problema estrutural da sociedade brasileira, que atuará como marco inicial de nosso objeto de estudo, é que a ordem jurídica não apresenta dispositivos que assegurem, na prática das instituições jurídicas, os direitos humanos expressos nos princípios definidos pela atual Constituição brasileira.
O problema aqui apresentado tem raízes históricas, que ultrapassam os marcos do sistema escravocrata e colonial. Historicamente, a formação jurídica em nosso país está vinculada ao sistema ideológico, político e burocrático do Estado liberal em formação, que reflete uma mentalidade dominante em inícios do século XIX, constituída pelo liberalismo individualista. Não contraditoriamente, a educação na sociedade brasileira, historicamente, tem se pautado em habilitar os grupos sociais de trabalhadores técnica, social e ideologicamente para o trabalho, induzida por exigências de desenvolvimento do sistema econômico. A relação entre cidadania e direitos constitui-se como secundária, frente às articulações de interesses das frações dominantes de expansão capitalista.
Além disso temos, também, a crise de identidade dos estudantes. Em nome do progresso ocorreu a massificação do ensino. O estudante perdeu sua identidade, a responsabilidade social, a direção política e o direito à produção de cultura. Conforme nos fala Chauí, vivemos num mundo dominado por aquilo que a ideologia dominante convencionou designar como progresso tecnológico. À escola em geral foi conferido um novo papel: “além de reprodutora da ideologia e das relações de classe, está destinada a criar em pouco tempo, a baixo custo e em baixo nível, um exército alfabetizado e letrado de reserva” (Chauí, 1985:57).
A educação, de um modo geral, encontra-se defasada em relação às necessidades contemporâneas do homem. Sua finalidade precípua deve ser possibilitar ao estudante a aquisição de senso crítico, capacitando-o para que este seja um agente de transformações sociais na luta pela construção de uma sociedade mais justa. Mas, para que isto ocorra, é necessário que também as professoras tenham uma visão crítica da realidade. Hoje, via de regra, nossas escolas de 1º a 3º graus “produzem” profissionais sem uma visão total da realidade social onde se encontram.
Diante disso, entendemos ser necessário fazer uma análise de como são pensados os direitos humanos e a cidadania por estas professoras, tendo em vista que há uma tendência muito grande no sentido de formar profissionais com uma visão fragmentada ou compartimentada do conhecimento, onde o próprio conteúdo é o fator determinante de sua importância. É o conteúdo pelo conteúdo, a sua lógica interna, sem estabelecer relações com outros conhecimentos, com outras lógicas, desvinculados, portanto, da realidade social vivida por grande parte da população e despreocupados com os aspectos humanos da sociedade.
Por ser esse nosso entendimento, foi de fundamental importância para o desenvolvimento da pesquisa a participação efetiva de professoras, pois são elas as agentes que poderão desencadear a discussão e implementação de uma proposta de educação formal que atente para a construção da cidadania na escola e na vida individual e comunitária, fazendo progredir o conhecimento de todos os envolvidos e da própria comunidade, de modo a se buscar a efetiva construção e luta por uma cidadania efetiva. Portanto, foi necessário que elas estivessem interessadas em participar da pesquisa, contribuindo com suas experiências anteriores.
O estudo de suas concepções de direitos humanos e cidadania é de fundamental importância para uma posterior elaboração de proposta de educação em direitos humanos e cidadania. A luta pela efetivação dos direitos humanos e o exercício da cidadania passam pelo resgate de raízes culturais, bem como pela articulação dos interessados em se constituírem cidadãos plenos, de modo a que se chegue ao desenvolvimento político desta população. Dessa forma, o conhecimento de suas concepções é o meio que poderá possibilitar, posteriormente, a estruturação de uma proposta de educação em direitos humanos.
Conhecendo seus direitos e questionando a situação vigente, terão condições de analisar criticamente a realidade, elaborando conteúdos que estejam diretamente ligados à realidade e contexto vivenciados pelos indivíduos. Portanto, chegar à efetivação dos direitos e vivenciar uma cidadania plena implica em primeiro lugar a constituição dos indivíduos em cidadãos subjetiva e objetivamente, de modo que estes se reconheçam como sujeitos de direitos. É necessário conhecê-los, para então lutar por eles.
