A linguagem, ou a língua, aqui tomadas como sinônimos, pode assumir, a grosso modo, duas dimensões: a pragmática (prática) e a simbólica, sendo que nem a primeira nem a segunda são puras: tanto a dimensão predominantemente pragmática está mesclada com expressões de natureza simbólica, quanto a dimensão simbólica está contaminada pela dimensão pragmática da linguagem.
Por Jeosafá Fernandez*
A dimensão pragmática da linguagem diz respeito ao uso cotidiano e prático da língua. Nela, os sentidos das palavras estão próximos e relacionados diretamente com os significados delas no dicionário linguístico: a palavra “caneta” representa um objeto empregado na escrita que se diferencia do lápis, feito com grafite, pelo emprego de tinta. Podemos, ao ouvir ou escrever “caneta”, imaginar uma infinidade de formas, tamanhos e cores de caneta, porém a palavra está associada diretamente aos objetos possíveis de comporem um conjunto formado pelos diversos modelos de caneta. Ao chegarmos ao balcão de uma papelaria e pedirmos uma caneta esferográfica azul, o funcionário rapidamente exporá a nossa frente as que tiver para vender: escrita fina, escrita grossa, com cilindro colorido ou transparente etc. Todas, canetas.
Do mesmo modo, no uso didático, as palavras assumem por função esclarecer ideias, tirar dúvidas, exemplificar, refletir sobre aspectos da aprendizagem entre outros significados. As palavras aqui tendem a evitar duplos sentidos, buscam expressar ideias, conceitos, fórmulas, pensamentos com a maior exatidão possível, eliminando tanto quanto possível ambiguidades que induzam ao erro.
O mesmo se dá nas linguagens científica (sejam elas no campo das ciências exatas, no das humanas ou ainda no das linguagens) e informativa (ou jornalística), que também tendem à exatidão para comunicar conceitos, modelos científicos, fórmulas, fatos, sistematizar experiências ou experimentos etc.
Na dimensão pragmática o peso interpretativo é mínimo e o descritivo, máximo. Tanto que para os cientistas a partir do século XIX a ciência é antes de tudo uma descrição da realidade.
Em muitos sentidos, a dimensão simbólica é oposta à pragmática. Nela, ao contrário do que se disse até aqui, a linguagem se distancia da exatidão, as palavras se afastam de seus significados no dicionário linguístico e assumem francamente caráter ambíguo (de múltiplos sentidos).
Num romance, conto ou poema em que uma personagem está o tempo todo com uma caneta na mão a rabiscar, rascunhar, escrever, a palavra “caneta” é mais que um objeto destinado à escrita: ela simboliza todas tensões vividas pela personagem, seus sonhos, ansiedades, fantasmas, expectativas, traumas, desejos etc. etc. etc. Quando em posse dessa caneta em movimento, a personagem pode estar se sentido realizada ou torturada, em êxtase ou em sofrimento profundo, próxima do gozo ou à beira do suicídio.
Aqui o uso pragmático da linguagem cedeu espaço ao uso simbólico, que carece não apenas do dicionário linguístico, se bem que também aqui ele tenha lugar, mas de dois outros tipos de “dicionários” desordenados que estão depositados na mente e no coração do leitor: seu repertório de imagens (visuais, auditivas, olfativas, palatais e táteis) e seu repertório próprio linguístico.
Para se penetrar na dimensão simbólica da linguagem, ambos esses repertórios precisam ser ativados – e não basta isso: enquanto essa ativação não for automática e rápida, os sentidos relacionados às palavras não se constituirão no espirito do leitor (é como um computador que entrou em looping, que gira, gira, gira, mas não abre a página desejada e acaba por travar).
Embora os significados das palavras no dicionário sejam a base do sentido simbólico (afinal a palavra “caneta” significa caneta mesmo, e remete à imagem da caneta), para alcançar os infinitos sentidos simbólicos de uma palavra ou expressão (conjunto organizado delas), é preciso interpretar a palavra enquanto representação de símbolos e imagens, que remetem a sensações, sentimentos, pensamentos, ideias, conceitos, lembranças, experiências alegres ou dolorosas de vida repousadas em nosso inconsciente.
