Zé Kéti, o samba tem opinião

 

Este artigo foi escrito em 2003 para um espetáculo musical organizado pelo Congresso Nacional Afro-Brasileiro – CNAB, em homenagem à obra do Mestre Zé Kéti, que fez parte das comemorações dos 50 Anos da Petrobrás. Noca da Portela, os Democráticos de Guadalupe, o flautista Cláudio Camunguelo, o gaitista Themístocles Mesquita se esmeraram na parte musical, que teve apresentação de Jorge Coutinho, na Lona Cultural de Guadalupe, no Rio de Janeiro.

“Eu sou o Zé Kéti da Portela/ E vim trazer o meu samba,/ Da forma mais autêntica,/ Ao querido e amigo,/ Povo brasileiro”.

Esta auto-definição de Zé Kéti, então aos 61 anos de idade, na abertura do LP “Zé Kéti”, lançado em 1982, é a que mais se aproxima da realidade, ao olharmos a sua trajetória. Sambista, autêntico, portelense, dono de uma obra dedicada com carinho ao povo brasileiro.

Filho de Josué Vale de Jesus, um marujo, tocador de cavaquinho, que participou com João Cândido, o Almirante Negro, da histórica Revolta da Chibata, quando os marinheiros revoltosos aprisionaram a esquadra e sitiaram o governo brasileiro para por fim aos castigos que lhes eram impostos pela Marinha, ainda em 1910, 21 anos depois de proclamada a Abolição da Escravatura, Zé Kéti levaria consigo a capacidade de se indignar contra injustiças e se organizar para alcançar seus objetivos, tudo associado a um grande poder de comunicação.

Nascido em Inhaúma, depois de residir em Maria Clara, a partir de 1939, Zé Kéti mudou-se para Bento Ribeiro e encontra na Portela um ambiente naturalmente propício ao desenvolvimento de suas qualidades de aglutinador.

A Portela é, sem dúvida, das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, a que deu maior contribuição à consolidação do samba e das Escolas, tal como a conhecemos hoje, e, consequentemente, talvez tenha sido o principal celeiro de sambistas com capacidade de organização.

Portela

Surgida numa região semi-rural nos idos dos anos 20, quando, em função das reformas do Centro da cidade e da migração interiorana, os morros e os subúrbios, acompanhando a linha do trem, começaram a ser ocupados pela população, a Portela era uma comunidade de trabalhadores.

Neste período destaca-se a figura de Paulo da Portela, lustrador de móveis que percebendo a necessidade da “legalização” do samba nos desfiles de Carnaval, o que na época era privilégio de ranchos e sociedades, procurava revestir a arte do povo de um caráter educativo. Esta preocupação o levou, alguns anos depois, em 1939, a compor o samba “Teste ao Samba”, quando a Portela veio fantasiada de acadêmicos e Paulo representava o professor. Este é considerado por muitos o primeiro samba-enredo.

“A alegoria principal era um gigantesco quadro negro, a exemplo das salas de aula, com os dizeres: Prestigiar e amparar o samba, música típica e original do Brasil e incentivar o povo brasileiro”, segundo Marília Barboza e Lygia Santos no livro “Paulo da Portela – Traço de união entre duas culturas”.

Justiça seja feita ao Estácio, que um pouquinho antes havia criado o samba para ser cantado em movimento, marchado, inclusive com introdução do surdo para marcação, evoluindo então o samba das rodas de batucada para o desfile linear, como hoje é visto na Avenida. No entanto, a “Deixa Falar”, a Escola dos bambas do Estácio, teve vida efêmera, durou apenas 4 anos, e em 1932, após uma tentativa de desfilar como rancho, sucumbiu.

A Portela liderou a organização própria de Escola de Samba, com samba e enredo integrados. A introdução das alegorias, e mesmo a criação da comissão de frente, surgida originalmente como acoplamento de um time de futebol local ao desfile da então “Quem Nos Faz é o Capricho”, antecessora da “Vai Como Pode”, nascida na Estrada da Portela, coube ao pessoal de Oswaldo Cruz.

Árvore frondosa e a caminho do centenário, a Portela haveria de dar frutos, galhos e ter seus cismas. Nisso aí revelou-se também a capacidade organizadora da comunidade portelense. De lá saíram pelo menos duas outras Escolas. A primeira, o Grêmio Recreativo de Artes Negras Quilombo, sob a liderança de Candeia, e o Grêmio Recreativo Escola de Samba Tradição, sob a liderança de Nésio do Nascimento, com apoio de João Nogueira e outros sambistas de peso. Sem falar que dissidentes da Portela unidos ao “Prazer da Serrinha”, originaram a Império Serrano.

