ARTIGO – O que leva um juiz criminal a jogar às favas os escrúpulos e divulgar interceptações telefônicas sabidamente ilegais, que não podem estar em um processo penal e pela lei devem ser descartadas (art. 157§ 3º, do Código de Processo Penal), deixando patente a inexistência de algum fiapo da imparcialidade que a Constituição lhe impõe?
Com efeito, o País está sob o impacto de gravações de conversas telefônicas da Presidente da República com o ex-presidente Lula, que foram obtidas depois de ordenada pelo juiz Sergio Moro a interrupção das interceptações, ciente de que o fato investigado passaria, em tese, à competência do STF, e mesmo em seguida à notícia desta ordem à Polícia Federal, que por sua vez se supunha responsável pela execução da medida.
Trata-se, friamente, de interceptações telefônicas ilícitas de uma Presidente da República, ao contrário do que foi divulgado pela Globo ontem. Compreendem-se os motivos da Globo, que nem com enorme boa vontade podem ser considerados meramente jornalísticos.
Em geral, as poucas pessoas interessadas no que escrevo são da área do Direito. Escrevo, portanto, em primeiro lugar, aos juristas – dos estudantes aos juízes. Outras pessoas poderão querer ler. Todos por certo são pessoas que reagiram e estão reagindo emocionalmente de alguma forma ao conteúdo das conversas de que tomaram conhecimento.
Reafirmo que considero legítima a tomada de posição pessoal diante dos fatos.
Todavia, dos juristas, que nesta quadra da história acreditava-se comprometidos com a Constituição e o estado de direito, não se pode exigir menos que a denúncia da grave ilegalidade praticada pelo magistrado e o repúdio a ações que remetem ao que houve de mais nocivo nas ditaduras Vargas e de 64: o recurso a interceptações telefônicas clandestinas.
Um jurista que não reprova os métodos de Moro equivale aos juristas que não reprovaram as práticas arbitrárias durante o Governo militar. Houve muitos deles, alguns foram Ministros da Justiça de Castello Branco, Costa e Silva e Médici.
A questão que me propus foi tentar entender a razão do juiz Sergio Moro ter, confessadamente, violado a lei. Por que, afinal, no lugar de cumprir a lei e descartar conversas gravadas ilicitamente ou, como em sua decisão declarou que o faria, encaminhar todo o material ao STF, o magistrado optou por tornar pública a conversa registrada ilegalmente?
As explicações mais elementares, que circulam nas redes sociais, não me convenceram. As desfavoráveis ao ato praticado por ele – conspiração para derrubar o governo, pois as passeatas de 13 de março, expressivas, cingiram-se a um setor da sociedade e não foram transversais – não me persuadiram. Derrubar o governo poderia ser um efeito da divulgação, mas era necessário sacrificar sua condição de magistrado para isso, algo que não me parece que Moro estivesse disposto a fazer.
As favoráveis ao ato – interesse público na divulgação – também não me convenceram, mas me chamaram atenção e este é o assunto do post.
O juiz Sergio Moro, mais do que o comum dos mortais, que está influenciado pelo teor das conversas, tem pleno conhecimento de seus limites de competência e sabe que os viola quando ordena ou preserva interceptações de investigado com Deputados, advogados e a Presidente da República. O magistrado sabe que não pode gravar estas conversas, tampouco divulgá-las, por causa de sua origem ilícita.
Se o real motivo para a divulgação houvesse consistido em evitar obstrução à justiça – que em seu despacho, sem sinceridade alguma da parte do juiz, este afirmou não seduzível por iniciativas anti-republicanas – bastaria com encaminhar os autos ao STF.
Mas não. Antes de enviar os autos ao STF, no qual o juiz declara confiar, o magistrado habilmente permite o acesso da comunicação social ao conteúdo obtido ilegalmente. O juiz Sergio Moro sabia que os jornais aguardavam alguma decisão sua sobre transferência de competência e, portanto, difundiriam a notícia da conversa entre Presidente e ex-Presidente da República e podia prever que algumas empresas de comunicação o fariam, como de fato ocorreu, sem qualquer juízo crítico acerca da ilegalidade, centrando-se no tom das conversas e não na violação da intimidade.
