Prefácio a Pé de ferro & Outros Poemas, do poeta Adalberto Monteiro, que será lançado nesta quinta-feira (30), às 19h, na sede da União Brasileira de Escritores – UBE (Rua Rego Freitas, 454), em São Paulo
Por Joan Edesson de Oliveira*
A poesia deveria dispensar apresentações. A poesia se basta. Posta na mesa à frente, servida em fina louça ou em rústico prato de barro, a poesia deveria dispensar entradas, prato principal a se devorar, faminto só de vê-la. Mais grave ainda é que as apresentações necessitam estar à altura da poesia, e corremos sempre o risco de estar aquém do livro sobre o qual falamos.
Não fora a promessa feita ao poeta Adalberto Monteiro, depois de ter lido os poemas deste Pé de ferro, eu recomendaria a todos que ignorassem a apresentação, que pulassem esta fala maçante e inútil, casca apenas, e fossem direto à fruta, ao seu sabor sumarento, a se lambuzar no sumo que escorre desses versos.
Adalberto faz um longo caminho nesse livro. O flâneur que percorre as ruas de São Paulo, atento aos seus noturnos habitantes, vem de longe, de raízes longínquas fincadas no Piauí, em Cocal, antes de passar por uma Goiânia sempre presente em sua poesia. Numa poética genealogia descobrem-se raízes em Russas, no Ceará, que muito antes de hoje se chamou São Bernardo das Éguas Ruças, longa denominação prenhe de poesia. Em Adalberto, como se pode ver, a poesia vem de tempos distantes.
Adalberto dividiu o seu novo rebento em cinco partes, que soam independentes, pequenos livros com temáticas distintas, cinco pequenas joias poéticas, que parecem buriladas à exaustão pelo poeta artesão, cuidadoso ao extremo com cada palavra, colocada em seu lugar com a habilidade de um trabalhador caprichoso e orgulhoso do seu ofício. Adalberto é assim. Um trabalhador da palavra, que carrega um imenso orgulho do seu ofício, e que o exerce com maestria ímpar. Lembra um oleiro antigo, a amassar o barro e lhe dar forma. E tal como um oleiro, mesmo que o barro não seja lá grande coisa, mesmo que na argila venham os cascalhos da dor e da injustiça, as mãos do poeta, grávidas de ternura, conseguem parir delicadas peças de poesia, vasos e jarros e potes cheios de delicadeza, da delicadeza tão necessária ao enfrentamento destes dias escuros que vivemos.
Adalberto começa por nos dizer da sua relação com a metrópole. Parece que o poeta fez as pazes com a cidade. É uma relação de amante, de apaixonado; há muito de desejo nessa relação. Mas o objeto do desejo, essa cidade amada, é também uma cidade que dói, uma fêmea que sabe ser perversa e cruel. Na poesia de Adalberto, São Paulo dói, de uma dor funda, que atinge os escaninhos da alma, que penetra fundo na poesia. Na poética de Adalberto os mendigos, habitantes da rua, lésbicas, meninas famintas, vêm para o primeiro plano, passam a ser vistos, a ser enxergados. O poeta não fica na epiderme da cidade. Ele penetra fundo, descobre os seus segredos, sofre com as suas dores.
Mas Adalberto não teme mais a cidade.
O teu cinza já não assombra.
O poeta canta, assim, desassombrado, sem medo. Transborda de lirismo nesse seu canto para a cidade. Um lirismo comovente, um lirismo de fazer chorar, enquanto um portenho toca um tango na Paulista, ignorado pela noite, e visto apenas pelo poeta, que tem olhos de ver o mundo. Mas o lirismo de Adalberto pode também ser faca afiada nas nossas consciências, espinho no nosso comodismo cotidiano. A sua poesia, lírica como poucas vezes se vê, é também denúncia, grito partindo a noite paulistana. Só os olhos dessa poesia são capazes de enxergar aquela jovem sem rosto, sem nome, sem cor, ignorada pelos transeuntes. Adalberto sabe que aquela jovem tem o nome e a dor de milhões de brasileiros. Sabe que é o Brasil, que é a pátria, aquela jovem que agoniza à boca da estação República.
