Pequena Grande Mulher.


 

As imagens talvez nunca tivessem saído da imaginação de quem as pintou, não fosse a iniciativa de uma mulher. A doutora Nise da Silveira, nascida em Alagoas, completaria hoje cem anos.

Na década de 40, ela começou a concretizar as idéias que ajudaram a mudar o tratamento de doentes nos hospitais psiquiátricos do país, como lembra hoje uma exposição em um museu, em Maceió.

“O eletro-choque, o coma insulínico, a lobotomia são tratamentos que atingem diretamente o cérebro da pessoa. Ela, como uma pessoa libertária, não aceitava essa violência contra o doente”, explica o diretor do Museu do Inconsciente do Rio, Luiz Carlos Mello.

Nise acreditava que o afeto era importante no processo de recuperação dos pacientes, e mais: apostou em terapias que estimulavam outras formas de expressão que não as palavras. Criou oficinas de artes plásticas no hospital em que trabalhava, no Rio de Janeiro, e usava as imagens para entender melhor os conflitos dos doentes.

Nise da Silveira não via decadência entre seus pacientes, pelo contrário. Com as terapias ocupacionais, passou a perceber criatividade neles. Mesmo mergulhados no mundo do inconsciente, as imagens produzidas pelos doentes se revelavam belas e harmoniosas.

Muitas viraram obras de arte, como os desenhos de Raphael Domingues, nascido em 1913, e vítima dos sintomas da esquizofrenia desde os 15 anos de idade. As obras dele fazem parte do Museu de Imagens do Inconsciente, fundado por Nise da Silveira, em 52, e que hoje tem um acervo de mais de 300 mil peças.

Fernando Diniz, um baiano, de família pobre, pintava mandalas em meio a crises de esquizofrenia. Intrigada com as figuras, Nise procurou um dos papas da psicanálise. Carl Jung disse a ela que os círculos seriam mensagens do inconsciente do paciente, tentando mostrar unidade em meio à loucura.

Nise sempre foi pioneira em suas idéias e atitudes. Foi a única mulher a se formar em medicina em uma turma de 157 homens. Durante a ditadura Vargas, em 36, ficou um ano e quatro meses presa, acusada de comunismo.

A sobrinha, Lúcia de Miranda Baptista, tem boas recordações da tia, de personalidade forte e desafiadora mesmo na adolescência, quando namorou um primo para desgosto do pai.

“O pai dela não queria o namoro e mandou a mãe para acompanhar. Ela trancava a mãe no quarto da pensão e ia namorar. E virou casamento”, conta Lúcia.

Em Maceió, na casa de Nise, hoje funciona um colégio. Os métodos defendidos por ela se espalharam por vários hospitais e centros psiquiátricos do Brasil.

“Eu me sinto bem, aliviado, é como se eu colocasse todas as minhas culpas, todos os meus medos e demônios na pintura”, diz o paciente Jamerson Bispo.

O ateliê do Museu de Imagens do Inconsciente permanece em atividade. Mais de 120 mil obras foram tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Entre elas, pinturas de Emygdio de Barros, um torneiro mecânico, nascido em 1895, reconhecido como gênio por alguns críticos de arte.

O escritor Ferreira Gullar tem, em casa, um dos seis quadros do artista que saíram do museu. “Quando o quadro é pleno, ele não tem a morbidez da doença. Pelo contrário, é a revelação de uma realidade a que nós não estamos acostumados”, acredita Ferreira Gullar.

“A lógica da expressão artística não é a lógica do pensamento conceitual. É uma outra lógica e nisso a doutora Nise apostava, que é onde está também a acuidade extraordinária dela”, observa o escritor.

 

 

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