As primeiras páginas de Adivinhadores de Água (CosacNaify, 208 págs., R$ 45) causam certa desolação. Ao embrenhar-se nos vãos e desvãos do cinema brasileiro, o diretor e montador Eduardo Escorel decifra o mecanismo de auto-ilusão que há anos move a produção nacional. E indaga: “Haverá lugar no universo audiovisual brasileiro para a produção de filmes de ficção de longa-metragem?”
Ciclos.
Para Escorel, desde O Guarani ,1920, os filmes carecem de legitimidade culturalCom coragem e perspicácia, o autor expõe o que seus pares ocultam – ou não enxergam – e torna imperativa a reflexão. Conforme a leitura avança, a desolação se dissipa e Adivinhadores de Água se impõe como uma estimulante análise. “O cinema brasileiro vive se auto-iludindo. Isso acaba por se reverter contra nós mesmos. Os impasses perduram porque temos dificuldades em tocar nas nossas feridas”, diz Escorel.
Diretor de 19 filmes, entre eles o recém-concluído Vocação do Poder (em parceria com José Joffily), montador de outros 11, incluindo Terra em Transe (Glauber Rocha) e Cabra Marcado para Morrer (Eduardo Coutinho), e professor de direção na PUC-RJ, o autor vive de cinema há quatro décadas. Mas, apesar das amizades e dos trabalhos, topou se expor e reunir em livro oito artigos que põem em xeque desde a “viciosa dependência” do protecionismo estatal até a obra de Glauber
“Não é muito fácil, não… Mas é uma tentativa de propor uma reflexão que, até hoje, não encontrou muito eco entre os meus colegas. Enquanto não tivermos coragem de lidar com certas questões, o cinema viverá de recomeço em recomeço”, explicou Escorel, numa breve conversa com CartaCapital. Neste ponto da sua fala, o corte se impõe. É hora de voltar a folhear Adivinhadores de Água.
O sentido da obra começa no título, referência ao andarilho que corria Alagoas e se apresentava como um “adivinhador de água” capaz de, em troca de alguns tostões, apontar o lugar certo para que um poço fosse cavado. “Em meio às condições mais adversas surgem ‘adivinhadores de água’, redutos isolados de criatividade e talento.” Entre os adivinhadores dos últimos anos, cita Tata Amaral, de Céu de Estrelas, a dupla Lírio Ferreira e Paulo Caldas, de Baile Perfumado, e o documentarista Paulo Sacramento com seu Prisioneiro da Grade de Ferro.
Mas Escorel sabe que eles perigam desaparecer pelo caminho, como sumiu o homem que vaticinava poços. A dificuldade de se sedimentar como uma expressão cultural legítima é sina das imagens aqui rodadas. Neste momento, apesar do grande número de produções, avizinha-se outro ciclo de queda. Se em 2003 foram festejados 22 milhões de ingressos, em 2004 esse número caiu 30% e, este ano, o cenário não é nada promissor. Nem mesmo a aposta comercial O Casamento de Romeu e Julieta acelerou a caixa registradora das salas. Há cinco semanas em cartaz, a comédia de Bruno Barreto, lançada em 209 salas, fez 798 mil espectadores. Em 2004, Cazuza, lançado com 152 cópias, fez 3 milhões de ingressos.
Entre os filmes de orçamentos modestos, a situação é mais grave. Além de padecer para conseguir distribuição, os títulos têm sido pouco vistos. Jogo Subterrâneo, de Roberto Gervitz, vendeu 13 mil ingressos em três semanas, e Cabra-Cega, de Toni Venturi, fez 4 mil espectadores, em oito salas, no fim de semana de estréia. Ambos, vale ressaltar, tiveram boa cobertura da mídia e não puderam se queixar das críticas.
“Hoje, a mídia abre espaços generosos para qualquer evento ligado ao cinema brasileiro. E alimenta a sensação, talvez ilusória, de que esteja havendo um florescimento”, escreve Escorel, sem referir-se a nenhum título específico. Ainda sobre a mídia, ele observa que, a partir de 1996, a imprensa, para surpresa de quem havia se acostumado ao desprezo pelo cinema brasileiro, aderiu a um certo triunfalismo.
“Esse estado de espírito atingiu seu paroxismo quando O Quatrilho, de Fábio Barreto, foi indicado para concorrer ao Oscar. O diretor do filme teve até sua fotografia publicada envolta na bandeira nacional!” Mas, se há nacionalismo nos elogios fáceis e no apoio da Globofilmes, permanece vivo o “mimetismo” – seja do cinema americano, seja da tevê –, principalmente entre as grandes produções.
Revisão.
