Uma primavera árabe udenista

Há algo de inusitado no comportamento de certos setores da imprensa brasileira em relação às manifestações contra a corrupção: saíram do apoio em matérias e editoriais para, suprema ousadia, dirigi-las desde as redações. Apelando às chamadas “redes sociais”, sonham com massas sublevadas entoando slogans que reafirmem a sua pauta conversadora, com destaque para o voto distrital.

Em que pese o raquitismo das manifestações, as manchetes de alguns jornais e de certa revista semanal remetem-nos a um mundo parecido com aquele da Praça Tahir, no Cairo, nos dias que precederam à queda do ditador Hosni Mubarak. Tudo se passa como se o país estivesse ruindo e uma nova ordem prestes a emergir. Obviamente, não descarto a possibilidade de que parcelas da população se deixem seduzir pelo canto da sereia e, em um futuro próximo, tomem as ruas e praças das grandes cidades brasileiras com antigas bandeiras da UDN nas mãos. Não parece ser essa a possibilidade mais forte, no entanto.

Quem, em domínio razoável de suas faculdades mentais, colocar-se-ia contra o combate à corrupção? O problema é que sabemos, pelo menos desde os tempos em que Carlos Lacerda incitava os militares contra Getúlio Vargas, que essa é a “bandeira de luta” que resta aos que não possuem mais bandeiras no terreno da política. O moralismo é o ocaso de qualquer política. É, acima de tudo, a aversão conservadora ao embate de posições no espaço público. Especialmente quando essas posições são alimentadas por interesses legitimamente construídos no duro chão da vida social.

O udenismo é a configuração histórica mais vistosa do moralismo na política brasileira. E a sua grande vitória política foi a eleição de Jânio Quadros, em 1960. A contribuição do “homem da vassoura” à miséria política nacional, sabemos todos, não foi pequena. Nem falemos das “Senhoras de Santana”, as avós ideológicas dos manifestantes anticorrupção de nossos dias.

O udenismo mudou de cara, mas não tem como alterar radicalmente suas práticas. Sua produção discursiva mira depreciativamente pessoas, especialmente àquelas cujas trajetórias traduzem, mesmo que simbolicamente, a ascensão política “dos de baixo”. Getúlio Vargas, ontem; Lula, hoje. E se houver alguma possibilidade de tomar como alvo um ministro negro, pode-se esperar linchamento político.

Quando analisamos os discursos produzidos pelos combatentes anticorrupção nas ditas redes sociais damo-nos conta de que a fantasia de uma “primavera árabe” nos trópicos é apenas mais uma farsa em uma história já farsesca em demasia. Nesses discursos, caso alguém tenha paciência de sistematizar uma análise de seus conteúdos, escreve-se sobre corrupção, mas o alvo são os pobres e os nordestinos. Nada de novo, portanto.

Edmilson Lopes Júnior

é professor de sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). edmilsonlopesjr@terra.com.br

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