Mário Lago: O Povo Escreve a História nas Paredes

“Eu nasci inconformado. Sou rebelde por vocação”, disse, certa vez, o carioca Mário Lago (1911-2002). Mais conhecido pela composição, ao lado de Ataulfo Alves, de sambas como Ai! Que Saudade da Amélia e Atire a Primeira Pedra, Mário também era poeta de mão cheia. Em 1948, filiado ao Partido Comunista do Brasil, Mário viu a Justiça cassar arbitrariamente o registro da legenda. Em resposta, escreveu uma poesia notável – O Povo Escreve a História nas Paredes. Confira abaixo a íntegra do poema.

Mário Lago, um dos primeiros artistas perseguidos pela ditadura militar, foi preso e fichado no Dops. À direita, capa da primeira edição de <i>O Povo Escreve a História nas Paredes</i> Mário Lago, um dos primeiros artistas perseguidos pela ditadura militar, foi preso e fichado no Dops. À direita, capa da primeira edição de O Povo Escreve a História nas Paredes

O povo escreve a história nas paredes

 

(Mário Lago)

 

I

E eles vieram pras ruas,

delírio verde nos lábios,

delírio pardo nas almas,

delírio negro nas mãos.

E encheram de gritos as ruas,

porque o povo deixou as ruas

quando eles vieram pras ruas,

delírio verde nos lábios,

delírio pardo nas almas,

delírio negro nas mãos.

Aleguá! Aleguá!

Aleguá, guá-guá!

Três a dois! Três a dois!

Três a dois, dois-dois!

 

 

Depois…

Respondeu o eco distante,

em Wall Street! “Three to two!”

, respondeu Franco,

com voz sumida, abafada,

voz sucumbida, esmagada,

pelos gritos, pelo pranto

pelas palavras de angústia,

de apelo desesperado

dos cárceres onde a Espanha

vê a liberdade tombar.

“Três a dois” repetiu Morinigo,

“Três a dois” repetiu Salazar.

 

Depois…

Houve silêncio nas ruas,

houve silêncio nos campos,

houve silêncio nas fábricas…

Silêncio longe em Pistoia,

silêncio longe no oceano.

 

Aleguá! Aleguá!

Aleguá! guá-guá!

Três a dois! Três a dois!

Três a dois, dois-dois!

 

Depois…

 

II

Noite pesada… de tristeza imensa.

Noite de lágrimas e de descrença.

Noite de mil perguntas doloridas.

Noite de angústia pra milhões de vidas.

 

E agora, meu companheiro?

Companheira, que fazer?

Fecharam nosso Partido…

Que mais vai acontecer?

E agora, meu companheiro?

Companheira, que fazer?

 

E agora, meu companheiro?

Como iremos escutar

palavras que indicam rumo

se ninguém pode falar?

 

E agora, meu companheiro,

quem nos irá defender?

Fecharam nosso Partido…

Que mais vai acontecer?

E agora, meu companheiro?

Companheira, o que fazer?

 

Fecharam a boca do povo,

Que mais vai acontecer?

Cortaram os braços do povo.

Que mais vai acontecer?

Quem mais vai defender o povo

Quando o mais acontecer?

 

E agora, meu companheiro?

Companheira, que fazer?

Quem vai pedir para o povo

comida pra ele comer?

 

Quem mais vai pedir para o povo

escolas pra ele aprender?

Fecharam nosso Partido…

Que mais vai acontecer?

 

Depois…

 

III

Depois, quando surgiu o novo dia,

a mesma intrepidez e a mesma valentia,

trinta e três vozes no Distrito,

vozes no norte, no sul,

vozes que o povo escolheu

pra o povo representar,

anunciavam ao céu,

anunciavam ao mar

que o partido do povo ainda

existia,

que o partido do povo não morria

porque o povo não morre e eles

eram o povo.

Sempre se refazendo.

Sempre novo.

Sempre no mesmo rumo.

Sempre novo.

Depois…

IV

Outra noite pesada… de tristeza

imensa.

Outra noite de lágrimas e de

descrença,

Eles voltaram pras ruas,

delírio verde nos lábios,

delírio pardo nas almas,

delírio negro nas mãos.