O trecho de seu despacho em que afirma que o ex-presidente desconfiava estar sendo monitorado em suas conversas telefônicas já entrou para a história da Ciência Política latino-americana. Claro, entrou pela porta dos fundos, porque incoerente com o teor de conversas gravadas fora do abrigo legal.
Concluo que a única explicação que faz sentido, relativamente ao ato praticado por Sergio Moro, é a de que sabia que mesmo o mais tolerante Ministro do STF não concordaria em aproveitar em processo algum uma interceptação telefônica ilícita.
Conta o magistrado, interessado evidentemente no desfecho de um caso criminal que sequer começou – não havia denúncia contra o ex-presidente, mas apenas uma investigação que tramitava no Paraná – que a revolta de grande parte da opinião pública constranja o STF a lavar uma prova de origem ilícita.
Ao longo de todo o processo Lava-Jato o magistrado buscou apequenar as garantias constitucionais. Fez pouco caso da imparcialidade nas investigações (violando indiretamente o decidido pelo STF na ADI 1.570), decretou prisões em inquéritos porque convencido da culpa de investigados, e assim ignorou a presunção de inocência, sustentou que a prova para condenar não haveria de necessariamente excluir a credibilidade de versões defensivas, e, por fim e pelo conjunto da obra, deu crédito à tese processual penal do período pré-1988, talvez fiel ao que defendem alguns Procuradores da República: de que é necessário relativizar a proibição de uso de prova ilícita (male captum bene retentum).
Em suma, na Lava-Jato o magistrado construiu sua própria constituição, à revelia daquela que dirige os atos dos juízes no estado de direito.
Se confiasse na legalidade de seu ponto de vista – e sinceramente confiasse no STF – o juiz simplesmente enviaria os autos ao Supremo, pois no STF seriam tomadas as medidas repressivas que reputassem necessárias.
Ao preferir preceder o envio de publicidade midiática, tornando públicas gravações ilegais, o juiz revelou sua desconfiança na possibilidade dos Ministros do STF endossarem a prova ilícita e os apequenou, ao colocar em teste a capacidade deles de julgarem contra a opinião pública.
Ficou evidente que para Sergio Moro os fins – que fins? – justificam os meios.
Ao explodir o caldeirão, o juiz criminal desafiou os Ministros:
— vocês, alguns citados nas conversas telefônicas, terão coragem de honrar seu juramento de defesa da Constituição, mesmo contra a opinião pública e eventual sentimento pessoal de decepção, e declararão a ilicitude de minha conduta?
— ou cederão e concederão à prova ilícita o valor jurídico que ela não tem, assumindo o risco de redirecionar para o STF os protestos e a frustração de grande parte da opinião pública? “Se o fizerem, terei vencido na tese de que os fins justificam os meios.”
Alguns juristas que lêem este texto podem alinhar-se ao pensamento de Sergio Moro. Há muitos que acreditam que advogados que defendem pessoas odiadas também devem ser odiados, que as garantias do processo são carta branca para a criminalidade, que a legitimidade das decisões judiciais é aferida pelo grau de contentamento da opinião pública. Vários destes juristas divulgaram em sua timeline as conversas gravadas ilegalmente.
Para estes o que posso dizer vem da poesia e da lição da história. Os torturadores de todos os tempos acreditaram-se fazedores de justiça.
No Fado Tropical, nos anos 70, Chico Buarque vos imortalizou:
“Sabe, no fundo eu sou um sentimental. Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo ( além da sífilis, é claro). Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar, o meu coração fecha os olhos e sinceramente chora…”
“Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto,
De tal maneira que, depois de feito,
Desencontrado, eu mesmo me contesto.Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito,
Me assombra a súbita impressão de incesto.”“Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa,
Mas meu peito se desabotoa.E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa,
Pois que senão o coração perdoa”
Se pensas, jurista, que é o teu sentimento cívico, patriótico, que te faz ignorar os deveres da Constituição, saibas que por trás de todo gesto violador há o prazer. Te encontras com este teu prazer, essa “súbita impressão de incesto”, mas não invoque o Direito e a Justiça. Eles não estão contigo.
Geraldo Prado é Professor Titular de Direito Processual Penal na UFRJ
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