A ditadura e o silêncio do povo – Por Raul Longo (*)

Por fim, me pergunto: com qual silêncio as ruas receberão os magistrados brasileiros se mais uma vez comprovarem o acentuado e vergonhoso desnível da balança do Poder Judiciário Brasileiro?

Dos anos da ditadura militar restaram-me silêncios inesquecíveis. Primeiro foi o silêncio das ruas do bairro onde, ainda menino, morava com meus pais. No rádio falava-se em revolução, mas ao invés de exaltações o que vi e ouvi nas ruas foi um grande silêncio temeroso, contrastando com galhofas e pegadinhas tradicionalmente empregadas em todo 1º de Abril de anos anteriores a 1964.

Um silêncio não sem razão, pois além de não ter graça nenhuma a mentira pregada naquele 64 durou ¼ de século em que calou muitos outros silêncios que até hoje ecoam em meus ouvidos pela lembrança de vozes que nunca mais ouvirei. Eram vozes queridas e mesmo as que sobreviveram nunca mais voltaram a ser tão alegres e desinibidas. Algumas até se tornaram irrecuperavelmente soturnas.

Depois, as mesmas rádios, as tevês, revistas e jornais falavam tanto de um milagre econômico e da obrigação de se amar o país que comecei a ouvir vozes estranhas em diversas daquelas bocas a princípio caladas. Não eram vozes naturais e soavam como reprodução mecânica das máquinas de divulgação de um progresso que eu não conseguia ver nas ruas, pois o que via eram levas de silenciosos miseráveis a constituir favelas e periferias, vindos dos interiores para construir pontes, viadutos, túneis, estradas e metrôs.

Então, bem tentei lembrar o sacrifício daqueles silenciados pela espoliação e do custo daquele duvidoso progresso financiado e em benefício de minorias nem sempre nacionais, mas que algum dia todos teríamos de pagar. E onde tocava no assunto, eu era silenciado.

Assim percorri o país, mas mais do que o silêncio que a mim impunham doíam-me aqueles outros precedidos de urros e gemidos. Os silêncios impostos pela morte, pelo desaparecimento ou pelo exílio. Quantas dessas vozes perdi por todo o Brasil!

Mas no decorrer da ditadura militar escutei dois silêncios que ainda mais me impressionaram. Um deles foi quando cheguei a um comício do “Movimento pelas Diretas Já” no Vale do Anhangabaú, em São Paulo. A passarela de pedestres sob o Viaduto do Chá transformada em palanque por Teotônio Vilela, Franco Montoro, Ulisses Guimarães, Mário Covas, Brizola, Fernando Henrique Cardoso e outros mais.

Sobre o viaduto e de um lado a outro do amplo vale, desde a Av. São João até o início da Av. 9 de Julho, a maior multidão que até então eu já vira reunida. Ouvimos o Lula dizer que se algum daqueles da passarela aceitasse mais uma eleição indireta no Brasil, estaria traindo a todos nós que ali escutávamos não somente ao líder sindical, mas a todos demais políticos num silêncio oceânico. Um silêncio impossível em tamanho agrupamento de pessoas, mas real e consistente.

De fato fomos traídos e as vozes da mídia mais tarde nos convenceram ter sido melhor assim, para depois nos empulharem com elogios a um “caçador de marajás” e, ainda outra vez, com um poliglota a nos ludibriar em diversos idiomas. Até aprendermos a ouvir em nosso silêncio, nossas próprias vozes.

Já o silêncio do povo durante a ditadura militar que recordo agora, é mais pessoal e bem anterior, quatro anos depois daquele do primeiro 1º de Abril silencioso que experimentei na vida. Não lembro o mês exato em que se deu, mas recordo vivamente quando a cavalaria entrou na Praça da Sé em meio ao nosso protesto contra o acordo MEC-USAID que, conforme prevíramos, trouxe o sistema de educação pública do Brasil ao estado calamitoso a que chegou.