Com Nelson Pereira dos Santos e Jece Valadão, durante as filmagens de “Rio 40 Graus”

Samba na origem do Cinema Novo

No ano de 1955, Zé Kéti já tinha músicas gravadas por Linda Batista e Ciro Monteiro e seu samba “Leviana”, lançado como samba de terreiro na Portela, havia sido gravado e feito sucesso em 1954, na voz de Jamelão. O encontro do sambista com o cineasta Nelson Pereira dos Santos dá origem ao filme “Rio 40 Graus”, que Glauber Rocha assim definiria mais tarde: “Explodiu o primeiro filme revolucionário do Terceiro Mundo antes da Revolução Cubana”.

Refletindo sobre este que foi seu primeiro filme, no livro de Helena Salem, “Nelson Pereira dos Santos – O sonho possível do cinema brasileiro”, o cineasta afirma: “eu não via nenhum ponto de referência no cinema brasileiro anterior que fosse ao encontro da cultura nacional. A gente estava começando do nada. Em um Brasil de maioria de negros e mulatos, nossos filmes eram brancos”.

“Rio 40 Graus” foi filmado inspirado no neo-realismo italiano, surgido no pós-guerra e que funcionou como crônica de uma Itália destruída. Prossegue o autor: “identificar-se com o neo-realismo significava despojamento de linguagem, fazer cinema ainda em condições difíceis de produção, localizar o momento histórico, a realidade do povo, inclusive utilizando atores não profissionais”.

Sem dúvida, esta era uma posição de vanguarda, considerando-se o período da guerra fria em que se dava, quando milhares de dólares eram despejados por milionários americanos, através da CIA ou através dos Museus de Arte Moderna, para financiar a “arte abstrata” que mascarasse o mundo.

Foram estes os ingredientes do filme que mudou a história da cinematografia nacional: pouquíssimo dinheiro, a ponto de a equipe de filmagem e atores ficarem meses acampados num apartamento na Praça Cruz Vermelha, no Centro do Rio de Janeiro, alimentando-se à base de sanduíches de mortadela e macarrão, feito por eles mesmos nos dias mais fartos; o equipamento era uma câmera fora de uso e abandonada do Instituto Nacional do Cinema Educativo, emprestada por Humberto Mauro, segundo depoimento de Nelson Pereira dos Santos; atores, em sua maioria, não profissionais, escolhidos no Morro do Cabuçu, e a trilha sonora saída da cabeça de um mestre-de-obras da construção civil, o sambista Zé Kéti.

Ilustração: Carlos Amorim

O samba “A Voz do Morro” tornou-se sucesso nacional, transformando-se numa das músicas brasileiras mais gravadas, inclusive no exterior. Evidentemente que o Coronel Menezes Cortes, então Chefe de Polícia de Café Filho, deu sua contribuição a tamanho sucesso, ao proibir a exibição do filme taxando-o de comunista, anti-nacional e contra os costumes, o que desencadeou uma grande mobilização de intelectuais, artistas e estudantes pela liberação do filme.

O jornalista Hugo Sukman, em matéria para O Globo, em 25/04/1999, define o que foi “Rio 40 Graus”: “o primeiro filme de Nelson é a nossa ‘Roma Cidade Aberta’ tropicalizado, autônomo em termos de linguagem, que sintomaticamente, do som do samba ‘A Voz do Morro’, de Zé Kéti, arranjado por Radamés Gnatalli, apresenta a Cidade do Rio de Janeiro em Rio 40 Graus. Ou seja: define logo que o personagem principal do filme é a cidade, que vai sendo mostrada através da trajetória pelo asfalto de cinco meninos do morro atrás da sobrevivência”.

No ano de 1958, Nelson Pereira dos Santos lança o filme “Rio Zona Norte”, desta vez a história é baseada na vida do próprio Zé Kéti. “O sambista ‘Espírito da Luz Soares’, representado por Grande Otelo, vive o drama de ter seus belos sambas vendidos/roubados, ou então divididos em supostas parcerias para conseguir que sejam gravados”, segundo Helena Salen, no livro mencionado. O filme retrata a vida do compositor popular e sua luta em busca de sobrevivência às custas de suas próprias criações. Sobre o filme, David Neves afirmou que “a simplicidade e a pobreza de recursos de ‘Rio, Zona Norte’ são hoje vistas como elementos altamente positivos na reconstrução realista do drama”.

