O EXERCÍCIO DA CIDADANIA E OS VALORES FAMILIARES E SOCIAIS

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS FILHO
Ministro do Tribunal Superior do Trabalho

 

 

 

1) A CIDADANIA

Na clássica obra “Paidéia” [1], Werner Jaeger (1888-1961) resgata os elementos constitutivos do ideal de formação do homem grego, em que a idéia de cidadão (membro ativo da polis grega ou da civitas latina) albergava o exercício de todos os direitos e a assunção de todas as responsabilidades na condução dos destinos da sociedade por aqueles que possuíam o status citadino, ou seja, que não eram nem metecos (estrangeiros, que estavam alijados da participação na vida política da cidade, dedicando-se ao comércio), nem escravos (encarregados da produção dos bens materiais e serviços domésticos).

A cidadania, na época clássica grega, se exercia pela democracia direta: participação efetiva e direta de todos os cidadãos nas deliberações que afetassem a vida social (visão aristotélica do homem como ser social ou político por natureza). Já nos dias atuais, em que o modelo generalizado de democracia é a representativa (na qual apenas alguns se dedicam profissionalmente à atividade política), o exercício da cidadania não pode se restringir à eleição dos representantes (com desinteresse pelo que fazem), mas exige a manifestação expressa, pelos mais diversos meios de que se dispõe (imprensa, cátedra, fórum, etc), das opiniões sobre o certo e o errado, o justo e o injusto, o oportuno e o inconveniente na condução da coisa pública, de modo a influenciar positivamente nas políticas públicas.

Nota-se, na própria visão clássica do ideal formativo do cidadão, uma evolução sensível tendente à participação mais ativa do cidadão na vida social [2]:

a) Pitágoras (570-490 a.C.) – na concepção pitagórica, o ideal para o homem seria a vida meramente contemplativa (bios theoretikós) mais do que a vida ativa: assistir, observar e contemplar (theorein) seria mais excelente para o espírito humano do que participar, agir ou vivenciar (praxein). Comparando os jogos olímpicos, seria preferível estar como espectador do que como atleta (diferença entre o sábio e o guerreiro).

b) Platão (427-347 a.C.) – sem deixar de reconhecer a vida contemplativa como o ideal do homem, prepara seus discípulos, na Academia, como agentes de transformação social: plasma o ideal do governante-filósofo (aquele que, nutrindo no mundo das idéias os paradigmas do que deve ser a sociedade perfeita, procura colocá-los em prática na direção da sociedade).

c) Aristóteles (384-322 a.C.) – passa da teoria à prática (do idealismo ao realismo), fazendo com que uma visão metafísica, antropológica e ética bem fundada empiricamente no conhecimento do mundo e da natureza humana possa forjar efetivamente uma sociedade ideal: como preceptor de Alexandre Magno (356-323 a.C.), ao infundir-lhe os ideais filosóficos que ensinaria posteriormente no Liceu, será quem, através do braço conquistador do discípulo, forjará os alicerces da civilização helênica (da qual deriva diretamente a civilização ocidental).

2) CIVILIZAÇÃO E VALORES

Em seu conhecido “Um Estudo da História” [3], Arnold Toynbee (1889-1975) define civilização como um “campo inteligível de estudo histórico” (poder-se-ia falar em civilização ocidental, mas não em civilização francesa, que não se compreende sem remissão às demais culturas européias, com as quais está umbilicalmente ligada) e considera que o ponto distintivo das civilizações seria as diferentes ordens de valores que albergam para estruturar a vida em sociedade. Elenca 37 civilizações que teriam existido ao longo da História, sendo que, nos tempos em que publicava sua obra (início dos anos 70), poderiam ser detectadas 5 civilizações:

a) ocidental cristã – valores da liberdade (pessoa mais que a sociedade) e igualdade (de oportunidades; todos filhos de Deus).

b) oriental marxista – valores do bem-estar material e social (sociedade mais que a pessoa) e igualdade (de resultados; igualitarismo).

c) sino-japonesa – valores da autoridade (antepassados e superiores) e da conciliação (compor em vez de dizer o direito).

d) islâmica – valores da religiosidade estatal (religião se funde com direito) e superioridade masculina (mulher objeto).

e) hindu – valores da desigualdade natural (castas originadas dos diferentes membros do corpo de Bhrama) e da onipresença espiritual (encarnação em animais).