Dispersamos e como muitos outros me enfiei pela Rua Direita com o galope dos cavalos atrás. A intenção era me meter nas Lojas Americanas, aproveitando a saída para a Rua José Bonifácio do outro lado para dali alcançar algum ponto de menor concentração policial. No entanto, uma multidão encostada às grandes portas do magazine impedia a entrada.

Não havia tempo para pensar e me joguei no meio das pessoas, mas não foi preciso empurrá-las porque me abriram espaço tão imediatamente quanto o fecharam. No último segundo algo dolorido me desequilibrou, ainda assim varei aquele estreito vão pelo recuo aos lados da densa cortina de gente e, na dor e no susto do outro lado, num instantâneo olhar atrás, já me levantando depois de cair no piso da loja, só vejo as costas de homens e mulheres num severo silêncio ressaltado pelo tinir irritado dos cascos do cavalo sobre o asfalto da rua. Se não me falha a memória a Rua Direita ainda não era calçada de pedras, mas já exclusiva aos pedestres.

Mais tarde, pela imagem de chapa de raio-X, um médico me advertiu sobre os dias em que me seria dificultoso e dolorido respirar e dormir, por causa de uma costela trincada. Fiquei imaginando o esforço do soldado da PM a se dobrar sobre o cavalo na tentativa de me derrubar com sua “Fanta”, como então se apelidou um cassetete mais extenso por analogia com o único refrigerante de litro então comercializado.

Evidente que não há nada de refrescante numa lambada de cassetete, mas a cada ardor da primeira trinca de ossos em meus ouvidos ecoava o orgulho por aquele silêncio da multidão a afrontar e barrar a afoiteza do cavalo. Naquele silêncio muitas vezes me compenetrei do sentido dos tantos demais silêncios muito mais sofridos de meus companheiros dos tempos da ditadura.

Hoje ouço o tropel efusivo da mídia pela condenação daqueles que sempre lutaram contra tantos outros acordos espúrios e lesivos à pátria, como antes ouvia os mesmos veículos de informação e jornalistas silenciarem-se a estes acordos. Fosse à ditadura, aos tempos do “Caçador de Marajás” que a própria mídia nos levou a eleger ou à era do poliglota fraudulento.

Mas também ouço o silêncio da multidão gritado nos resultados do primeiro turno destas eleições municipais e das pesquisas do segundo a se realizar no próximo domingo.

Ouço as acusações de entidades e organismos que se calaram aos tantos crimes contra o país, engavetados por quem deveria apontá-los e absolvidos pelos que devendo condenar se resumiram em sentenças de pena de férias em Miami, Paris, Roma ou qualquer outro nicho turístico internacional.

Ouço os pronunciamentos dos mesmos Ministros da Suprema Corte que viabilizaram a fuga de escroques e estupradores, agora fundamentados em indícios, indisposições e ilações de personagens comprovadamente desqualificados.

Pergunto-me como se comportarão esses mesmos juízes quanto aos documentos e provas reproduzidas no livro de maior vendagem da história de nossa literatura: “A Privataria Tucana”. Como se pronunciarão e a que condenarão os acusados pelo mesmo crime de Caixa 2 praticado a cada eleição por todos os partidos políticos do país?

Ouço também um eco recente da voz do Ministro Joaquim Barbosa desafiando seu colega Gilmar Mendes a ir às ruas. Então Barbosa se referia ao burburinho contra a leniência de Mendes aos crimes financeiros do megaespeculador Daniel Dantas, financista dos projetos do anterior governo neoliberal.

Por fim, me pergunto: com qual silêncio as ruas receberão os magistrados brasileiros se mais uma vez comprovarem o acentuado e vergonhoso desnível da balança do Poder Judiciário Brasileiro?

Barbosa apostou no alarido das ruas contra Gilmar Mendes, mas ao contrário de outros povos o brasileiro tem comprovado a ilegitimidade e destituído poderes abusivos e inaptos em silêncio.

Vá às urnas, Ministro!

 *Raul Longo é jornalista, escritor e poeta. Mora em Florianópolis e é colaborador do “Quem tem medo da democracia?”, onde mantém a coluna “Pouso Longo”.

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