São seres extraordinários os poetas. Nas mínimas coisas vão eles, imaginação sem amarras, à cata da poesia. Que pode estar naquele piquenique operário no Ibirapuera, ou que pode também, como a buganvília na primavera, pintar de encarnado a boca do asfalto. O poeta vê o povo e, no povo, enxerga a poesia.
No caminho poético traçado por Adalberto, o lirismo transforma-se logo em paixão. Uma paixão que alcança rapidamente o erotismo. Uma paixão que incendeia, que vira febre. Quando a temperatura sobe demais, cacos de cristal espalham-se pelos continentes da casa. A paixão transbordante da poesia faz com que o poeta, depois de ter nas mãos um diamante de muitos quilates, recuse joias menores. Nessa estrada da poesia que o poeta faz, a paixão é montanha, de onde se avista, após o cansaço da subida, o vale do prazer que se descortina lá embaixo. O amor tem poderes, bem sabe o poeta. Sabe também que o amor, quase sempre, vem sem avisar. Às vezes, chega à vida da gente delicadamente, arrombando porta com beleza e sedução. O poeta sabe, ainda, que o amor às vezes é pecado. E nós, pobres mortais, a carne tão fraca, sucumbimos ao pecado. Pior ainda, por vezes cultivamos o pecado perto de nós, numa espécie de masoquismo. Ou talvez seja ascetismo o que leva o poeta a plantar uma macieira no quintal do lar, sofrendo tentações a vida inteira.
Paixões, amores, afetos, o poeta abre o peito e dele voam esses pássaros carregados de sentimentos, essas aves que faziam ninhos no seu coração e que agora se alam, a se ofertar aos amantes, pois que a poesia deixou de ser propriedade do poeta, bem coletivo do qual podem lançar mão, quando quiserem, os necessitados, os moderada ou desesperadamente apaixonados, em busca de um verso para ofertar à mulher amada.
Se o poeta contagia pela paixão, pelo lirismo, ele não esquece que a poesia é arma, é clava, é faca afiada. Se no Araguaia a história exigiu que se empunhassem fuzis, hoje o presente cobra do poeta que ele empunhe seu verso tal como aqueles jovens que tombaram às margens do grande rio. E o poeta responde a esse apelo do presente, a essa exigência dos dias que vivemos, sombrios e tão inimigos da poesia.
A poesia de Adalberto chora pelos mortos do Mediterrâneo, chora por aquele distante menino Aylan, tão pequenino em sua camiseta vermelha e sua bermuda azul, sua imagem sem vida a comover o mundo. A poesia, ante aquela imagem, quer ser Alá, quer ser Iemanjá, sonha em ser Deus, para transformar aquele menino num peixinho sírio, que chegasse saltitante à praia turca. A dor invade novamente a poesia. Não a dor que cala, que paralisa. Em Adalberto é uma dor que obriga ao grito, que pede a poesia como combate, como agitação, como luta. E Adalberto atende, uma vez mais, às exigências que se colocam. Sua poesia agora é arma poderosa, mesmo mantendo o mesmo lirismo, mesmo carregada da mesma paixão, sua poesia agora é a mais poderosa arma, a arma palavra, saída da boca dos homens e das mulheres que não suportam as injustiças do tempo e que lutam, mãos dadas, pelo futuro. Aqui ou na Síria, aqui ou na Palestina, aqui ou em Cuba, a poesia de Adalberto é irmã dos que lutam, é companheira dos que sonham, e perfila, lado a lado, na mesma trincheira, com os que batalham pelo amanhã, com os que guerreiam pela aurora. Nesse sentido, é uma poesia universal.
