ARTIGO | JOÃO GILBERTO CONTRA BOLSONARO E SUA ATITUDE ‘ANTI-INTELECTUAL’

 

Qualquer estado de desagregação política é antecedido por um estado de desagregação estética. Ou, por outra, um problema político é invariavelmente uma consequência e um sintoma de um problema que inicialmente era de ordem estética. Exemplificando, para o argumento não ficar muito abstrato, quando o Presidente da República Jair Bolsonaro se refere à morte de João Gilberto nos seguintes termos: “[era] uma pessoa conhecida. Nossos sentimentos à família, tá OK?”, ele faz política, e da mais abjeta.

Artigo de Gabriel Trigueiro

O subtexto em sua fala sinaliza não apenas o mesmo desdém anti-intelectual de sempre, compartilhado a propósito por sua base mais orgânica, mas um ataque frontal à Beleza e à Verdade. Sim, ambas em maiúsculas mesmo, ainda que corra o risco de soar bobo e pomposo.

 

Em alguns textos recentes, passando a limpo o legado artístico de João, algumas pessoas apontaram sua filiação estética ao Modernismo. Talvez, mas também é possível, e quem sabe mais adequado, lê-lo como um pós-moderno. No sentido de que ele compreendia o samba como a linguagem primária da música brasileira e, compreendendo minuciosamente os aspectos formais e os antecedentes históricos dessa linguagem, ele a desconstruía e conseguia criar um vocabulário novo, autoral e maior do que a soma das partes.

 

O tipo de engenho artístico de João é análogo, por exemplo, ao do escritor David Foster Wallace (1962-2008). Embora DFW fosse frequentemente identificado com o pós-modernismo literário, e isso ficasse visível sob um sem-número de ângulos (a autoconsciência, o recurso a paradoxos e à fragmentação narrativa, por exemplo), o escritor americano, ao menos em sua obra-prima Graça infinita , subordinava seu projeto estético a uma filosofia moral de edificação humana, algo que soava um expediente datado e algo cafona à sensibilidade literária mainstream de sua época.

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