Todo artista sério questiona a si mesmo sobre a validade daquilo que faz. Artistas menos sérios endereçam suas dúvidas aos outros e esperam a resposta para ver como é que as coisas devem ser tendo em vista satisfazer a expectativa do público. Samir Yazbek nos apresenta um desses diálogos interiores travados no campo de batalha da consciência. Em A Entrevista há uma escritora “consagrada” em foco e a sua fala é, a um só tempo, a da impotência criativa e a do desejo de encontrar novo repertório para a representação literária. Nada do que diz se refere ao entorno da literatura, ou seja, aos seus meios de produção e divulgação ou aos problemas da recepção. Com absoluta candura, o texto concentra-se sobre o impulso criador.
Há nessa viagem interior um centro dramático bem definido, de ressonância histórica, que a peça expõe como causa provável da paralisia criativa. A literatura demorou-se contemplando a subjetividade para, por meio dela, entrever o que há de universal na condição humana. Foi um procedimento eficiente para nomear as limitações dos seres humanos e limpar o caminho das fantasias de onipotência com que artistas e público muitas vezes se consolam mutuamente. Nesta peça, o enunciado lúcido da protagonista considera essa tarefa realizada. Assim, a crise que vivencia é a de transição para uma nova etapa de produtividade em que não interessa repisar o tema de impotência. Sem alvo indistinto, seria “algo que apontasse para além desse eterno voltar-se para si mesma à procura de um sentido”.
Ainda que o alvo da comunicação seja o outro, a natureza monológica dessa autocrítica determina a forma da peça. Ao intercalar ao pensamento da artista recursos dialógicos, Samir Yazbek sacrifica a limpidez do enunciado. Uma personagem tão fundamente enraizada nas suas convicções, tão simples no seu desejo de comunicação transitiva e tão íntegra na sua recusa das seduções da fama não poderia reagir como faz às provocações das técnicas banais da entrevista televisiva.
O fato é que a construção da personagem do entrevistador tem uma dubiedade que torna as intervenções, além de intrusivas, pouco esclarecedoras. Um ex-amante que emprega expedientes duvidosos para forçar um encontro já não tem muita credibilidade como entrevistador. Além disso, as questões que propõe não o qualificam como um companheiro de aventuras intelectuais no passado. Em confronto com a convidada do programa parece-nos francamente tolo.
Teria sentido a inocuidade do entrevistador se o objetivo da peça fosse expor o uso e abuso que os meios de comunicação fazem da vida pessoal dos artistas. Mas não se trata disso, porque, apesar de reclamar brandamente de perguntas invasivas, dando à situação dramática algum atrito e titulares de verossimilhança, a artista não se desvia por essa vereda marginal da vida literária. As perguntas proporcionam pausas reflexivas ou indicam etapas do pensamento. Se fossem menos tolas ou simplesmente inexistentes, parece-nos, o solilóquio tomaria o mesmo rumo.
No teatro, as perguntas só interessam quando revelam alguma coisa sobre a personagem que as faz, ou seja, quando essa personagem tem um desenvolvimento que não é apenas reflexivo. Não é o caso desta peça em que o assunto é uma reflexão ética sobre o fazer artístico. Do ponto de vista estrutural, o silêncio da interlocução seria mais revelador e, como recurso meramente cênico, permitiria materializar a solidão desse momento de crise. Basta lembrar que nos esplêndidos programas televisivos comandados por Fernando Faro, a pergunta inaudível tem um efeito dramático intenso porque, antes das respostas, os telespectadores vêem a articulação do pensamento moldando a expressão facial do entrevistado.
Tal como se apresenta, no entanto, apoiado no suporte frágil de uma interlocução que mais interrompe do que estimula a reflexão, o texto se engrandece graças ao extraordinário trabalho de interpretação de Ligia Cortez. Atriz de muitos recursos vocais e físicos, é uma presença rara nos palcos paulistanos, mas, cada vez que aparece, faz lembrar um estilo de atuação um pouco fora de moda, que punha à prova a versatilidade do intérprete para veicular a personagem e deixava em segundo plano a personalidade e a habilidade técnica.
Nesta peça, em que a tarefa é evidenciar um processo introspectivo, a atriz praticamente se desfaz do corpo. Deixamos de vê-la após algum tempo porque vai recuando para uma camada mais profunda da psique, cada vez mais intrigada com seus pensamentos, inconsciente da visibilidade, e, portanto, invisível. Para conduzir esse desprendimento das circunstâncias há, sobretudo, uma inflexão que privilegia a inteligência, que pesa cada palavra impregnando-a de solidez significativa. Há uma melodia única no discurso, que é a da melancolia de uma crise prolongada, mas há ao mesmo tempo uma força serena na emissão das frases, porque se trata de uma personagem que enfrenta um problema criativo sem fugir pela tangente.
(194 lug.). R. Dep. Lacerda Franco, 333, 3814-0100. 6.ª, 21h30; sáb., 21h; dom., 20h. R$ 20. Até 1.º/5
crítica
MARIANGELA ALVES DE LIMA