Com a explosão do cinema nacional das últimas décadas, o ritual de escolher qual filme vai representar o Brasil no Oscar já virou tradição e todos os anos os amantes da sétima arte aguardam este resultado com ansiedade. Desta vez não foi diferente. O sucesso de Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, que vem lotando salas em todo o país, colocou a obra entre os favoritos. Mas no Brasil do golpe, o indicado é Pequenos Segredos, de David Schurmann, um filme que ninguém viu.
Por Mariana Serafini
“Ninguém viu” porque o filme não estreou nem aqui, nem fora. Tirando a crítica especializada, o grande público não sabe do que se trata. De acordo com a sinopse, a obra é baseada no livro homônimo, escrito pela mãe do diretor e traz a história da família, a primeira a dar uma volta ao mundo em um veleiro, que adota uma criança portadora de HIV.
Mais de 15 filmes poderiam ocupar este posto. Todos os outros falam do Brasil e seus conflitos, do Brasil real. Mas o Brasil do golpe prefere mostrar um país que ninguém conhece.
Entre os favoritos estava Aquárius, de Kleber Mendonça Filho, que levou mais de 200 mil brasileiros aos cinemas em menos de duas semanas e já tem estreia prevista em mais de 60 países. O problema é que o elenco do filme ousou denunciar o golpe contra Dilma Rousseff durante a exibição no Festival de Cannes e o coronelismo tupiniquim não gostou nada da história.
Outros diretores brasileiros que apresentaram grandes obras neste período preferiram retirar seus filmes da disputa para abrir caminho a Aquarius. Entre eles, Gabriel Mascaro com seu Boi Neon e Anna Muylaert, com Mães só há uma. Nem assim, o Ministério da Cultura deu ouvidos à aclamação o público.
Quem anunciou a escolha de Pequenos Segredos foi o produtor gaúcho Beto Rodrigues, membro da comissão instituída pelo Ministério da Cultura. Em coletiva ele disse que o filme de David Schurmann atendeu aos critérios de “qualidade técnica e artística e adequação ao pensamento da Academia”. Mas não explicou do que se trata esta lógica.
Aquarius mostra a resistência de Clara contra o grande mercado financeiro e se tornou também um símbolo da resistência ao golpe. Inúmeros são os relatos de que em salas lotadas país a fora a exibição começou e terminou sob os gritos de “Fora, Temer”. Talvez esta obra de trilha sonora fascinante, fotografia de encher os olhos e atuações poderosas não esteja adequada ao “pensamento da Academia”.
Em sua conta oficial no Facebook, o diretor Kleber comentou a escolha do Ministério da Cultura. Para ele “uma decisão [que está] em total sintonia com a realidade política do Brasil, coerente e esperada”. “No final das contas, Aquarius é um filme sobre o Brasil, que está no filme da maneira mais honesta possível. Talvez seja exatamente esta honestidade que tenha feito de Aquarius um filme forte como agente cultural, social e produto da nossa indústria do entretenimento”, analisa.
Na ocasião ele e Sonia Braga, a protagonista de Aquarius, estavam no Festival de Cinema de Toronto (Canadá). “Poderosa como Clara, ela manda beijos”, disse Kleber aos internautas.
loucuraNão fosse a garra e a coragem de Clara, o Brasil poderia mostrar ao mundo outra mulher forte, Nise (Nise, o Coração da Loucura) – com a interpretação excepcional de Gloria Pires – que enfrentou o sistema manicomial quando poucos ousaram denunciar estes horrores. Mas o Brasil do golpe não gosta de mulheres fortes. Basta olhar o quadro ministerial do presidente Michel Temer composto apenas por homens, ricos e brancos.
Como a maioria dos brasileiros, eu também não vi o filme escolhido pelo Ministério da Cultura. O crítico Alcino Leite Neto disse nesta terça-feira (13), na Folha de S. Paulo que se trata de “um oceano de clichês e sentimentalismo”. Com “narrativa piegas, imagens piegas, banda sonora piegas e direção de uma platitude sem fim”. Em resumo, “um dos piores filmes do cinema brasileiro dos últimos anos”.
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