O incêndio que destruiu na sexta-feira pelo menos mil obras do artista plástico carioca Hélio Oiticica (1937-1980), na casa de seu irmão César Oiticica, no Jardim Botânico, zona sul do Rio, provocou não só reações no meio artístico brasileiro como internacional. O crítico inglês Guy Brett, responsável pela primeira exposição internacional do artista, realizada há 40 anos na Whitechapell Gallery de Londres, lamentou a tragédia que consumiu obras daquele que considera o grande renovador da arte brasileira do século 20, entre elas parangolés (capas) originais, para ele a maior das invenções de Oiticica.
Brett, um dos críticos mais respeitados da Inglaterra, responsável pela difusão europeia da obra de Oiticica como também do trabalho de Lygia Clark e Mira Schendel, classificou a perda das peças “uma tragédia não só para o Brasil como para todo o mundo, tratando-se de um dos artistas mais importantes do século 20”. Sem culpar o irmão de Oiticica, responsável pela conservação dos trabalhos do artista, Brett lamentou a ausência de um programa estatal para aquisição de obras contemporâneas. Em sua opinião, elas deveriam estar em museus, não nas casas de herdeiros de criadores de fundamental importância para a história da arte, como Lygia Clark e Mira Schendel, cujas obras estão nas mãos de seus filhos.
“Não se pode culpar César por negligência, pois ele, como arquiteto, estava tentando adaptar a casa para abrigar o acervo, mas, por outro lado, o armazenamento de obras em locais seguros é um problema que a família tem de resolver, ou por meio de uma fundação ou instituições capazes de garantir a integridade desses trabalhos.” Brett não considera que a destruição de grande parte das obras de Oiticica possa comprometer o entendimento futuro desse trabalho pioneiro, que começa ligado ao movimento neoconcreto brasileiro, nos anos 1950, e ganha dimensão internacional com a exibição, nos anos 1970, dos penetráveis (ambientes), que anteciparam a onda de instalações em todo o mundo.
“A destruição física das obras não significa, no caso de Oiticica, o fim desse trabalho, até mesmo porque ele via a atividade artística como uma atividade poética”, observa Brett. No entanto, ele discorda de quem associa a existência corpórea das obras do artista um fetiche para ser explorado pelo mercado. O próprio Oiticica, lembra, permitiu a construção de réplicas de alguns trabalhos – inclusive um bólide de Brett, que se quebrou no apartamento do crítico em 1968, quando ele preparava a exposição da Whitechapell, reconstruído de acordo com instruções transmitidas por carta pelo artista.
Há dois anos, porém, Brett escrevendo no jornal online da Tate Modern, observou que a reprodução dos parangolés e dos ambientes de Oiticica é uma outra história. Brett não conseguiu autorização do artista para reproduzir o ambiente da exposição na Whitechapell, em 1969, em outras capitais europeias. Sobre os parangolés, ele certamente tinha outra opinião. Alguns remanescentes de uma performance pública realizada no Recife há 30 anos pertencem hoje à coleção do galerista Paulo Kuscinsky. Brett lembra que, no caso particular de Oiticica, a questão da reprodução do trabalho ganha outra dimensão em se tratando de um artista preocupado com o destino de suas obras. Ele mesmo supervisionou a construção dos parangolés do Recife, cuidando que fossem presos por alfinetes de segurança para serem reutilizados por diversos participantes da performance.
Kuscinsky conta que esses parangolés – dez exemplares “vintage”, como os define – foram guardados pelo artista recifense Paulo Bruscky, que, a exemplo de Oititica, se envolveu com arte experimental (performances, instalações, vídeos) nos anos 1970. O marchand já teve chances de vender os parangolés para colecionadores particulares, mas considera que são obras destinadas a instituições. “O lugar deles é numa Tate ou num instituto como o Itaú, que digitalizou grande parte da obra do Oiticica”, sugere.
Concordando com o crítico Guy Brett sobre a guarda de obras fundamentais em museus e fundações, Kuscinsky diz que os herdeiros dos artistas constituem, hoje, um entrave para a difusão da obra dos contemporâneos, dificultando a reprodução de imagens dos trabalhos, o empréstimo de peças para exposições e, principalmente, exercendo o papel de curadores. “Acho sintomático que a primeira informação logo após o incêndio tenha sido o valor dos prejuízos, em torno de US$ 200 milhões, como se o Oiticica fosse uma fábrica.