O símbolo “caneta” precisa suscitar em nossa lembrança o prazer de se ter usado pela primeira vez esse objeto. Quando nossa professora falou “Agora vocês podem usar a caneta”, foi como se tivéssemos “ficado maiores”, mais responsáveis, como se tivéssemos “crescido”. Mas também o símbolo “caneta” remete seguramente a experiências que nos fizeram sofrer, por exemplo, aquela prova em que confundimos as alternativas na hora de fazer o X e marcamos por engano as erradas, embora soubéssemos as corretas.
Quanto mais imagens lembrarmos, quanto mais mobilizarmos nosso repertório de imagens, sensações, impressões visuais, auditivas, olfativas, palatais, táteis, conceituais (ideias e pensamento), maiores nossas chances de compreendermos as palavras-símbolo, que são o alfabeto da literatura.
Se a personagem inventada logo acima, presente em um texto de ficção, o tempo todo a rabiscar, escrever, anotar, num dado momento atira a caneta contra a parede e, não contente, a destrói com pisões, não é apenas uma caneta que está sendo destruída, mas talvez um sonho de escritor, poeta e de toda uma vida. Na caneta-símbolo destruída está selado o próprio destino de quem nela depositou tanta esperança subitamente frustrada.
Se essa personagem, arrependida, recolheu a caneta, guardou-a com carinho e a substituiu por outra para ressuscitar seu sonho no papel em branco, impulsos de vida triunfaram sobre os impulsos de morte. Porém se a personagem com a destruição da caneta pôs fim a seu sonho, enterrando-o definitivamente, podemos supor e mesmo deduzir, e mesmo apostar que o caminho de sua autodestruição se abriu como a boca de um dragão infernal. Daí para frente assistiremos à degradação de alguém que tinha tudo para dar certo, mas que perdeu-se definitivamente ao perder seu sonho.
A literatura depende dessa habilidade imaginativa do leitor, que pode e deve ser desenvolvida por meio de jogos simbólicos e práticas criativas de conversão da palavra-símbolo em imagens e da associação delas com situações, sensações, sentimentos, ideias, pensamentos já vividos por nós realmente (na forma de lembranças de experiências boas ou ruins) ou simbolicamente (filmes, músicas, peças de teatro a que assistimos, ou ainda jogos, brincadeiras, diversões prazerosas em que nos envolvemos durante a vida).
Quem não consegue imaginar, não acha graça em uma personagem ou situação hilária, porque simplesmente não a viu em sua mente, por conseguinte não a sentiu em seu espírito. Como rir do que, por não conseguirmos associar a nada, sequer visualizamos ou sentimos?
A cena da personagem pisoteando a caneta pode assumir um caráter trágico. Para captar essa tragédia, precisamos visualizá-la em detalhes. Porém, o autor pode introduzir um elemento de humor para “avisar o leitor” de que, afinal, o drama da personagem não é assim tão grave, e que seus exageros um tanto ridículos representam o ridículo a que todos nós estamos sujeitos quando perdemos o controle sobre nossas emoções.
No cinema, Chaplin foi campeão em extrair o riso dessas situações constrangedoras em que nos envolvemos sem querer, que parecem o fim do mundo, quando na verdade são apenas raiva momentânea e humanamente aceitável, digna de tudo, não de lágrimas.
A interpretação envolve assim a mobilização de dois repertórios interiores, o imagético e o linguístico, numa conversão (quanto mais automática possível, melhor) de palavras em imagens e símbolos, e destes novamente em palavras, que trazem para a consciência os segredos e mistérios embutidos nas imagens e nos símbolos.
Se não captamos a piada implícita, perdemos a oportunidade de rir e de extrair do riso a possibilidade de superação da dor que mora atrás ou no fundo de cada piada. Porém para captar a a ironia do riso, é preciso imaginar a cena toda e deduzir dela o ridículo, o engraçado, o vexame, o humor.
Assim, quem “não gosta” de literatura tem antes de tudo uma questão a resolver com sua própria imaginação. Sem imaginar, não dá para sentir, gozar, ter prazer – aliás, nem com literatura, nem com coisa nenhuma.
*Jeosafá é Doutor em Letras pela USP. Tem, entre seus mais de 50 títulos, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X e o ciclo de romances paulistanos Era uma vez no meu bairro (Zonas Norte, Sul, Leste e Oeste).
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