Sem o brilho de outras épocas, a TV Globo comemora cinco décadas de existência. Nunca a sua audiência esteve tão baixa. No dia 1ª de abril ocorreram atos em prol da cassação de sua concessão em diversas cidades brasileiras. O do Rio e Janeiro contou com 10 mil pessoas.
Artistas globais e a falecida viúva de Roberto Marinho integram a relação desuspeitos de crimes de evasão fiscal e serão alvo de investigação pela CPI do Senado, criada para analisar o caso batizado como “Suiçalão”.
Ao assumir a postura pró-tucanos durante a campanha eleitoral de 2014, a emissora perdeu parte da regia publicidade oficial com que sempre foi contemplada. Os protestos contra a TV Globo vão continuar e existem pelo menos 10 razões para que os setores comprometidos com a democratização da mídia no Brasil não tenham nada a comemorar neste cinquentenário.
1. Marinho ficou com o canal 4 – Nos idos de 1950, a rádio líder absoluta de audiência e mais querida do Brasil era a Nacional, de propriedade do governo federal. O sucesso era tamanho que animou seus dirigentes a solicitarem ao presidente Juscelino Kubitschek a concessão de um canal de TV. Juscelino considerou a reivindicação justa e prometeu para “ breve” a concessão.
No final de 1957, o Canal 4 era concedido para a inexpressiva Rádio Globo, de Roberto Marinho. As pressões do então magnata da comunicação, Assis Chateaubriand, foram decisivas contra a Rádio Nacional. Ele aceitava qualquer coisa, menos que a Nacional ingressasse no segmento televisivo. O Brasil perdeu assim a chance histórica de ter, no nascedouro, duas modalidades de televisão, a comercial e a estatal voltada para o interesse público como seria a TV Nacional.
2. O acordo que feriu os interesses nacionais – A TV Globo começou a operar de forma discreta em 26 de abril de 1965 e seus primeiros meses foram um fracasso de audiência. Sua operação só foi possível graças aos milhares de dólares que recebeu do gigante da mídia norte-americana Time-Life, apesar da emissora ainda hoje sustentar que se tratou apenas de “um contrato de cooperação técnica”. A realidade, fartamente documentada por Daniel Herz, no já clássico A história secreta da Rede Globo (1995) prova o contrário. Roberto Marinho e o grupo Time-Life contraíram um vínculo institucional de tal monta que os tornou sócios, o que era vedado pela Constituição brasileira. Foi este vínculo que assegurou à Globo o impulso financeiro, técnico e administrativo para alcançar o poderio que veio a ter.
3. Apoio à ditadura (1964-1985) – Durante quase 20 anos, TV Globo e governos militares viveram uma espécie de simbiose. Os militares, satisfeitos por verem na telinha apenas imagens e textos elogiosos ao “país que vai para a frente”, retribuíam com mais e mais benesses e privilégios para a emissora. Ela enfrentou alguns casos de censura oficial, após a edição do AI-5 em 1968, mas o que prevaleceu foi o apoio incondicional de sua direção aos militares e a autocensura por parte da maioria de seus funcionários. Some-se a isso que a TV Globo sempre se esmerou em criminalizar quaisquer movimentos populares.
4. Combate às TVs Educativas – No poder, algumas alas militares viram na radiodifusão um caminho para combater a “subversão” e, ao mesmo tempo, promover a integração nacional. Por isso, em 1965, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) solicita ao Conselho Nacional de Telecomunicações a reserva de 98 canais especificamente para a TV Educativa. Pouco depois, Roberto Marinho começava a agir.
O decreto-lei nº 236 de março de 1967 formalizava a existência das emissoras educativas, mas criava uma série de obstáculos para que funcionassem. O artigo 13, por exemplo, obrigava estas emissoras a transmitirem apenas “aulas, conferências, palestras e debates”, além de proibir qualquer tipo de propaganda ou patrocínio a seus programas. Traduzindo: as TVs Educativas estavam condenadas à programação monótona e à falta crônica de recursos. O que contribuiu para cristalizar a visão de que a Globo é sinônimo de qualidade.
5. O programa global de Telecursos – O projeto de Educação Continuada por Multimeios envolvia um convênio entre a Secretaria de Planejamento da Presidência da República, o BID, a Fundação Roberto Marinho (FRM) e a Fundação Universidade de Brasília (FUB). Aparentemente, o objetivo era nobre: “o atendimento à educação de população de baixa renda do país, mediante a utilização e métodos não tradicionais de ensino”.
Na prática, o convênio ficou conhecido como Programa Global de Telecursos e atendia exclusivamente aos interesses da FRM. Através dele, a FRM pretendia, sem qualquer custo, apoderar-se do milionário “negócio” da teleducação no Brasil. Para tanto, esperava contar com recursos nacionais e internacionais inicialmente da ordem de 5 milhões de dólares embutidos em um pacote de 20 milhões de dólares solicitados pelo governo ao BID no início de 1982.
A tentativa das Organizações Globo de se apropriar dos recursos destinados às TVs educativas chega à imprensa no início de 1983. O “tiroteio” entre os jornais Globo e Folha de S.Paulo durou meses e o convênio, que acabou não sendo assinado, só foi sepultado três anos depois, com o fim do regime militar. Ainda hoje a FRM representa o Brasil em vários fóruns internacionais sobre educação.