E encheram de gritos as ruas,

porque o povo deixou as ruas

quando eles vieram pras ruas,

delírio verde nos lábios,

delírio pardo nas almas,

delírio negro nas mãos

ânsia de sangue na boca,

nos gestos, no coração.

 

Cassação! Cassação!

Cassação! ção-ção!

Cassação! Cassação!

Cassação! ção-ção!

 

Outra noite de angústia pra

milhões de vidas.

Outra noite de mil perguntas

doloridas.

 

E agora, meu companheiro,

de onde virá salvação?

Ninguém representa o povo

com a cassação.

 

Quem vai apontar os crimes,

os crimes da reação?

Cortaram o dedo do povo

com a cassação.

 

Quem vai punir os traidores,

os traidores que o petróleo

ao dólar entregarão?

Cortaram o braço do povo

Com a cassação.

 

Quem vai alertar o povo

toda a vez que contra o povo

rasgarem a Constituição?

Fecharam a boca do povo

com a cassação.

 

V

Me dá tua mão, companheiro.

Companheira, me dá a mão.

Me dá tua mão,

meu irmão.

Responderei às perguntas,

perguntas que tens nos lábios;

nos olhos, no coração.

 

Fecharam nosso Partido,

que é o partido do povo?

Cassaram nossos mandatos,

que são mandatos do povo?

Que importa, meu companheiro?

O povo, não morre, é eterno.

Passam os traidores do povo,

O povo não passa não.

 

Fecharam nosso Partido?

Cassaram nossos mandatos?

Se amanhã, desesperados,

fecharem nossos jornais?

Que importa? Que importa, irmão?

O povo sabe os caminhos

pra enfrentar a reação.

 

Não existem linotipos?

Não existem rotativas?

Que importa, meu companheiro?

Há sempre uma mão altiva

pegando um giz ou pincel.

E há muros pela cidade

se nos negarem papel.

 

Me dá tua mão, companheiro.

Companheira, me dá a mão.

Me dá tua mão,

meu irmão.

Vamos andar na cidade,

verás que eu tenho razão.

 

Naquele muro… Que lês?

CONSTITUINTE! Talvez,

talvez tu mesmo escreveste

esta palavra. Talvez…

 

Isso é história, companheiro,

História de uma campanha

que o povo escreveu nos muros

e os muros foram levando

pra consciência nacional.

História que tu escreveste

fazendo daquele muro

o teu imenso jornal.

 

Olha outro muro… Que lês?

AUTONOMIA! Talvez,

talvez tu mesmo escreveste

esta palavra. Talvez…

 

Isso é história, companheiro.

História que tu escreveste

à margem das linotipos,

à margem da rotativa

e das tiras de papel.

História que tu escreveste

tendo ideal, mão altiva,

toco de giz ou pincel.

 

O VOTO É A ARMA DO POVO! O NOSSO PETRÓLEO É NOSSO!

 

Anda comigo e espia pras paredes,

vê quanta história ali já se escreveu.

São páginas e páginas de luta

que escrevemos nos muros com

o povo,

como povo, tu e eu.

 

São páginas que o tempo não apaga

e nem apaga a reação.

São páginas que o povo

diariamente

lê quando passa para as oficinas

e guarda, pra reler, no coração.

 

Essas não há polícia que apreenda.

Essas não há ministro que suspenda

porque sempre haverá paredes na

cidade

e sempre haverá povo.

E quando o povo sofrer,

enquanto tiver fome e tiver sede,

enquanto não tiver direito e

liberdade,

os muros amanhecerão contando

histórias.

 

Pintem-se os muros! Quem importa!

O que o povo ali escrever,

depois de secar a tinta,

por baixo daquela tinta

de novo há de aparecer.

 

Ponham-se os muros abaixo!

Que importa? Que importa, irmão?

Não há cidade sem casas

e nem há casas sem muros.

Os muros são como o povo.

Se renovam, se renovam.

E onde surgir um muro

mãos do povo surgirão

pra escrever a sua história,

história de suas fomes,

história de suas sedes.

 

Fecham partidos? Pra frente!

Cassam mandatos? Pra frente!

Fecham jornais? Para frente!

Há muros onde escrevermos

a história de nossas fomes,

a história de nossas sedes.

Para a frente! Para a frente!

 

O povo escreve a história

nas paredes!

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