Existem hoje mais de 400 projetos de filmes e séries parados em todo o País, segundo estimativas do setor audiovisual. Algumas fontes chegam a falar em 600 trabalhos interrompidos desde o início do governo Jair Bolsonaro. Esses projetos aguardam a liberação de recursos, já aprovados, vindos de diversos mecanismos de fomento, incluindo o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), o maior deles, que alimenta a atividade com quase R$ 750 milhões por ano.
A Agência Nacional do Cinema (Ancine), responsável por autorizar o uso dos valores, não comenta o assunto. Mas o engarrafamento é resultado de um 2019 que pode ser considerado o período mais conturbado que a área viveu nas duas últimas décadas.
Os motivos foram muitos: a Secretaria do Audiovisual, por exemplo, teve três responsáveis ao longo do ano – e neste momento está acéfala. Órgãos consultivos do segmento, o Conselho Superior de Cinema e o Comitê Gestor do Fundo Setorial do Audiovisual demoraram a ter suas composições definidas pelo governo.
Não bastasse, a Ancine chegou a parar durante um mês, em abril, após divergências com o Tribunal de Contas da União, e teve seu então diretor-presidente, Christian de Castro, afastado por ordem da Justiça. Para não se limitar às más notícias, ao menos a diretoria colegiada da Agência foi recomposta, mesmo que interinamente, após meses com três de suas quatro cadeiras vagas.
Para Mariza Leão, produtora da franquia De Pernas pro Ar e uma das centenas que aguardam liberação de recursos, se 2019 fosse um filme ele seria Apertem os cintos… O piloto sumiu, a famosa sátira dos anos 80 em que um passageiro é obrigado a assumir a direção do voo após toda a tripulação sucumbir à comida estragada. “O ano de 2019 foi um avião parado na pista. Nem taxiar taxiou”, diz a produtora. “O dinheiro existe, mas a quantidade de técnicos na Ancine é insuficiente para processar as demandas.”
“Perdemos muito tempo em 2019 tentando evitar o desmonte, convencendo o governo de que geramos renda, emprego, imposto”, lembra Leonardo Edde, presidente do Sindicato Interestadual da Indústria Audiovisual (Sicav). No ano passado, a Ancine assinou 660 contratos – mas todos referentes a anos fiscais anteriores. Eles somaram R$ 526 milhões, o segundo aporte mais expressivo da série histórica do FSA. Também foram publicados os resultados de editais que contemplaram 334 projetos com mais de R$ 272 milhões.
Para o dinheiro deste ano sair, é preciso destravar pendências urgentes, mas que parecem uma novela. O Plano Anual de Investimento 2019, que garante os recursos para 2020, foi aprovado em dezembro, também com atraso. Para garantir a liberação desses recursos, porém, o Comitê Gestor tem de detalhar as linhas de crédito do FSA. Ele define, por exemplo, que tipos de editais serão abertos e quanto cada um ofertará.
Mas, para que haja uma nova reunião do Comitê Gestor, é necessário que a Secretaria Especial da Cultura (SEC) tenha sua chefia nomeada – o que ainda não ocorreu, apesar de a atriz Regina Duarte ter dito “sim” ao “pedido de casamento” de Bolsonaro.
Também depende da SEC a definição do secretário do Audiovisual. O cineasta André Sturm chegou a ser indicado por Roberto Alvim e aceitou o convite, mas, segundo ele, os papéis só ficaram prontos em 16 de janeiro, um dia antes de o secretário citar um discurso nazista e ser exonerado.
Outra novela é a definição sobre a Lei do Audiovisual e o Recine, mecanismos importantes para que verbas além do FSA circulem. A esperada renovação deles até 2024 foi vetada por Bolsonaro, mas o Congresso tem até 3 de março para analisar o veto e eventualmente reverter a decisão.
É por meio da Lei do Audiovisual que pessoas físicas e empresas podem deduzir do imposto devido valores que financiam a produção de filmes e séries. Esse “fomento indireto” alcançou nos últimos anos a média de R$ 90 milhões por exercício fiscal. Já o Recine visa incentivar a expansão e a modernização do parque cinematográfico, garantindo isenção fiscal para compra de bens, máquinas e equipamentos destinados à construção de novas salas. Em 2019, a isenção aprovada foi de aproximadamente R$ 25 milhões, segundo informações oficiais da Ancine.
Há entraves também na distribuição. “Os filmes viajam para festival internacional, ganham prêmio, passam em festivais do Brasil, mas depois não conseguimos avançar. E, quando um longa vai para a gaveta por conta de atraso no recurso, ele perde potencial de bilheteria, o público esfria”, diz Letícia Friedrich, diretora geral da Boulevard Filmes. É o caso de Açúcar, que foi exibido no Festival do Rio de 2017, mas só chegou aos cinemas só no mês passado, após quase um ano e meio para receber a verba de comercialização do FSA.
A indefinição preocupa também empresas grandes. Diretor-geral de uma das maiores distribuidoras do país, a Downtown Filmes, Bruno Wainer diz ter projetos garantidos apenas até 2021. “A partir de 2022, só se a máquina voltar a funcionar.”
Felipe Lopes, da Vitrine Filmes, distribuidora de Bacurau, conta que tem nove projetos lançados que ainda não receberam o dinheiro do fundo. “Existe um medo grande de uma hora a conta não fechar mais”, afirma. O receio é compartilhado por produtores e distribuidores que, do ponto de vista do fomento, já encaram o primeiro semestre como perdido. Por isso, buscam alternativas, como o streaming e o mercado internacional.
A sensação de tempo perdido não é mera impressão. Segundo Vera Zaverucha, ex-diretora da Ancine, leva-se em média um ano para a contratação de um projeto junto ao FSA, devido à minuciosa verificação de documentos (análise complementar), condição para os recursos serem liberados.
“Aquilo que foi construído ao longo de mais de 20 anos de política audiovisual ininterrupta continua produzindo resultados”, diz Manoel Rangel, ex-diretor presidente da Ancine. “Agora, vemos um quadro preocupante, porque décadas de esforço estão sendo deixadas para trás – um luxo a que um país como o nosso não pode se dar.”
Com informações do O Globo
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