A abordagem dos direitos humanos como aspecto básico integrante da educação formal da população constitui pesquisa de vital importância para a formação de uma cidadania consciente e dotada de autonomia social. Neste sentido, o grupo de professoras pode vir a se constituir a ligação decisiva entre a comunidade e a luta pela efetivação dos direitos humanos e demonstrar a importância da educação em direitos humanos e cidadania no processo de emancipação, libertação e autonomia do cidadão. A partir destas concepções procuramos fazer um levantamento do seu conhecimento e das possibilidades ou dificuldades encontradas por elas no trabalho com questões relativas a direitos.
A Constituição Federal, por sua vez, diz expressamente em seu título I, que tem como fundamento, no que se refere aos direitos do homem, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Prescreve ainda, como objetivos fundamentais, construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.
Em seu título II afirma os direitos civis, sociais e políticos do cidadão. Na prática, a afirmação constitucional destes direitos não é garantia suficiente de sua efetividade. Historicamente, os direitos humanos são concebidos como mecanismos de defesa dos cidadãos contra o arbítrio dos governantes e abusos do Estado. Porém, como é o Estado que legisla e que deveria garantir sua aplicação, ocorre a ineficácia dos mesmos.
No seu título VIII, capítulo III, afirma a educação como direito de todos, sendo esta dever do Estado e da família, a qual, além de ter por finalidade o pleno desenvolvimento da pessoa, visa a seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Os termos cidadão, cidadania, da forma como normalmente são abordados tanto no meio escolar como no meio jurídico, são extremamente vagos, podendo ter várias interpretações, de acordo com os interesses em jogo. A cidadania, por exemplo, de acordo com a cultura jurídica dominante, pode ser vista meramente como um atributo concedido pelo Estado ao indivíduo nacional. Esse atributo é a nacionalidade que seria a condição de cidadania, a qual, sendo uma categoria estática, uma vez concedida, acompanharia o indivíduo por toda a vida (Cf. Andrade, 1993:28). Consideramos, porém, que a cidadania é mais que a simples equivalência à nacionalidade e que o cidadão formal pode não ter conhecimento de seus direitos, sendo que o conhecimento de que é sujeito de direitos é condição para o exercício da cidadania. E, neste sentido, apenas ter conhecimento não é suficiente. É necessário lutar tanto pela efetividade dos direitos elencados na norma constitucional quanto por novos direitos.
Atualmente boa parte dos direitos do ser humano, diante de um conglomerado de símbolos elencados em nosso ordenamento jurídico, além de serem vagos, traduzem apenas formalmente os direitos fundamentais, pois são inefetivos. Para entendermos a inefetividade destas normas temos que levar em conta todo o contexto histórico de formação do Estado nacional bem como fazer uma análise da conjuntura nacional. Neste sentido, o estudo das concepções acerca da cidadania e dos direitos humanos dos sujeitos nos possibilita visualizar sua capacidade de construção de condições no sentido de buscar a efetivação destes direitos. Pressupomos como essencial à sua efetivação o conhecimento das concepções de direitos formais vigentes, embora inefetivos, bem como a possibilidade de introduzir a discussão no âmbito da escola.
A emergência formal dos direitos humanos e sua afirmação nas primeiras Declarações de Direitos serviram de fundamentação à luta por uma nova ordem social que acompanhou o surgimento do Estado moderno. A partir daí os direitos humanos elencados nas diversas Declarações de Direitos e Constituições, incluindo aí a brasileira, possuem um caráter formal que, somado à falta de garantias judiciais de sua aplicação, não alcançam sua efetividade.
A norma constitucional brasileira, tendo em vista seu caráter formal e a falta de garantias judiciais de aplicação, não é garantia da efetividade dos direitos humanos. Embora esses direitos sejam reconhecidos formalmente, até que ponto eles são realmente respeitados e eficazes no cotidiano da população? Como estendê-los a todos os planos da vida, mesmo àqueles que estão à margem da cidadania plena? O problema com relação aos direitos do homem não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los. Para Norberto Bobbio trata-se de saber “qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados” (Bobbio, 1992a:25). Devem então ser exigidos por aqueles que são seus destinatários, pois somente através da mobilização pelo respeito e conhecimento desses direitos é que se alcançará sua efetividade. A falta de conhecimento e conseqüente falta de reivindicação destes direitos é, assim, o entrave para a sua efetividade. Desta forma, a educação em direitos humanos e cidadania pode levar à emancipação da população e à luta pelos direitos já elencados na Constituição.