Ora, no caso da Civilização Ocidental, ela deita suas raízes nas civilizações helênica e judaica, firmando-se sobre um tripé que a estruturou, caracteriza e distingue das demais:

a) religião cristã – fornece os valores que norteiam a civilização (transcendência divina, dignidade da pessoa humana, igualdade, liberdade, solidariedade).

b) filosofia grega – permite a compreensão racional da realidade (explicações não mitológicas e argumentos não de autoridade).

c) direito romano – dá a estruturação à sociedade (condições para o desenvolvimento harmônico e pacífico da sociedade).

Esses 3 pilares têm seus desenvolvimentos mais caracteristicamente acabados em 3 paradigmas:

a) Aristóteles (384-322 a.C.) – cuja obra sistematiza toda a filosofia grega (superando o idealismo platônico e vincando o realismo).

b) Justiniano (482-565) – que promoveu a compilação de todo o direito romano no Corpus Iuris Civilis (monumento jurídico composto das Institutas, Digesto, Codex e as Novellae).

c) S. Tomás de Aquino (1225-1274) – que harmoniza o cristianismo com a filosofia grega (especialmente em sua “Summa Theologiae”[4]).

A perda desses três pontos referenciais é responsável pela deriva em que se encontra a civilização ocidental, com sinais de sua decadência, e a defesa dos valores (familiares e sociais) que a norteiam constitui o cerne do exercício da cidadania que hoje se exige de todos os integrantes da sociedade.

3) REFERENCIAIS EM CRISE

Pensando nesse tripé estruturante da civilização ocidental, chama a atenção o debate que ora se trava na Comunidade Européia em torno da promulgação de uma Constituição Européia. A natural referência a Deus e ao cristianismo como fundamentos da ordem jurídica e da própria civilização ocidental, feita no projeto de constituição, foi contestada pela França e Alemanha, sendo que a própria Espanha, com a mudança de governo (no momento, socialista), aderiu à posição francesa (o que surpreende, em face de se tratar de dois países de arraigada tradição cristã). De outro lado, Portugal, Itália, Polônia, Eslováquia e Malta não admitem a aprovação de uma constituição européia, sem essas menções expressas.

Como se vê, aquilo que antes se mostrava apenas como um ateísmo prático (manifestado pelo desprezo à lei natural e aos valores cristãos no que concerne ao respeito à vida desde a concepção, à solidariedade humana para com os mais necessitados, à indissolubilidade do matrimônio, ao respeito às legítimas autoridades sociais e familiares, etc) , vai se convertendo, com a ascensão de uma sociedade hedonista e materialista, em profissão de fé de ateísmo: a referência a Deus deve ser retirada e a Igreja passa a ser vista como a única instituição a não ser tolerada [5] (por lembrar, incomodamente, deveres que se gostaria fossem esquecidos, como o faz o Papa João Paulo II, essa figura que se eleva como reserva moral e ponto de referência para uma sociedade em decadência).

A par da perda do referencial teológico, verifica-se igualmente a inversão do referencial lógico (passagem do realismo aristotélico de que a verdade sobre as coisas é a adequação da nossa cabeça à realidade, para o idealismo kantiano, de que a verdade seria a adequação da realidade à nossa cabeça), com a quebra da harmonia entre fé e razão (obtida com perfeição pela síntese aristotélico-tomista da alta Idade Média), a começar na escolástica decadente [6]:

a) Nominalismo – Guilherme de Ockham (1280-1349), ao sustentar que os universais (conceitos sobre as coisas) seriam meros nomes (convenções e não captação de uma essência comum a seres que possuem a mesma natureza) e que a ordem moral seria arbitrária (imposta por Deus e não decorrente das exigências comuns à natureza humana);

b) Racionalismo – René Descartes (1596-1650) pregando a dúvida metódica e pretendendo deduzir toda a realidade do cogito ergo sum“Penso, logo existo” (admitir como única realidade indiscutível a própria existência e não a do mundo exterior).