Além da luta, a poesia guarda a esperança. Se as matilhas salivam, derramam ódio das bocarras, isso só nos dá a certeza de que nossos canteiros de cereais e flores haverão de nos dar novas colheitas. Frente ao ódio, Adalberto brande com firmeza e doçura as armas da poesia. O poeta se faz soldado, vira combatente na luta pelo futuro.
A poesia-caminho de Adalberto, luz a alumiar o futuro, alimenta-se também do que já houve. É necessário, para plantar as árvores que frutificarão e alimentarão as nossas crias, que honremos as nossas raízes. O poeta não deixou jamais de ser menino, não deixou jamais de ser aquele menino sertanejo que se fez homem na amplidão do chão goiano. Hoje afeita ao concreto e ao asfalto, a poesia de Adalberto é filha da caatinga, é irmã do cerrado.
O poeta usa as vestes do menino e volta àquela noite escura, as mãos firmes do sapateiro a lhe prender, as mãos firmes da costureira a lhe enfiar o óleo de rícino goela abaixo. Para curar os males do menino, o homem de hoje compreende que o amor também exigia dureza. O menino cresceu, alimentado pela poesia, feito homem pelo exemplo da costureira e do sapateiro. O poeta retribui, com sua poesia assumindo um tom épico de homenagem e honra aos seus mortos, aos que lhe construíram o espírito guerreiro, aos que lhe fizeram a alma revolucionária.
Em três poemas, na última parte do livro, Adalberto atinge um ponto difícil de alcançar. Cicatriz, Pé de ferro e A história de um retrato valem sozinhos por um livro inteiro. A impressão que tenho é de que, neles, Adalberto fez um acerto de contas com sua história, com sua trajetória. O poeta traçou nesses poemas a sua genealogia, uma genealogia poética, uma genealogia onde valem mais os afetos, as dores, as ternuras, os olhares duros e delicados. Quem quiser compreender a poesia de Adalberto, leia esses poemas. Quem quiser compreender o homem lutador que não se dobrou, leia esses poemas. Eles são a chave para se compreender o que vai no peito e na cabeça desse poeta que luta, palavras na mão, arrancadas do coração sangrado. Se o livro é feito, desde a primeira página, de pequenos diamantes, os três poemas são gemas brutas, raras, difíceis de encontrar em outras paragens.
Os tempos que vivemos são difíceis. São tempos em que o ódio se esparrama pelas ruas, em que os que lutam por um mundo melhor não têm um segundo sequer de sossego, combatendo em muitos flancos ao mesmo tempo. Tempos assim necessitam da poesia. Mais do que isso, tempos assim exigem a presença da poesia. Adalberto nos traz isso. Com dor, lirismo, paixão, erotismo, Adalberto nos traz a poesia. Mas também como faca, como punhal afiado, como fuzil, como petardo. A poesia que ele nos presenteia é múltipla como a face do tempo que vivemos.
O poeta nos pergunta, em determinado momento: O que é um livro de poemas senão os rastros que se deixa nas estradas pelas quais se caminhou, ou os olhos arregalados querendo saltar dos ossos da face para vislumbrar o futuro? O que será um livro de poemas senão o estuário no qual desembocam as alegrias e as desgraças do mundo?
O que responderemos? Talvez que o seu livro seja exatamente isso, esse estuário do qual ele fala. É um livro para se ler com o coração aberto. É um livro para se ler com os olhos dos que sonham, dos que lutam.
Quanto ao poeta, não há como defini-lo. Melhor deixar que ele mesmo o faça: Minha guerra é para que não haja desvalidos. Por isso sou uma mistura disso, conto de fadas e peleja à faca.
Poderia ter evitado essa longa e enfadonha apresentação usando as palavras do próprio poeta: seu livro é uma belíssima mistura de conto de fadas e peleja à faca.
* Joan Edesson de Oliveira é poeta, no outubro seco do sertão do Ceará
Do Portal Vermelho
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