Há 85 anos, morria o “poeta da Vila”, Noel Rosa

No dia 4 de maio se completam 85 anos da morte de Noel Rosa, um dos maiores nomes do samba

Noel Rosa, o poeta da Vila, foi um dos mais importantes compositores da música popular brasileira. Sua obra é vasta, abrange mais de 250 composições, uma frenética produção para um autor morto aos 26 anos de idade.
Foi uma revolução o que a obra de Noel causou à música popular brasileira. Ele começou sua carreira influenciado pelo som nordestino, sucesso no Rio de Janeiro desde o final dos anos 1920. Desse modo suas primeiras músicas eram emboladas (um gênero nordestino). Em seguida ele fez canções sertanejas e finalmente chegando ao samba.

A obra de Noel mostrou um autor que trouxe uma nova profundidade ao samba, unindo melodias marcantes com letras críticas e bem humoradas sobre o cotidiano, política, o jogo do bicho, a pobreza e as dores do amor. Algumas de suas maiores composições incluem “Com Que Roupa?”, “Pierrô Apaixonado”, “Palpite Infeliz”, “Feitiço da Vila”, Último Desejo”, “Conversa de Botequim” e “Feitio de Oração”.

A infância

Noel de Medeiros Rosa nasceu em 11 de dezembro de 1910 no Rio de Janeiro. Ele nasceu de um parto muito difícil e complicado, com a necessidade do uso de fórceps pelo médico obstetra, como medida para salvar as vidas da mãe e do bebê. Segundo relatos foi o fórceps que lhe fraturou e afundou o maxilar inferior, provocando também paralisia parcial do lado direito de seu rosto. Ele fez cirurgias aos seis anos e depois aos doze, mas a ortopedia da época não ajudou e Noel teve que conviver com este defeito em sua face.

Durante toda sua vida viveu na Rua Teodoro da Silva 130, no bairro carioca de Vila Isabel, filho do comerciante Manuel de Medeiros Rosa e da professora Martha de Medeiros Rosa.

Na juventude aprendeu a tocar o bandolim de ouvido. Em seguida passou ao violão e se aos poucos ganhou fama de músico em Vila Isabel. As primeiras apresentações de Noel foram no bar Ponto de Cem Réis, ponto de encontro dos “rapazes folgados” do bairro. Lá Noel conheceu a boemia, fazendo as primeiras serenatas e vivendo suas primeiras aventuras amorosas.

O Bando de Tangarás

Em 1929 Noel se juntou a um grupo que estava se formando, o Bando de Tangarás, que incluía o cantor Almirante (Henrique Foréis Domingues), Carlos Braga (depois conhecido como João de Barro), Henrique Brito e Alvinho (Álvaro Miranda Ribeiro). Em maio desse ano fazem suas primeiras gravações: a embolada “Galo Garnizé” e o cateretê “Anedotas”, ambas compostas por Almirante. E em 27 de junho Noel apresenta suas primeiras composições: a embolada “Minha Viola” e a toada “Festa No Céu”, ambas influenciadas pela moda sertaneja então muito popular.

Naquela época cantar em rádio ou gravar discos não era considerada uma atividade séria, era brincadeira ou coisa de gente excêntrica que queria aparecer. Por causa disso o Bando de Tangarás, para se diferenciar da “gente de rádio” só se apresentava de graça, recusando até o reembolso dos custos de transporte.

No final de 1929 Noel compõe o seu primeiro grande clássico, “Com Que Roupa?”, que ele grava e se torna o seu primeiro disco solo. Foi gravada em 1930 visando o carnaval do ano seguinte. Foi um grande sucesso, vendendo mais de 15.000 discos.

“Agora vou mudar minha conduta,
Eu vou pra luta pois eu quero me aprumar
Vou tratar você com a força bruta,
Pra poder me reabilitar
Pois esta vida não está sopa e eu pergunto: com que roupa?
Com que roupa eu vou pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou?

Agora, eu não ando mais fagueiro,
Pois o dinheiro não é fácil de ganhar
Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro,
Não consigo ter nem pra gastar
Eu já corri de vento em popa, mas agora com que roupa?
Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou?

Eu hoje estou pulando como sapo,
Pra ver se escapo desta praga de urubu
Já estou coberto de farrapo, eu vou acabar ficando nu
Meu terno já virou estopa e
Eu nem sei mais com que roupa
Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou”

 

“Com Que Roupa?” já contém as principais características da obra de Noel. A letra apresenta dilemas humanos, repletos de ironia, humor e sofrimento, numa linguagem coloquial e curta. Noel segue um modelo de sincopas produzida pela turma do morro, do Estácio, distante do formato do maxixe produzido na cidade. Essa canção foi depois regravada por uma infinidade de cantores, desde Aracy de Almeida e Nelson Gonçalves a Gilberto Gil, Zeca Pagodinho e Joyce.

Mesmo com o sucesso solo Noel continuou tocando e gravando com o Bando de Tangarás até 1933. A banda acabou ficando pequena para Noel, já que ele dividia o espaço com composições de Almirante, Braguinha e outros. O grupo deixou um legado de 34 discos de 78 rotações com 63 músicas lançadas pelas gravadoras Odeon, Victor e Parlophon.

Música ou medicina?