c) Idealismo – Emanuel Kant (1724-1804), afirmando que a realidade é que deve se adequar ao pensamento [7] e que o princípio moral deve ser meramente formal (imperativo categórico [8]), deduzida por cada um a regra concreta, subjetivamente.

Verifica-se, finalmente, que a perda do referencial teológico e a substituição do paradigma lógico tem sua repercussão no campo jurídico, fazendo com que o Direito seja fruto exclusivo da vontade da maioria (mero exercício do poder, o que foi colocado em xeque precisamente no Julgamento de Nuremberg, dos líderes nazistas, em que a desculpa para o extermínio dos judeus era o cumprimento de leis ditadas por um governo democraticamente eleito).

As mais modernas teorias para fundamentar a ordem jurídica não escapam desse reducionismo de buscar exclusivamente no consenso a força obrigatória do Direito. Nesse diapasão seguem o conceito de lei (vontade do legislador) de Herbert Hart (1907-1994), a teoria do ordenamento jurídico (legislação fruto do acolhimento consensual das boas razões que recomendam a intervenção estatal) de Norberto Bobbio (1909-2004), a justiça como imparcialidade (acordo prévio sobre as regras do jogo democrático e acordo posterior, no debate democrático, sobre os direitos específicos dos cidadãos) de John Rawls (1921-2002), a teoria dos sistemas e a legitimidade pelo procedimento (aceitação de decisões desfavoráveis, pela captação da seriedade e da sistemática pela qual foram tomadas) de Niklas Luhmann (1927-1998), a teoria do agir comunicativo (linguagem como fonte primária da integração social, com a verdade, calcada no interesse, sendo fruto do consenso racional baseado na argumentação) de Jürgen Habermas (n. 1929) e a teoria do direito como integridade (coerência com as decisões do passado) de Ronald Dworkin (n. 1931).

Todas essas teorias, variantes do contratualismo iluminista de Jean-Jacques Rosseau (1712-1778) e Thomas Hobbes (1588-1679), que pretendem superar, olvidam a visão aristotélica da natureza humana, como comum a todos os homens de todos os tempos, cujos fins existenciais exigem o reconhecimento de direitos fundamentais para sua consecução, bem como a concepção jusnaturalista tomista, calcada na experiência e na captação gradual das exigências da dignidade humana.

Nesse sentido o jusnaturalismo aristotélico-tomista tem sido, até hoje, a melhor expressão do casamento do cristianismo com a filosofia grega e o direito romano:

a) O direito natural é inferido a partir da observação da natureza humana, buscando descobrir as condutas que otimizam o convívio social (“qui pertinent ad scientiam moralem maxime cognoscuntur per experientiam”).

b) A revelação sobrenatural (dos 10 mandamentos) apenas sinaliza quais sãos essas normas que aperfeiçoam o homem como pessoa e cidadão (dando rapidez e certeza à norma).

c) Assim, ciência e fé são apenas dois caminhos para se chegar à mesma verdade (argumentos de razão e de autoridade).

Dizia Johannes Messner que quanto mais uma norma moral contraria aquilo que desejamos fazer, tanto mais estaremos propensos a acreditar que o preceito não decorre da natureza humana, mas se trata de uma imposição divina arbitrária: a norma não teria fundamento racional, mas apenas teológico [9].

A perda do fundamento racional objetivo do direito e da moral e a abertura ao relativismo leva à subversão dos valores, cujos frutos amargos para o convívio social só podem encontrar suas causas explicativas na perda dos valores estruturantes da sociedade (v.g.: aumento da criminalidade em decorrência da violência e pornografia transmitidas massivamente pelos meios de comunicação).