O filme projeta a música “Malvadeza Durão” e consolida Zé Kéti como sambista de sucesso. O jornalista João Máximo, em matéria publicada em 1988, diz que: “desde Ataulfo Alves um sambista não ocupava lugar tão destacado entre outros segmentos da parada de sucessos brasileira. Em pleno auge da bossa nova, sambas de Zé Kéti eram ouvidos tanto quanto os de Tom Jobim, Vinícius de Moraes e João Gilberto, os papas da bossa”.

Segundo Ricardo Cravo Albin, no seu Dicionário da Música Popular Brasileira, as músicas de Zé Kéti seriam temas ainda dos filmes, “A Grande Cidade” (1966), de Carlos Diegues, “A Falecida” (1965), de Leon Hirszman, “O Boca de Ouro”, de Nelson Pereira dos Santos, e “O Grande Momento” (1958), de Roberto Santos.

De volta a Portela

No ano de 1960, Zé Kéti retorna à Portela, depois de um período de afastamento em que andou pelas bandas da vizinha União de Vaz Lobo.

Zé Kéti vence a escolha do samba-enredo. Seu samba “Viagem Pitoresca Através do Brasil”, feito em parceria com Sebastião Balbino, Nilton Batatinha e Carlos Elias, baseado na obra do pintor João Maurício Rugendas, dá o campeonato à Portela em 1962.

No ano seguinte, Zé Kéti compõe dois sambas magistrais, que ficariam definitivamente incorporados ao que de melhor se produziu na azul e branco de Oswaldo Cruz: “Portela Feliz” e “Jaqueira da Portela”, que Paulinho da Viola registraria em inesquecível gravação.

Conjunto a Voz do Morro

A partir do seu retorno vitorioso à Portela e ancorado no prestígio que granjeara no mundo do samba, Zé Kéti organiza o conjunto “A Voz do Morro”, quando, ao lado dos portelenses Jair do Cavaquinho, Oscar Bigode (Diretor de Bateria), o estreante Paulinho da Viola e Zé Cruz, reúne o mangueirense Nelson Sargento, o salgueirense Anescarzinho e o compositor egresso da Aprendizes de Lucas, Elton Medeiros.

Paralelamente sucedem-se encontros desses sambistas na casa de Agenor de Oliveira, o Cartola, na rua dos Andradas, no Centro do Rio. Datam deste período alguns grandes sambas que ainda hoje são referência na Música Popular Brasileira, como “Mascarada” (Elton Medeiros/Zé Kéti), “Diz que Fui Por Aí” (Zé Kéti/Hortêncio Rocha), “O Sol Nascerá” (Cartola/Elton Medeiros), “Recado” (Paulinho da Viola/Casquinha).

Neste período, um dos esforços principais de Zé Kéti era estimular a profissionalização dos sambistas que com ele compunham o conjunto “A Voz do Morro”, e ele estava certo, hoje não há quem ponha em dúvida a qualidade e a importância de Paulinho da Viola, Nelson Sargento e Elton Medeiros.

O Zicartola

“Zicartola era um restaurante, na rua da Carioca, no Rio de Janeiro, onde se comia um angu feito pela Zica (mulher de Cartola) e se ouvia samba: Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Kéti, Geraldo Neves, Padeirinho, Laurindo do Cabuçu, Elton Medeiros, Jorge do Pandeiro, Paulinho da Viola – e o único que não cantava samba e era admitido – João do Vale”. Essa é a definição de Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, para o Zicartola, que transformou-se em cenário do encontro de sambistas, intelectuais, artistas e universitários.

Zé Kéti era uma espécie de mestre de cerimônias do restaurante e além de apresentar novos valores, era o promotor dos sambistas que andavam meio esquecidos, como Nelson Cavaquinho e mesmo o próprio Cartola. Por outro lado, Zé Kéti, então o sambista com maior poder de articulação, travou conhecimento com jovens do CPC da UNE, compondo em parceria com Carlos Lyra o “Samba da Legalidade”, reproduzindo, de certa maneira, o papel de articulador que Paulo da Portela tinha representado para o samba no início do século e que o levou a ser considerado por Marília T. Barboza da Silva e Lygia Santos, no livro “Paulo da Portela- Traço de União entre Duas Culturas”.

“O CPC – Centro Popular de Cultura, ligado à União Nacional dos Estudantes, nasceu em 1960 com o espetáculo “A Mais-Valia Vai Acabar, seu Edgar”, de Oduvaldo Viana Filho, e teve sua curta existência interrompida em 1964 pelo golpe militar. Desenvolveu um intenso programa (teatro, cinema, edições, cursos, seminários, etc.), produzindo, inclusive, o filme ‘Cinco Vezes Favela’, com episódios realizados por Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman,Marcos Farias, Miguel Borges e Carlos Diegues. O CPC teve três diretores, Carlos Estevam (12/61 a 12/62), Carlos Diegues (três meses), e Ferreira Gullar (até 64)”, segundo Fernando Peixoto no livro “Vianinha – Teatro – Televisão – Política”.