Em 1931 Noel entrou na faculdade de medicina. Mas logo ele percebeu que a carreira demandava uma vida de estudos incessantes, que exigiria toda sua atenção. Ele logo concluiu: “eu deveria continuar com o samba, deixando a medicina? Ou devia renunciar ao samba? (…) Colocado a contingência de optar, uma vez que as duas atividades não podiam ser conciliadas, escolhi o samba”. Em 1932 já não frequentava mais as aulas. Mas aproveitou a experiencia para escrever um “samba anatômico”:

“Coração
Grande órgão propulsor
Transformador do sangue venoso em arterial
Coração
Não és sentimental
Mas, entretanto, dizem
Que és o cofre da paixão
Coração
Não estás do lado esquerdo
Nem tampouco do direito

Ficas no centro do peito eis a verdade!
Tu és pro bem-estar do nosso sangue
O que a casa de correção
É para o bem da humanidade”

Só nesse ano de 1931 Noel gravou mais de vinte músicas, de letras exuberantes e inventivas como “Cordiais Saudações”, “Gago Apaixonado” e “Mulata Fuzarqueira”.

A era do rádio

As primeiras emissoras de rádio no Brasil surgiram em setembro de 1923, Rádio Sociedade e em outubro de 1924, Rádio Clube do Brasil. No início dos anos 30 já eram cinco rádios. Em 1932 Noel foi contratado como contra regra na Rádio Philips, no programa de Ademar Casé. Numa pequena sala na Rua Sacadura Cabral comprimiam-se locutor, diretor, equipe técnica, cantores e compositores. Noel também cantava no programa, apesar de sua voz fraca, num tempo em que reinavam os vozeirões de Francisco Alves e Vicente Celestino.

Em 1935 Noel foi para a Rádio Clube do Brasil junto com seu amigo Almirante, fazendo o programa humorístico Conversa de Esquina, montado com piadas copiadas de revistas e almanaques. Fez também uma paródia, “O Barbeiro de Niterói”, baseado na ópera de Rossini. O sucesso do programa o incentivou a compor outras revistas radiofônicas, sempre parodiando composições populares de sucesso.

Parceiros

Noel compôs muitas de suas canções junto com outros parceiros. O mais importante deles foi Oswaldo Gogliano, o Vadico. Vadico era um compositor e pianista de formação erudita que estudou com o maestro Mario Castelnuovo-Tedesco. Conheceu Noel em 1932 por intermédio de Eduardo Souto, nos estúdios da gravadora Odeon. De imediato Noel colocou letras em “Feitio de Oração”, seguida por parcerias notáveis como “Feitiço da Vila”, “Pra que Mentir”, “Conversa de Botequim”, “Cem Mil Réis”, “Só Pode Ser Você” e “Provei”.

Outros colaboradores importantes de Noel foram Lamartine Babo (“Eu queria um Retratinho de Você”), Hervê Cordovil, Heitor dos Prazeres, Rubens Soares (“É Bom Parar”) e Orestes Barbosa (“Positivismo”).

Paixões

Noel teve muitas namoradas e foi amantes de muitas mulheres casadas. Várias delas inspiraram suas músicas. Em 1934 casou-se com Lindaura, uma moça da alta sociedade carioca. O casamento só aconteceu mesmo por pressão da mãe da moça pois na época ela tinha apenas 13 anos. Casou-se grávida, mas perdeu a criança alguns meses após o casamento. O enlace não mudou a vida de Noel. A única coisa que fez foi trocar sua cama de solteiro por uma cama de casal. Continuou morando na Vila Isabel.

Mas a verdadeira paixão do compositor foi uma dançarina de cabaré, Ceci ou Juraci Correia de Araújo. Para ela ele compôs “Dama do Cabaré”. O relacionamento foi bastante conturbado, com muitas brigas. Noel, em um acesso de ciúmes, compôs “Pra que Mentir?”.

Últimos dias

Por causa da depressão causada pela separação de Ceci Noel passou os anos seguintes lutando contra a tuberculose. Apesar de temporadas para se recuperar em Belo Horizonte e Nova Friburgo, Noel viria a falecer no dia 4 de maio de 1937 em sua casa, no bairro de Vila Isabel, cercado por sua inseparável mãe Martha e por Lindaura.

A obra de Noel é uma representação das transformações sociais e culturais que ocorreram no Brasil na década de 30. Foi o compositor que uniu o samba feito no morro com a realidade do “asfalto”, ou da classe média do Rio de Janeiro, um mediador de culturas contrastantes.

Em 2000 foi lançada pela gravadora Velas uma caixa de 14 CDs, “Noel Pela Primeira Vez – 229 Gravações de Noel Rosa Em Suas Versões Originais”,

No bairro de Vila Isabel há uma estátua do músico em uma mesa de botequim e a partitura de “Feitiço da Vila” estampada em uma das calçadas do bairro.

Feitiço da Vila (Noel Rosa/Vadico):

“Quem nasce lá na Vila
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba
Que faz dançar os galhos
Do arvoredo e faz a lua
Nascer mais cedo

Lá, em Vila Isabel
Quem é bacharel
Não tem medo de bamba
São Paulo dá café
Minas dá leite
E a Vila Isabel dá samba

A vila tem um feitiço sem farofa
Sem vela e sem vintém
Que nos faz bem
Tendo nome de princesa
Transformou o samba
Num feitiço decente
Que prende a gente

O sol da Vila é triste
Samba não assiste
Porque a gente implora
Sol, pelo amor de Deus
Não vem agora
Que as morenas
Vão logo embora

Eu sei por onde passo
Sei tudo o que faço…”

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