A transposição do atual modelo de direitos humanos formais para um novo modelo prático-teórico, onde os sujeitos conheçam e busquem a proteção e efetividade de seus direitos, implica a construção do conhecimento por um viés metodológico interdisciplinar no qual se priorizem as relações humanas vividas no âmbito escola/comunidade/sociedade.
Partindo das experiências cotidianas dos agentes envolvidos nas práticas escolares, é possível a busca de um desenvolvimento prático-teórico dos fundamentos dos direitos humanos, pois a escola, como espaço sociopolítico, é o local adequado para trabalhar os conceitos que envolvem estes direitos, de modo que a população envolvida reconstrua dignamente uma cidadania plena. Para tanto, não basta teorizar os direitos humanos em sala de aula. É necessário tornar a vivência entre professores e alunos uma prática de direitos, onde cada um desempenhe seu papel. É necessário também que os professores tenham uma visão crítica da realidade e sejam conscientes do papel que desempenham para o desenvolvimento da cidadania.
A partir da idéia de cidadania e direitos humanos é possível construir interdisciplinarmente um referencial comprometido com mudanças, priorizando a relação aluno-professor, que desencadeará a busca de uma nova relação indivíduo-Estado. Desta forma o discurso hegemônico dos direitos humanos em sua formalidade abstrata poderá ser redimensionado de modo a colocá-los como parte integrante da vida do homem em formação fazendo parte das práticas sociais e, acima de tudo, vindo a ser um instrumento normativo que, através da reivindicação do homem, constitua-se em meio de implementação de melhores condições de vida.
Através do conhecimento dos valores éticos e da busca de uma racionalidade emancipadora é que se chegará à efetividade dos direitos humanos. O conhecimento e a busca da emancipação humana desencadearão um processo de construção gradual da cidadania.
O termo cidadania, como mencionamos anteriormente, é uma expressão muito vaga. Quando tentamos defini-la, surgem as mais variadas explicações: “é quando o cidadão cumpre seus deveres e conquista seus direitos”, ou então, “é atuar dentro de uma sociedade, ter direitos e deveres e fazer uso destes”. Ainda, aparece como a possibilidade de “desfrutar da condição de ser brasileiro”, condição esta relacionada à própria questão da nacionalidade. Também devemos considerar que a questão dos direitos humanos e cidadania são pouco abordados na educação em geral e, até mesmo nos cursos jurídicos, são abordados de forma superficial.
Dessa forma entendemos ser necessário trabalhar a questão de cidadania e direitos humanos na escola fundamental, de modo a oportunizar à comunidade de estudantes o acesso a esta questão de interesse fundamental para o desenvolvimento da sociedade. Entretanto, é necessário primeiro que as professoras estejam preparadas para que, então, elas possam começar um trabalho com seus alunos e a própria comunidade escolar. Como nos lembra Teresinha G. Bertussi (1995:49-65), o exercício dos direitos humanos implica primeiramente a constituição dos indivíduos em cidadãos subjetiva e objetivamente, ou seja, que se reconheçam como sujeitos de direitos.
Os direitos humanos e os valores que permeiam as relações humanas estão presentes na concretude da organização da vida social. Analisar a questão dos direitos humanos e cidadania, em determinado instante da vida social, implica conhecer a especificidade da formação social, o desencadeamento dos modos de produção da riqueza e sua distribuição social, as ideologias presentes, bem como o modelo de distribuição da justiça. É necessário conhecer o tipo de organização social presente em nossa realidade e quais as relações de valores, de poder e de interesses que vivenciamos e que a sociedade reproduz. Em se tratando da cidadania é necessário analisar a experiência humana de acordo com a historicidade dos direitos humanos, a sua evolução de acordo com cada racionalidade e de acordo com concepções, significados e valores de cada época e de cada segmento social.
Esta questão, cidadania e direitos humanos, merece destaque principalmente no que se refere ao modo de exercer a cidadania e os direitos. Buscamos então desmistificar certas questões que envolvem a temática e quem se dedica a defendê-la, principalmente pelo fato de os defensores dos direitos humanos serem constantemente denominados de defensores de bandidos. Desta forma, serão feitas, num primeiro momento, algumas abordagens de conceitos e da ligação entre a cidadania e direitos humanos, buscando esclarecer: a) como se colocam a cidadania e os direitos humanos historicamente; b) como se deu o desenvolvimento da cidadania formal; c) a falta de interesse e conhecimento dos direitos humanos; d) os direitos humanos numa concepção ligada ao político, histórico, econômico e jurídico; e) como se dá a exclusão do homem concreto dos direitos de cidadania.