O Centro Popular de Cultura da UNE foi resultado de um esforço sincero e louvável de uma parcela da intelectualidade universitária da época em se aproximar do povo para desenvolver uma arte que levasse a uma reflexão mais profunda sobre a realidade brasileira. Dentro disso, consideravam fundamental buscar interação com formas de expressão popular, como literatura de cordel, a música regional e o samba.

Alguns críticos, em nome de um certo ranço puritano, fizeram reparos à aproximação desses jovens de classe média aos compositores populares, em especial à parceria Zé Kéti/Carlos Lyra.

Esquecem-se apenas que foi exatamente essa mesma classe média que entregaria à luta revolucionária, nos anos seguintes, alguns de seus melhores filhos, que não poucas vezes pagariam com a própria vida seu compromisso com a arte, o povo e o País, garantindo com isso, inclusive, a esses “defensores da pureza da música brasileira”, o direito de falar esse tipo de coisa.

Rosa de Ouro

Da confluência alimentada pelo Zicartola surgiria, em 1964, o espetáculo “Rosa de Ouro”, dirigido por Hermínio Belo de Carvalho, protagonizado pelos “Cinco Crioulos”, que, na verdade, era o antigo conjunto “A Voz do Morro” sem a participação de Zé Kéti, que estaria presente apenas com suas composições. O espetáculo seria marcado por dois fatos importantes, o reaparecimento de Aracy Cortes, e a apresentação ao público pela primeira vez de Clementina de Jesus.

No entanto, o grande sucesso da temporada também ali foi urdido e seria, sem dúvida, a primeira manifestação contra a ditadura que se instalara no País: o Show Opinião, título tirado de um samba de Zé Kéti.

Zé Kéti, Nara Leão e João do Vale no Show Opinião

O show Opinião

Organizador do livro “Vianinha – Teatro – Televisão – Política”, Fernando Peixoto situa o Opinião da seguinte maneira: “este merece uma referência maior: dirigido por Augusto Boal, estreou no Rio em fins de 64, dando início às atividades do Grupo Opinião. O espetáculo (roteiro de Viana, Boal, Armando Costa e Paulo Pontes), co-produzido com o Arena de São Paulo, foi uma espécie de ‘show-verdade’ (certamente inspirado nas primeiras experiências de cinema-verdade feitas pelo Cinema Novo), confrontando, a partir de entrevistas e depoimentos dos três intérpretes (Nara Leão, Zé Kéti, João do Vale), três camadas sociais. Uma forma de protesto que teve imediato sucesso e grande repercussão. O grupo foi organizado com um projeto cultural e político definido, conhecendo o peso das conseqüências: resistir”.

Paulinho da Viola e Zé Kéti – Arquivo Nacional

Embora ressaltasse que “a realidade brasileira é imensa demais para solicitar um tipo de espetáculo”, Vianinha admitia que “do Zicartola, das experiências do cinema-verdade, do teatro de rua, dos poetas voltando à poesia oral – surgiu o Opinião, primeiro espetáculo do Grupo Opinião (apresentado em São Paulo em abril deste ano)”.

Se o CPC da UNE não tivesse feito nada, o que não é verdade, durante sua curta existência, a existência do “Opinião” já teria valido à pena.

Embora não existisse mais o CPC, o espetáculo foi montado exatamente em cima da linha de trabalho que tinha sido pautada por aquela organização cultural da juventude.

O show era estruturado em cima de música regional como “Peba na Pimenta” e “Carcará”, de João do Vale e parceiros; literatura de cordel, como “Desafio”, diálogo extraído do livro “Eu sou o cego Aderaldo”; teatro, “Missa Agrária” (trecho da peça musical de Gianfrancesco Guarnieri/Carlos Lyra); música de cinema, com “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha e Sérgio Ricardo; a música folclórica “Incelença”, música de novos compositores como “Boranda”, de Edu Lobo, e sambas como “O Favelado”, “Nega Dina”, “Malvadeza Durão”, “Cicatriz” e “Opinião”, todos de autoria de Zé Kéti, sendo o penúltimo em parceria com Hermínio Belo de Carvalho.

A música “Carcará” virou sucesso nacional e marca registrada de Maria Bethânia, que substituiria Nara Leão no decorrer do Opinião e se transferira da Bahia para o Rio de Janeiro em busca de oportunidade.