6. O caso Proconsult – Leonel Brizola foi um dos políticos brasileiros mais combatidos pela TV Globo. Marinho nunca o perdoou por ter comandado a “rede da legalidade”, emissoras de rádio pró João Goulart, quando da renúncia de Jânio Quadros à presidência da República, em 1961. Com a vitória do golpe civil-militar de 1964, Brizola foi para o exílio e só pode retornar ao Brasil com a anistia, em 1979.
O Caso Proconsult foi uma tentativa de fraude nas eleições de 1982 para inviabilizar a vitória de Brizola para o governo do Rio de Janeiro. A fraude foi denunciada pelo Jornal do Brasil, então o principal concorrente de O Globo e relatada pelos jornalistas Paulo Henrique Amorim, Maria Helena Passos e Eliakim Araújo no livro Plim Plim, a peleja de Brizola contra a fraude eleitoral (Conrad, 2005). Devido à participação de Marinho no caso, a tentativa de fraude é analisada no documentário britânico Beyond Citizen Kane, de 1993. A TV Globo defendeu-se argumentando que não havia contratado a Proconsult e que baseava a totalização dos votos em apuração própria. Em 15 de março de 1994, Brizola, como governador, voltou a vencer a TV Globo ao obter, na Justiça, direito de resposta na emissora contra críticas de que era vítima.
7. Ignorou as Diretas Já – O primeiro grande comício das “Diretas-Já” aconteceu em São Paulo, em 25 de março de 1984 e coincidiu com o 430º aniversário da cidade. A TV Globo tratou o comício da Sé como um dos eventos comemorativos do aniversário da cidade, diminuindo deliberadamente sua relevância política. Omissões semelhantes repetiram-se em outras capitais. De acordo com o ex-vice-presidente das Organizações Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, em entrevista ao jornalista Roberto Dávila, na TV Cultura, em dezembro de 2005, foi o próprio Roberto Marinho, quem determinou a censura daquele comício, impedindo que manifestantes fossem ouvidos e proibindo o aparecimento do slogan “Diretas Já”.
A versão de Boni é diferente da que aparece no livro Jornal Nacional – A Notícia Faz História (Zahar, 2004), e que representa a versão da Globo. Aliás, a emissora vem tentando reescrever a sua história e, ao mesmo tempo, reescrever a própria história brasileira. A partir das Diretas-Já teve início a utilização, pelos movimentos populares, do bordão “O povo não é bobo. Abaixo a Rede Globo”.
8. Manipulação – Na eleição de 1989, a TV Globo manipulou o último e decisivo debate entre o candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva e o do PRN, Fernando Collor. No telejornal da hora do almoço, a emissora fez uma edição equilibrada do debate. Para oJornal Nacional, houve instruções para mudar tudo e detonar Lula, editando-se os seus piores momentos e os melhores de Collor. Desde então, pesquisas e estudos sobre este “caso” têm sido feitas, destacando-se as realizadas por Venício A. Lima, professor aposentado da Universidade de Brasília.
9. Contra a democratização da mídia – Todos os países democráticos possuem regulação para rádio e televisão. No Reino Unido, por exemplo, a mídia e sua regulação caminharam juntas. Quando, em 2004, o governo Lula enviou ao Congresso Nacional projeto de lei criando o Conselho Nacional de Jornalismo, uma espécie de primeiro passo para esta regulação, foi duramente criticado pela mídia comercial, TV Globo à frente. Desde sempre, as Organizações Globo foram contrárias a qualquer medida que restrinja o poder absoluto que a mídia desfruta no Brasil. Prova disso é que o Capítulo V da Constituição brasileira, que trata da Comunicação Social, até hoje não saiu do papel.
Os compromissos dos mais diversos movimentos sociais brasileiros com a regulação da mídia foram reafirmados durante o 2º Encontro Nacional pelo Direito à Comunicação, de 10 a 12 de abril em Belo Horizonte. Sua carta final, “Regula Já! Por mais democracia e mais direitos”, conclama movimentos sociais e ativistas a unirem forças para pressionar o governo a abrir o diálogo com a sociedade sobre a necessidade de se regular democraticamente a mídia.
10. Ativismo pró-impeachment – A mídia, em especial a TV Globo, tem tido papel protagonista nas manifestações contra a presidente Dilma Rousseff e o PT. Alguns estudiosos chegam a afirmar que dificilmente estas manifestações teriam repercussão se não fosse a Rede Globo. Em outras palavras, a Rede Globo, tão avessa à cobertura de qualquer movimento popular, entrou de cabeça na transmissão destas manifestações. No domingo 15/04, por exemplo, mobilizou, como há muito não se via, toda a sua estrutura com o objetivo de ampliar e
dar visibilidade a estes atos. A título de comparação, as manifestações de 13/04, que também aconteceram em todo o Brasil e defenderam a Reforma Política, não mereceram cobertura tão dedicada da sua parte.
Nas redes sociais, internautas repudiaram a cobertura feita pela TV Globo e alcançaram, durante 48 horas ininterruptas, para a hashtag #Globogolpista, a primeira posição entre os assuntos mais comentados do Twitter. Novos protestos estão previstos.
Este já é o pior aniversário da TV Globo em toda a sua história.
*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Este artigo foi publicado no blog Estação Liberdade
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