Helena Sut
“O homem que tenta ser bom o tempo todo está fadado à ruína entre os inúmeros outros que não são bons.”
Nicolau Maquiavel
Cedo aos conselhos do jornalista e escritor Cláudio Ribeiro e me lanço à leitura do livro “As 48 leis do poder” para amadurecer minhas percepções nas relações sociais e políticas. A compreensão de algumas intrigas que cercam os ambientes cotidianos pode ser uma forma de dissipar o conflito interior marcado por silêncios e frustrações.
Apesar de já ter lido O Príncipe de Maquiavel e A arte de Prudência de Baltasar Grácian e de não me considerar tão ingênua ou “boazinha”, os ensinamentos com exemplos das leis observadas e suas interpretações do livro de Robert Greene me assombram. Um universo de desonestidades, dissimulações e ingratidões se descortina em cada mandamento ultrapassado. Manipulações desnudam a virtude como uma palavra morta, um verbete sem significado.
Infelizmente os fatos reunidos pelo autor, que sustentam as leis hostis, são reais e revelam personagens conhecidos da história desde os tempos mais remotos. Os exemplos não se limitam aos cenários políticos, expandem-se nas relações mais íntimas e regem o amor, a doação, enfim, todas as ações humanas.
Os jogos do poder estão distantes das brincadeiras comportadas dos infantes. Tantas regras norteiam os primeiros ensinamentos para depois de alguns anos se tornarem fragilidades a serem superadas num mundo de astúcia e malícia. As relações do poder não são marcadas por sentimentos nobres, mas por razões definidas que quando bem articuladas culminam no poder…
Seduzida pela curiosidade e pela coerência na organização das idéias, leio as primeiras vinte e cinco leis de uma só vez. A narrativa me alcança como uma leitora incauta entregue à ficção e me desperta para os fatos históricos transcritos com a seriedade de um manual de comportamento a ser respeitado. Perco o fôlego, ao perceber a gratidão como um peso muito forte a ser suportado e a infelicidade vista como um motivo seguro de afastamento, rendo-me exausta, sem forças para prosseguir.
Não se deixar contagiar pelo fracasso alheio, não recorrer ao sentido de gratidão ou misericórdia, apelar sempre para o egoísmo do outro a fim de conseguir seus objetivos… Não há como ficar à margem observando o curso dos rios, a violência das águas devasta a orla e carrega os vitoriosos e afogados.
Desisto. Demoro a dormir, a cabeça lateja com tantos males. Será? Quando me liberto do turbilhão de maus pensamentos, o inconsciente me trai. Sonhos… Estou sozinha e tensa, aquartelada num castelo. Além da porta, ouço os passos de minha pequena filha. Os ensinamentos do livro alertam: não confie em quem conhece as suas fragilidades, os seus amigos mais próximos serão os primeiros a lhe traírem… Sinto medo, dissimulo minha presença numa ausência cruel… Paranóia. Anoitece e permaneço observando o vasto oceano num turvado horizonte. Aproximo-me do mar, mergulho na tentativa de me lavar dos maus presságios e de me libertar da culpa, mas a água está cheia de sargaços fétidos, que se fixam em meu corpo e me prendem num fundo lamacento.
Acordo assustada. Quase sinto o contato das pardas algas. Tento me desvencilhar das cobertas e derrubo o volume entreaberto na cabeceira. Um estrondo seco. Aparentemente inofensivo, o livro pode ser uma arma fatal a destruir a inocência que fortalece os poemas de amor e o olhar empático com o próximo. Sinto o vazio de me sentir desvirginada num estupro consentido.
Guardo o livro com o marcador bem no centro, como um umbigo cicatrizado, a prova de minha coragem em enfrentar os primeiros mandamentos, os vestígios de minha covardia em abandonar a leitura para não me perder num oceano corrompido sem os portos seguros dos sentimentos enraizados na gratidão, solidariedade, esperança e compaixão.
Helena Sut
Publicado no Recanto das Letras em 14/07/2006
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