O samba “Opinião”, cuja letra dizia: “Podem me bater/ Podem me prender/ Que eu não mudo de opinião/ Aqui do morro eu não saio não/ Se não tem água eu furo um poço/ Se não tem carne/ Eu compro osso/ E boto na sopa/ E deixa andar/ Deixa andar/ fale de mim/ Quem quiser falar/ Aqui eu não pago aluguel/ Se eu morrer amanhã, seu Doutor/ Estou pertinho do céu”, virou uma espécie de hino da resistência contra o cerceamento da liberdade que se abatia sobre o Brasil, naquele ano de 1964.

Embora fosse baseado na realidade vivida por uma parcela da população do Rio de Janeiro, funcionava como uma metáfora perfeita para a situação do País. Possivelmente quando o fez, Zé Kéti partiu da situação das favelas do Rio de Janeiro, que cresciam sua mobilização contra as remoções.

A resistência começou em 1954 com a criação da União dos Trabalhadores Favelados do Morro do Borel. No ano de 1963, é criada a FAFEG (Federação das Associações de Favelas da Guanabara), sob a liderança de Vicente Mariano, presidente da Associação da Vila Proletária da Penha. Exatamente no ano de 1964, realiza-se o 1º Congresso da FAFEG e a luta central dos moradores era contrapor a política de remoções do Governo Lacerda, à transformação das favelas em bairros populares, segundo a “Revista do 4º Congresso de Favelas do Estado do Rio de Janeiro”.

A luta política no Brasil se acirrou nos anos pós-64, na medida em que a resistência também começou a crescer. Assim como houve desaparecimentos, cassações, fechamento de sindicatos e do Congresso, também houve perseguições e, com certeza, algum preço Zé Kéti pagou anos mais tarde por estas suas composições e atitudes que revelam um sambista com consciência social, a ponto de ter ido visitar os exilados brasileiros na embaixada da Bolívia, em 1964.

Zé Kéti é carnaval

O Carnaval cumpriu e cumpre um papel fundamental na evolução do samba e da nossa música. Maior festa popular brasileira e tendo no desfile das Escolas de Samba algo que pode ser denominado por alguns o maior espetáculo da Terra, é fonte de inspiração constante para os nossos compositores.

Sambista completo, Zé Kéti não ficaria de fora da folia, era comum sua participação nos principais certames do reinado de Momo. Fez sucesso com o samba de sua autoria “Amor de Carnaval”, em 1968, quando venceu o 2º Concurso de Músicas de Carnaval, no Maracanãzinho. Repetiria a dose em 1969, vencendo o Carnaval como intérprete da marcha-rancho “Avenida Iluminada”.

No entanto, no gênero carnavalesco seu sucesso insuperável foi a marcha-rancho “Máscara Negra”, em parceria com Hildebrando Pereira, que certamente se inscreve entre as mais belas compostas no País, em todos os tempos. Isso num momento em que o gênero estava já em decadência.

O sucesso de “Máscara Negra” lhe custou uma campanha caluniosa, quanto a autoria da marcha. Segundo o jornalista João Máximo, foi obra de David Nasser, seu concorrente na disputa com uma marchinha tão boa que hoje ninguém lembra mais qual era, sob a alegação de que Zé Kéti era comprometido com as esquerdas, como se isso desqualificasse qualquer cidadão de bem. A campanha foi ampliada pelo apresentador Flávio Cavalcanti, que, ironicamente, durante anos usara sem permissão do autor e sem lhe pagar um tostão, o samba “A Voz do Morro” na abertura do programa de sucessos na televisão “Noite de Gala”.

Este foi o esperneio dos conservadores contra este que por seu talento e atitudes merece, sem dúvida, estar no panteon dos grandes construtores da música brasileira no século que passou.

José Flores de Jesus, o Zé Kéti, assim como seu pai, o marujo revoltoso contra injustiças, brigou até o final dos seus dias para tirar o samba do gueto. Teve papel proeminente no cinema nacional, caso único entre os nossos sambistas.

Organizou conjuntos, estimulando a profissionalização, que não era outra coisa senão dar o verdadeiro valor à arte popular.

Participou do Teatro, sendo protagonista do Show Opinião, um musical que se tornou referência no gênero e nisso também é um caso único entre compositores populares.

Teve espírito empreendedor suficiente para evoluir de operário da construção civil a comerciante e até concessionário de serviços públicos, passando também pela função de colunista de jornal.

Toda essa trajetória calcada numa obra de centenas de composições, algumas ainda inéditas, com diversas delas já definitivamente incluídas na antologia da Música Popular Brasileira, como “Drama Universal”, “Opinião”, “Malvadeza Durão” e “A Voz do Morro”.  

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