A razão histórica que motivou a presente pesquisa está ligada a uma tentativa de prestar assessoria jurídica à população carente do bairro Thomé de Souza. Nos deparamos com uma falta de conhecimento dos direitos por parte da população. Percebemos que ocorre uma completa alienação acerca de direitos e leis, sendo possível até mesmo perceber uma certa acomodação com as condições de vida presentes. Não há interesse em lutar por mudanças e a ignorância passa a fazer parte do mundo vivido por estas pessoas.
Percebemos também que a questão é bem mais profunda do que podemos imaginar, pois não basta oferecer um serviço de assessoria jurídica que, na maioria das vezes, se limitaria a ter alguém à disposição para buscar algum direito pela via forense ou para demonstrar a estas pessoas qual é e o que é o direito que elas têm. Inicialmente pensamos na possibilidade de trabalhar esta questão com a própria comunidade, com os moradores do bairro, mas, ao fazer algumas entrevistas com os próprios moradores da comunidade, percebemos ser muito mais significativo trabalhar com as professoras, pois elas poderiam desencadear um processo de esclarecimento das pessoas. Buscamos assim estudar as concepções que elas têm para ver se é possível que trabalhem com a comunidade e desencadeiem um processo de educação para/em direitos humanos, que priorize a formação de cidadãos.
A partir dessa inserção na vida da comunidade percebemos que a questão dos direitos humanos e, mais precisamente, da cidadania, está muito longe de ser contemplada por esta população. Primeiro, porque desconhecem os próprios direitos; segundo, porque não lhes são dados mecanismos para que se mobilizem; e, em terceiro lugar, pela própria acomodação a que estão acostumados.
Na tentativa de aprofundar essa questão da implementação da cidadania, percebemos que é necessário desconstruir a situação de acomodação em que se encontram os sujeitos. Para desconstruir esta situação a que estão acostumados, é necessário um canal que lhes possibilite ter acesso a estas informações, pois por vontade própria é praticamente impossível sua efetivação. O canal mais viável que possibilitaria o acesso da população a estas informações é a escola, pois, além de ser um ponto de referência no bairro, para os moradores, as professoras são consideradas autoridades na medida em que são vistas como pessoas que detêm o saber e, assim, como detentoras de uma cultura maior, o que, em nosso entender, poderia viabilizar um projeto de educação para a cidadania. Em outras palavras, poderíamos dizer que há um respeito muito grande por parte dos moradores diante daquilo que pensam e falam as professoras, o que permitiria a abordagem destas questões.
Nesta perspectiva podemos pressupor que a possibilidade ou não de exercer a cidadania pela população pode passar pelo conhecimento ou não acerca dos direitos humanos pelas professoras e do próprio exercício da cidadania. Pretendemos explorar quais as concepções das professoras e ver como é trabalhada esta questão com a comunidade.
Por ser um campo que admite várias interpretações, a perspectiva que procuramos abordar é a visão que a professora tem do seu próprio espaço na escola, se ele pensa no cotidiano vivido, se é um espaço de construção da cidadania ou se é apenas um lugar de trabalho, local onde ela cumpre seus horários e o restante não tem relevância.
A pesquisa foi desenvolvida na Escola Municipal de 1º grau Incompleto Thomé de Souza, que se situa no Bairro Thomé de Souza, na divisa da zona urbana com a zona rural, no sudoeste do município de Ijuí. É um bairro pobre, que apresenta uma precária infra-estrutura. Grande parte dos moradores são assalariados, sendo que inúmeros estão desempregados, devido até mesmo à própria conjuntura que o município e o país enfrentam. Situada a aproximadamente três quilômetros do centro da cidade, a escola conta hoje com 257 alunos, de pré-escola à 6ª série. Conta também com 18 professoras, sendo que, destas, 15 voluntariamente se prontificaram a participar da pesquisa. Destas professoras, três concluíram o 2º grau; duas, a licenciatura curta; oito, a licenciatura plena; e duas estão cursando a pós-graduação.