Glauber e seu “radicalismo vazio”“Filmes brasileiros, hoje, podem ser falados em inglês, querem ser cosmopolitas, copiam gêneros padronizados”, acorre Adivinhadores de Água. Escorel questiona: “O cinema brasileiro tem mesmo um estilo? (…) Só a televisão brasileira conseguiu criar, com as novelas, um formato, uma linguagem e uma temática capazes de entrar em sintonia, todas as noites, com milhões de pessoas. Mas esses folhetins são, por excelência, anticinematográficos. Seria esse o nosso ‘estilo nacional’”?
O descompasso entre o cinema e o público, entre o cinema e a história cultural do País, pode ser diagnosticado também no texto A Décima Musa – Mário de Andrade e o Cinema. Apesar de freqüentador do Bijou Theatre, em São Paulo, o modernista nunca enxergou o cinema nacional como uma linguagem, mas apenas como meio de registro técnico. Andrade (1893-1945) pode ter falhado ao não atentar para Humberto Mauro ou Mário Peixoto, mas tinha lá a sua razão.
Nos anos 20 e 30, dominado por filmes de exaltação patriótica (como as várias versões de O Guarani), o cinema ficou ausente da “eclosão e dos desdobramentos iniciais do modernismo”, como anota Escorel, para em seguida pontuar: “Ao contrário do modernismo, do qual temos um rico acervo de obras, nossa produção cinematográfica praticamente desapareceu por completo ao longo dos anos”.
Como se vê, não é só na produção que o cinema brasileiro se habituou a um “eterno recomeçar”. Dada a falta de preservação, com a memória também é assim. “Sem cinema, fica faltando algo de essencial no desenho da nossa fisionomia cultural. O modernismo terá fracassado se não houver produção regular de filmes no Brasil”, acerta em cheio Escorel.
Não à toa, o livro detém-se sobre três figuras que tentaram perpetuar em imagens a feição nativa: Glauber Rocha (1938-1981), Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988) e Leon Hirszman (1938-1987). Cada qual com seu modo de pegar a câmera e seu feitio, os três pensaram o cinema como um projeto – de vida e de nação. Não se sabe se por fatiga ou por acaso, morreram todos cedo.
Montador de Terra em Transe (1964) e de O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1967), Escorel exalta a personalidade de Glauber e o define como um cometa dotado de luz própria, uma “estrela parabólica”, mas não se esquiva de apontar as deficiências cinematográficas da grande figura do Cinema Novo. Define O Dragão… como um “pastiche” e afirma que, depois de Terra em Transe, todos os projetos de Glauber eram “a concretização de um radicalismo vazio”.
Nos textos lampejantes do cineasta, Escorel flagra o paradoxo que, ainda hoje, os cineastas carregam nas costas. “Como poderiam coexistir a modernização capitalista iniciada no governo JK e o projeto, formulado por Glauber Rocha, de um cinema antiindustrial, não comercial, em que falhas de comunicação eram atribuídas ao espectador e não ao filme?”
Mas em Glauber havia ideal e nos anos 60 a produção nacional vicejou. Foi a partir de 1964 que esses conflitos entre cinema e Estado se acentuaram. “A tática de sobrevivência que se impôs oscilou entre o cinema marginal, ignorado pelo público, e um pacto com o Estado autoritário, que levou a uma produção considerável de filmes”, relata Escorel. Sem público cativo e ainda dependente de um Estado que queria virar liberal, o cinema terminou a década de 80 agonizante.
Veio então o violento fim da Embrafilme (1969-1990), levado a cabo por Fernando Collor. Escorel, outra vez, desalinha-se dos colegas e escreve (em texto de 1990) que o fim da empresa, cuja imagem estava em “frangalhos”, era inevitável. “Que isso possa ter acontecido dessa forma, indica a fragilidade e a artificialidade da base sobre a qual o cinema estava apoiado (…) Mas cegos pelo favorecimento estatal, os profissionais não captaram os sinais claríssimos de que os subsídios estatais haviam deixado de ser reconhecidos como socialmente legítimos.”
Cinco anos depois, um novo auxílio é engendrado: a Lei do Audiovisual, até hoje em vigor. “O princípio do incentivo tem a sua importância, mas não pode se perpetuar. Se o incentivo não pode acabar é porque há algo errado, é porque é uma produção artificial. Apesar de ninguém querer admitir isso, a verdade é que a conta não fecha”, diz Escorel, na entrevista.
O complemento de seu texto traz: “Uma cinematografia não pode ser o resultado apenas do desejo de quem faz filmes. Ela só será necessária se for uma expressão cultural legítima; quando estabelecer um vínculo profundo com o público; quando, para existir, não depender de favores fiscais e da boa vontade dos governantes”. A leitura de Adivinhadores de Água é, sem dúvida alguma, necessária a todos os que acreditam que o cinema brasileiro é, e sempre será, necessário.
Por Ana Paula Sousa