Com certeza não foi. O artista enfrentou sérias dificuldades para sobreviver em Nova York nos anos 1970. Hoje, porém, essa obra é disputada por grandes museus internacionais. O próprio Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), que tem obras de Oiticica em seu acervo, estava negociando, segundo um marchand paulista, a compra de O Grande Núcleo – três obras penduradas no teto que formam um labirinto para ser penetrado. Ele foi exposto apenas uma vez no Rio e queimado junto a outras obras no incêndio de sexta-feira.
A informação de que 90% do acervo guardado na casa do Jardim Botânico foi destruído não é verdadeira, segundo o cineasta Neville d”Almeida, parceiro de Oiticica em alguns trabalhos fundamentais como a série Cosmococa, que usa imagens de ícones da cultura pop (Marilyn Monroe, Jimi Hendrix) associadas a carreiras de cocaína. “Ajudei a tirar o material queimado da casa e posso afirmar que grande parte dos desenhos e dos metaesquemas foram salvos”, diz Neville, criticando a histeria midiática em torno do incêndio. “Trataram o Hélio com se fosse um artista renascentista, quando ele foi um criador de conceitos, de propostas, de intervenções, um artista do futuro, não de um passado neoconcreto, que ficou lá atrás, como definiu Ferreira Gullar, reduzindo a dimensão de um dos inventores da arte contemporânea.”
Predomina, diz Neville, um tom “melodramático” sobre o destino da obra de Oiticica, que, segundo ele, está bem preservada em museus internacionais dos EUA, Inglaterra, Espanha e em institutos como Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais, que tem penetráveis e uma Cosmococa de Oiticica (a de Jimi Hendrix). Segundo informações de uma galerista de São Paulo, Inhotim havia comprado recentemente cinco relevos espaciais, que foram destruídos no incêndio. Ainda de acordo com Neville, outra Cosmococa será exibida na mostra de um museu americano de São Francisco em novembro. Há também obras em comodato fora do País e outras, conceituais, que podem ser recriadas, diz o cineasta, lembrando que todo o acervo está digitalizado e disponível no site do Itaú Cultural.
A galerista Nara Roesler, que já vendeu uma instalação de Oiticica para o Museu Walker de Minneapolis (EUA), provou que as instruções deixadas por Oiticica para a construção de seus projetos podem fazer mais pela preservação de sua obra, ao adaptar há três anos sua galeria para receber a piscina da Cosmococa CC4 Nocagions (1993), criação de Oiticica e Neville d”Almeida. Não vendeu, mas causou sensação na última feira de arte em Basel. Em tempo: o preço é salgado. Algo em torno de US$ 500 mil, quase quatro vezes mais que um metaesquema, que está por volta de US$ 150 mil. Oiticica nunca viu esses valores em vida.
Esses preços elevados levam galeristas a buscar compradores no mercado internacional. E é o que já estão fazendo há algum tempo alguns deles. Com exceção de Inhotim, poucas instituições e museus brasileiros têm poder de fogo para bancar a aquisição dessas peças. “Não existe uma política de aquisição de obras de arte no Brasil, o que explica o fato de uma pintura fundamental do modernismo brasileiro, a tela Abaporu, de Tarsila, estar hoje na coleção do Malba argentino”, critica o galerista André Milan.
Milan concorda com os que defendem a guarda de obras importantes como o de Oiticica por instituições públicas ou fundações privadas. “Legalmente, elas pertencem aos herdeiros, à família, mas não podemos esquecer que estamos falando de um patrimônio da humanidade, que deve ser preservado.”
Numa entrevista sobre o artista, o poeta Haroldo de Campos ressaltou que era impossível entender Oiticica sem se compreender Malevitch ou Mondrian. Com o incêndio que destruiu parte de sua obra, é possível acrescentar: sem ele, dificilmente alguém vai entender tudo o que veio depois. Oiticica foi, antes de tudo, profeta.
Antonio Gonçalves Filho