A escola, a primeira do bairro, foi construída na década de 60, por iniciativa dos pais, que se organizaram e solicitaram sua construção aos órgãos municipais, pois se encontravam preocupados com a educação dos filhos. A comunidade doou o terreno e ajudou a construí-la em forma de mutirão. Porém, durante muitos anos os pais participavam pouco do trabalho desenvolvido na escola, pois estava sendo considerada mais um espaço para os professores darem aulas do que para os alunos estudarem e ser útil à comunidade.
Quando assumiu uma direção eleita pela comunidade, no ano de 1984, a comunidade escolar passou a repensar a escola e sua função junto à comunidade. Iniciou-se então a construção de uma proposta de trabalho na qual se pretendia trabalhar de forma comprometida com toda a comunidade. A escola foi ao encontro dos interesses desta comunidade, procurando desenvolver um trabalho sério e comprometido. Aos poucos os pais começaram a participar, correspondendo ao chamado da direção e dos professores. Esta participação dos pais foi essencial para a caminhada desenvolvida. Porém surgiram dificuldades para a continuidade do trabalho desenvolvido quando, em 1990, foi construída uma escola estadual de 1º grau a uma distância de 100 metros. Surgiu a ameaça de fechar a escola. Novamente pais, professores e alunos se mobilizaram para que a escola não fechasse e desse continuidade ao trabalho desenvolvido. A partir daí a escola passou por uma reforma geral, o que proporcionou um ambiente mais adequado e agradável. Os pais contribuíram na organização de eventos com fins lucrativos e em mutirões, enquanto a Administração Municipal se responsabilizou pela execução das melhorias.
Em 1990 surgiu a oportunidade de se desenvolver um trabalho conjunto com a Universidade de Ijuí. A Universidade foi à escola e expôs o projeto que foi aceito pelo corpo docente. Em 1994, com a necessidade de se intensificar o trabalho com a comunidade, surgiu a oportunidade de se desenvolver um novo projeto juntamente com a Universidade, denominado “Escola, Bairro e Cidadania”, uma proposta de diagnóstico participativo. O projeto visava a integrar cada vez mais a comunidade, as professoras e os alunos.
O trabalho foi iniciado com a finalidade de verificar os principais problemas do bairro. A partir do diagnóstico feito, a comunidade escolar passou a trabalhar com o principal problema que o bairro estava enfrentando: o lixo doméstico. Foi feito todo um trabalho de conscientização entre a população do bairro, que iniciou um processo de coleta e separação do lixo. Porém, por uma questão de desinteresse da Administração Municipal, que alegou falta de verbas, o departamento de limpeza pública deixou de fazer a coleta seletiva de lixo, entravando o processo. Com todo esse processo, buscou-se desenvolver práticas de participação, ao mesmo tempo em que se procurou resolver os problemas mais graves do bairro.
Para desenvolver a presente pesquisa, trabalhamos com a hipótese de que não basta que os direitos humanos estejam assegurados nas declarações de direitos para que sejam efetivados. Sua eficácia depende do conhecimento destes direitos e dos meios necessários para alcançar sua concretude, principalmente da vontade de lutar por eles. Somente com uma população que tenha senso crítico, participação ativa nos movimentos populares e que saiba reivindicar seus direitos é que alcançaremos uma verdadeira democracia. Para tanto, faz-se necessário, conhecer os direitos, para posteriormente poder exigir seu cumprimento. A educação em direitos humanos e cidadania é o modo de se conseguir alcançar uma maior democratização da sociedade, democracia esta não apenas formal, mas acima de tudo que vise a atender as demandas dos excluídos, de modo a se buscar uma melhoria na qualidade de vida destes sujeitos. Portanto, não basta apenas conhecê-los e ensiná-los. É necessário lutar por sua implementação, pois somente garantia constitucional não é suficiente; somente conhecendo os direitos é que se possibilitará a efetividade dos direitos humanos e da cidadania.