Ter em conta os referenciais valorativos de nossa civilização e a consciência de sua perda é fundamental para se saber no que consiste, atualmente, o exercício da cidadania e quais os meios para canalizá-la.

4) EXERCÍCIO DA CIDADANIA E DEFESA DE VALORES

O exercício da cidadania, nos tempos atuais e em nossa sociedade, representa a defesa dos valores fundamentais da civilização ocidental, que se mostram indispensáveis para a otimização do convívio social, que é o fim buscado por todo ordenamento jurídico (alcançado inicialmente pelos romanos, com a política de assimilação e não de dominação dos povos conquistados). No entanto, sem uma matriz objetiva e sustentável isso não é possível. Daí a necessidade de uma volta às origens e raízes (sair do subjetivismo moral, que só gera tensões).

Se a paz social é fruto da justiça (“opus justitiae pax“) e esta é dar a cada um o seu direito (“suum cuique tribuere“), devemos reconhecer como fontes últimas de todos os direitos:

a) natureza – direitos humanos fundamentais, não outorgados, mas reconhecidos (vida, liberdade, igualdade, propriedade, etc).

b) contratos – todos os demais direitos, fruto da convenção (democracia) entre os homens (“pacta sunt servanda”).

Nesse sentido, o exercício da cidadania se manifesta:

a) para os políticos, na elaboração da legislação positiva em consonância com a lei natural;
b) para os demais cidadãos, na manifestação, por todos os meios a que tenham acesso, de sua aprovação ou reprovação a políticas públicas, conforme promovam ou se distanciem do bem-comum da sociedade, por descompasso com a lei natural e a legítima vontade da comunidade.

Trata-se, em suma, do não conformismo, recorrendo aos vários canais a que se pode ter acesso, para manifestar o descontentamento com os padrões vigentes, quando contrários aos valores familiares e sociais. Se a teoria montesquiana de partição e controle do Poder menciona apenas 3 poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), a prática já demonstrou que se pode perfeitamente adotar, modernamente, uma visão qüinqüipartida do Poder, acrescentando o Ministério Público (CF, arts. 127-130: órgão extra-poderes de controle dos poderes constituídos) e a Imprensa como fontes de poder real na sociedade.

Cada vez se nota com maior clareza o papel de controle que essas duas instituições desempenham numa democracia moderna, influenciando efetivamente as decisões governamentais, mediante a investigação dos desvios éticos na condução da coisa pública e os atentados aos direitos humanos fundamentais.

E ambas as instituições estão abertas à manifestação popular:

a) os artigos de opinião e as cartas dos leitores aos jornais, bem como os telefonemas às ouvidorias-gerais das redes de televisão (hoje facilitadas essas manifestações através do correio eletrônico) chamam a atenção de editorialistas e jornalistas (cada carta ou manifestação é considerada como representativa de 100 leitores ou 1.000 espectadores que não se manifestam) para problemas e questões que passarão a ser pautadas como de interesse, a par de se ter como relevante a corrente de opinião manifestada (muitas vezes para controle ético dos próprios meios de comunicação);

b) as denúncias formuladas perante o Ministério Público, de desrespeito a direitos fundamentais em todos os campos (mormente contra a criança e o adolescente, no que diz respeito à pornografia, e contra o erário, no que concerne à corrupção, nepotismo e privilégios ilegais), servem de base para a abertura de inquéritos e ao ajuizamento de ações públicas, cujos resultados têm sido de extrema oportunidade como freio a desmandos e recuperação de valores éticos antes apenas latentes.

Portanto, a participação da condução dos destinos da sociedade, como manifestação de cidadania, não se limita à atividade política profissional ou ao exercício do direito de voto, mas revela-se fundamental para todo membro da sociedade, que não deve ser apenas sujeito passivo das decisões governamentais, mas sujeito ativo que influi positivamente no processo de tomada de decisão sobre a implementação do bem-comum numa sociedade civilizada e democrática.

Brasília – São Paulo, junho de 2004

 

 

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