Em entrevista, o sociólogo Carlos Alberto Dória, um dos maiores estudiosos da culinária brasileira, fala como os grupos indígenas exerceram um papel determinante e fundamental na formação do jeito de comer do brasileiro.
Três Estrelas
“Hoje vive-se um momento em que a gastronomia brasileira procura recriar vínculos com as etnias indígenas”
Para Carlos Alberto, a influência indígena está hoje ainda presente na alimentação das camadas populares da população brasileira, principalmente na forma da farinha de milho e de mandioca. “Entre a elite, que sempre comeu de forma afrancesada, há ainda quem ache que comer com farinha de milho ou de mandioca seja ‘coisa de pobre’”, diz o sociólogo, que é autor de livros como A formação da culinária brasileira – Escritos sobre a cozinha inzoneira e diretor do Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo.
Na opinião do especialista, no Brasil, os indígenas foram “apagados” não apenas da culinária. “Como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, o Brasil transformou o indígena em pobre. Empobrecemos as populações indígenas em todos os sentidos”.
Leia a entrevista na íntegra:
Qual é o papel dos grupos indígenas na formação da culinária brasileira?
É determinante, fundamental, mas esse papel é minimizado na história da culinária brasileira, que é uma história contada a partir do ponto de vista do colonizador. A arqueologia mostra que os grupos indígenas modernos se formaram no Brasil em torno de 2500 anos atrás, perto de Santarém, no Pará. Dali eles migraram e ocuparam o país todo. Teve um braço, formado pelos Tupinambás, que atravessou o litoral e chegou por volta do ano 800 onde hoje é o Rio de Janeiro. Eles cultivavam a mandioca. Um outro braço, composto pelos Guaranis, veio beirando a Cordilheira dos Andes e chegou a São Paulo por volta do ano 1000. Esses plantavam o milho. Criaram-se duas culinárias completamente diferentes e o Brasil se forma apoiado nesses dois amidos.
De que forma essa influência indígena está presente na culinária brasileira hoje?
A antiga cozinha mineira, paulista, do Centro-Oeste, era toda baseada no milho dos Guaranis. Não podemos esquecer que a farinha de milho é a base da conquista do sertão brasileiro pelos portugueses. Nas bandeiras, os indígenas iam na frente para plantar o milho, que servia de alimento para os bandeirantes. Até o século 19 havia uma culinária popular rural baseada no milho, na mandioca, no feijão, na abóbora e na carne seca. A base da culinária brasileira era essa, exceto a da região amazônica, cuja base era o peixe e a mandioca. É importante frisar que estamos falando da culinária popular, pois a culinária da elite brasileira, a exemplo do que acontecia em outros lugares do mundo, era influenciada pela cozinha francesa desde as primeiras décadas do século 19.
É verdade que a influência indígena vem desaparecendo da culinária brasileira ao longo do tempo?
As farinhas de milho e de mandioca ainda ocupam um papel central na culinária brasileira popular. De novo, é importante frisar: estamos falando da culinária popular. Entre a elite, ainda há quem ache que comer com farinha de milho ou de mandioca seja “coisa de pobre”. Agora, no Brasil, os indígenas foram “apagados” não apenas da culinária. O ato de maior violência foi quando o marquês de Pombal proibiu o ensino do nheengatu [língua geral indígena dominante na região amazônica], “invenção diabólica” dos jesuítas, em 1758. Como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, o Brasil transformou o indígena em pobre. Empobrecemos os indígenas em todos os sentidos.
Em seu livro “A formação da culinária brasileira – Escritos sobre a cozinha inzoneira”, você diz que na “São Paulo antiga, a tanajura era ‘vendida em tabuleiros pelas ruas’, sendo iguaria apreciada tanto pelas camadas mais pobres quanto ‘pelas melhores famílias’. Mais tarde, estas últimas ‘só a comiam às escondidas’ […]”.
Pois é, o passado paulista é horroroso! Aqui se matava populações indígenas com a maior naturalidade até o século 19 e início do século 20. O zoólogo alemão Hermann von Ihering, primeiro diretor do Museu Paulista, entre 1895 e 1916, escreveu textos defendendo o massacre dos índios Caingangues. É incômodo recordar essa relação com os índios. Assim, essa cultura caipira, de matriz indígena, acaba sendo reprimida, embora fizesse parte dos hábitos da elite paulista interiorana. Sem contar que nos salões da sociedade da época vigorava a culinária afrancesada.
Alguns chefs de cozinha brasileiros vêm utilizando ingredientes da culinária indígena, como a própria formiga, na preparação de pratos. Isso pode sinalizar um resgate da culinária indígena no Brasil ou representa apenas uma moda gastronômica?
Hoje vive-se um momento em que a gastronomia brasileira procura recriar vínculos com as etnias indígenas. Há cerca de dez anos, houve uma reapropriação da Amazônia pelos chefs e pela imprensa, por exemplo. Mas acho que nós, da população urbana brasileira, falamos mais de tucupi, de tacacá, do que consumimos. A gastronomia vive de novidades, é um universo muito competitivo e os chefs inventam cavalos de batalha em torno de certas coisas. A moda agora é ir ao repertório popular, tirar algumas coisas desse universo, como taioba e formiga, por exemplo, que sempre estiveram aí há séculos, e fazer dessas “novidades” um diferencial. Há uma gourmetização desses ingredientes. No fundo, as pessoas urbanas de elite não fazem a mínima ideia do que as classes populares brasileiras comem.
Fonte: Instituto Goethe
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