Pressupomos também que, enquanto agente de educação, em geral a professora desconhece o que são os direitos humanos e a cidadania, deixando até mesmo de reivindicar seus próprios direitos. Sua concepção de cidadania está ligada somente a um tipo de direito político ¾ ao direito político eleitoral. Confunde cidadão com eleitor ¾ o direito político enquanto participação é, para ela, o sentido pleno da cidadania. Deste modo, terá dificuldades em exercer sua cidadania e contribuir com a educação para a mesma, enquanto não for conhecedora de seus direitos e não se assumir como agente positivo de transformação da estrutura em que ela participa. Possuidora de um discurso descontextualizado e como sujeito do processo educacional, faz parte de um sistema, explorando ou sendo explorada.
Assim, a concretização da dignidade humana na construção de uma sociedade mais justa passa pela educação em direitos humanos e cidadania. Somente se alcançará uma sociedade mais justa quando os sujeitos, conhecedores de seus direitos, em comunidades e grupos, lutarem coletivamente pela efetivação dos direitos humanos e cidadania.
Para que isto ocorra, a educação para a cidadania e direitos humanos deve ter como espaço privilegiado a escola fundamental, enquanto espaço formal da educação. Esta educação passa necessariamente pela escola, pela professora e pela comunidade, pois é ali que temos o convívio de pessoas que estão em processo de formação de valores que as nortearão por toda a vida. Deve-se trabalhar estes valores na criança, para que, ainda como crianças e quando adultos, saibam reivindicar seus direitos e construir uma sociedade mais justa, que busque a emancipação, libertação e autonomia das pessoas.
Utilizamos como método durante o desenvolvimento da pesquisa empírica, entrevistas abertas com as participantes, as quais foram gravadas em fitas k-7, a fim de coletar os dados a serem analisados. Posteriormente as fitas foram transcritas sendo que destes dados resultou o mapeamento das concepções das professoras sobre cidadania e direitos humanos.
As entrevistas foram individualizadas para evitar imposição do pensamento de umas sobre as outras. Trabalhamos com entrevistas semi-estruturadas, pois entendemos que daria uma maior liberdade ao campo a ser explorado, sem seguir rigidamente a estrutura, de modo a tentar captar informações mais profundas. Esta liberdade visou a dar um caráter flexível ao próprio questionário, de modo a enriquecer as respostas, de modo que houve liberdade de conversação entre o pesquisador e a entrevistada.
Devido ao tema ser muito amplo, as entrevistas foram feitas em etapas, observando sempre as entrevistas anteriores, na tentativa de dar continuidade e enriquecer as perguntas posteriores e voltando a um assunto já abordado sempre que necessário. Isso ocorreu de acordo com as respostas de cada uma das entrevistadas. Não houve nenhuma leitura prévia com o intuito de preparar as entrevistadas.
Partindo deste complexo quadro onde se situa a cidadania e os direitos humanos, a dissertação objetiva, a partir das concepções das professoras, entender como são vistas por elas estes referentes e qual a ênfase na sua educação. Visando a atingir estes objetivos, a dissertação foi dividida em três capítulos básicos.
No primeiro capítulo fizemos uma revisão bibliográfica para resgatar a historicidade e aprofundar algumas concepções tanto da cidadania como dos direitos humanos, a partir do que construímos um conceito funcional de cidadania que posteriormente serviu de base para a análise e reflexão final.
No segundo capítulo fizemos uma leitura das concepções das professoras sobre cidadania e direitos humanos. As observações feitas neste capítulo se restringiram àquilo que foi observado e conversado com as professoras na escola. Também abordamos os principais direitos que foram perceptíveis durante o andamento da pesquisa. A pesquisa se limitou a este campo.
No terceiro capítulo analisamos as concepções de cidadania e direitos humanos das professoras à luz do conceito funcional que trabalhamos no capítulo I. Abordamos alguns direitos, sendo que três deles já eram pré-definidos. O primeiro é o direito à vida, o qual consideramos como o principal direito humano. Os dois outros, direito de participação e à greve, devido a estarem intimamente ligados à conjuntura presente na escola, por terem ligação à nossa concepção de cidadania e por estarem relacionados à construção do espaço público. Abordamos ainda a questão do direito ao trabalho, pois foi muito citado pelas professoras e é ele que possibilita alcançar outros direitos. Desta forma, com base em nossa conceituação de cidadania e direitos humanos, foi feita a interpretação das falas das professoras, levando em conta as situações e comportamentos que foram observados.
No último momento fizemos algumas considerações no sentido de lançar algumas perspectivas, refletindo a contribuição que pode nos proporcionar a educação em direitos humanos e cidadania.